Sociedade

Desafios na Era Digital: A Suprema Corte e a disputa sobre moderação de conteúdo nas redes sociais

Fonte: CUNY Academic Commons

Por Lauro Henrique Gomes Accioly Filho* [Informe OPEU]

A Suprema Corte dos Estados Unidos iniciou, em 26 de fevereiro, o julgamento de um caso envolvendo duas leis estaduais que impõem restrições a grandes empresas de tecnologia em redes sociais de remover conteúdo político que considerem questionável. Os argumentos apresentados nesses casos têm o potencial de redefinir o cenário em constante evolução da moderação do discurso on-line. Esse processo adquire ainda mais relevância diante dos novos dilemas surgidos em relação à amplitude e ao significado da liberdade de expressão, especialmente à medida que a esfera pública se desloca para o ambiente virtual no século XXI.

Flórida e Texas promulgaram leis em 2021, apoiadas pelos republicanos, que limitam a capacidade das grandes empresas de Internet de fazerem uma curadoria do conteúdo exibido em suas plataformas. Essas iniciativas foram, em parte, uma resposta ao que alguns conservadores perceberam como censura às opiniões de direita por parte do Vale do Silício, em nome do combate ao discurso de ódio e à desinformação. Aliás, quando sancionou o projeto de lei do Texas, o governador (republicano) Greg Abbott fez um discurso sobre a nova lei, afirmando se tratar de um grande passo para que os pontos de vista conservadores no Texas não sejam mais proibidos nas redes sociais.

Greg Abbott | Texas Attorney General Greg Abbott speaking at… | Flickr(Arquivo) Governador do Texas, Gregg Abbott, em out. 2012 (Crédito: Gage Skidmore/Flickr)

A propósito, foi somente após Facebook, Twitter (agora X) e YouTube banirem o presidente Donald Trump de suas plataformas, em decorrência dos tumultos ocorridos em 6 de janeiro de 2021 no Capitólio, que a Flórida tornou ilegal as empresas de tecnologia proibirem a presença de candidatos a cargos públicos no estado em suas plataformas. Posteriormente, o Texas aprovou sua própria legislação, proibindo as plataformas de remover conteúdo político.

Ao longo dos anos, as redes sociais têm sido infestadas de informações enganosas, discursos de ódio e assédio. Isso tem levado as empresas a estabelecerem novas regras nesta última década, incluindo a proibição de informações falsas sobre eleições e a pandemia da covid-19. Figuras como o influenciador Andrew Tate foram banidas das plataformas por violarem essas regras, notadamente aquelas contra o discurso de ódio.

Conservadores reagem

Os defensores da lei sustentam que as empresas de redes sociais devem ser tratadas como qualquer outra empresa, sendo proibidas de remover postagens ou banir usuários de suas plataformas com base em suas opiniões.  Alegam que usuários com pontos de vista conservadores são os mais afetados com a “censura”, sugerindo que as empresas de tecnologia estão assumindo uma tendência esquerdista.  As empresas de redes sociais alegam, por sua vez, que tais leis violam sua autonomia editorial e que as leis aprovadas na Flórida e no Texas violavam o direito à liberdade de expressão, que incluía a liberdade das empresas privadas de decidirem que conteúdo publicar em suas plataformas.

Segundo Henry Whitaker, procurador-geral da Flórida e defensor da lei estadual, as plataformas de mídia social não podem invocar o direito à Primeira Emenda para justificar a aplicação de suas políticas de moderação de conteúdo. Ele argumenta que há uma clara seletividade na moderação dos discursos, o que questiona a neutralidade dessas plataformas. Whitaker salienta que, embora essas plataformas tenham inicialmente se promovido como fóruns neutros para a liberdade de expressão, elas agora estão abandonando essa postura.

Assim, ele sustenta que as empresas de tecnologia não têm o direito garantido pela Primeira Emenda de censurar qualquer conteúdo em seus sites, uma vez que o propósito da Primeira Emenda é evitar a supressão do discurso. Em vista disso, ele propõe que as plataformas de redes sociais sejam tratadas como “operadoras comuns”, semelhantes às companhias telefônicas, que simplesmente transmitem as comunicações de seus assinantes. Não deveriam, portanto, serem autorizadas a discriminar usuários com base em suas opiniões.

O advogado representante dos grupos de tecnologia, Paul Clement, contrapôs os defensores das leis estaduais, argumentando que essas empresas de tecnologia, especialmente as redes sociais, desempenham um papel análogo ao de jornais. Nesse sentido, sustentou que tais plataformas devem exercer discernimento editorial para aprimorar a utilidade dos sites tanto para os usuários quanto para os anunciantes. Nesse contexto, Clement enfatizou que a legislação do Texas que preconiza a neutralidade, ao proibir a discriminação de perspectivas, implicaria que as empresas poderiam ser forçadas a publicar todo tipo de conteúdo questionável, incluindo postagens antissemitas e pró-suicídio.

Discurso de ódio: Uma política do performativo eBook : Butler, Judith, Viscardi, Roberta Fabbri: Amazon.com.br: Livros

Alguns aspectos cruciais surgiram durante a discussão, merecendo atenção especial, como a questão do discurso de ódio e a nocividade de determinados discursos para o sistema democrático dos EUA. Evidências demonstram que certas expressões verbais podem intensificar animosidades políticas, culminando, em alguns casos, em episódios de violência política, como destaca a especialista em filosofia política, Judith Butler em seu livro Discurso de ódio: Uma política do performativo (Editora Unesp, 2021). Portanto, esses elementos merecem ser minuciosamente analisados e debatidos, considerando-se seu impacto potencial na estabilidade do regime democrático americano.

Desafios na delimitação judicial

Fica claro que há uma lacuna na participação de partes relevantes nos debates travados na Suprema Corte, incluindo especialistas em redes sociais e desinformação. A única exceção até o momento foi o juiz Brett Kavanaugh, da ala conservadora da Casa, que abordou questões relacionadas a como a legislação do Texas seria aplicada a discursos que endossam ou promovem o terrorismo.

No decorrer dos procedimentos, tornou-se evidente que os juízes enfatizaram a importância de aprofundar a discussão acerca da distinção entre mensagens diretas em sites de comércio eletrônico e fóruns de redes sociais mais tradicionais. Um exemplo notável dessa preocupação reside na necessidade de discernir entre as mensagens veiculadas no Instagram e aquelas trocadas pelo usuário com prestadores de serviços, como o Uber. O desafio destacado pelos magistrados residia na complexidade de diferenciar claramente essas comunicações, sublinhando a necessidade de um exame minucioso para estabelecer critérios claros que garantam uma aplicação justa e precisa da legislação em questão.

Em muitas ocasiões, percebeu-se uma certa confusão entre os juízes, ao tentarem decidir sobre o assunto, dada a complexidade e as ramificações potenciais de uma aplicação generalizada da legislação. A também conservadora juíza Amy Coney Barrett, por exemplo, ressaltou a importância de se considerar como uma decisão poderia impactar outras plataformas, como Uber e Etsy, enfatizando a necessidade de analisar o estatuto como um todo.

Outro ponto crucial que se destacou foi a importância de se aprofundar as distinções entre as plataformas de redes sociais e os jornais. A juíza observou as diferenças significativas entre a funcionalidade de propagar notícias do Facebook, exemplificando com clareza as nuances existentes em comparação com outros elementos da plataforma, ressaltando a complexidade das questões em jogo e a necessidade de uma análise cuidadosa para evitar generalizações inadequadas.

Nesse contexto, o juiz Samuel A. Alito Jr. enfatizou a ausência de listas específicas que determinam quais plataformas estariam abrangidas pela lei da Flórida, assim como as diversas funções desempenhadas por esses serviços. Ele levantou a possibilidade de remeter o caso para uma revisão mais aprofundada nos tribunais inferiores, especialmente para discutir questões cruciais, como a extensão e a aplicação da lei a outros serviços tecnológicos, incluindo mensagens diretas e e-mails.

(Arquivo) Ao lado do presidente George W. Bush, Samuel A. Alito Jr. reconhece sua nomeação como juiz associado da Suprema Corte dos EUA, em 31 out. 2005 (Crédito:  Records of the White House Photo Office, George W. Bush Administration/Wikimedia Commons/National Archives)

Deste modo, a constatação unânime entre juízes liberais e conservadores foi que a legislação da Flórida, formulada de maneira mais abrangente em comparação com a lei do Texas, aparenta ter implicações mais amplas que ultrapassam os limites da proteção da Primeira Emenda à liberdade de expressão. Em particular, mencionaram que a lei da Flórida poderia abranger empresas como Uber ou Etsy, que não se envolvem na publicação ativa de conteúdo.

A polêmica Seção 230

Acontece que a lei federal conhecida como Seção 230 da Lei de Decência nas Comunicações oferece proteção significativa às plataformas, isentando-as, em grande parte, de ações judiciais relacionadas ao conteúdo gerado pelo usuário. Além disso, essa legislação assegura imunidade legal pelas decisões de moderação de conteúdo. No entanto, os legisladores têm criticado essa lei, argumentando que ela torna difícil responsabilizar as plataformas por danos no mundo real decorrentes das publicações realizadas nelas, como a venda de drogas on-line e a disseminação de vídeos terroristas.

Nesse sentido, as proteções estabelecidas pela Seção 230 desempenham um papel fundamental na determinação de como os tribunais devem interpretar as leis do Texas e da Flórida, que propõem uma nova forma de responsabilidade legal para as plataformas, caso removam conteúdo específico ou desativem determinadas contas. Os grupos tecnológicos argumentam que, na verdade, a linguagem da Seção 230 confere às plataformas on-line um certo poder editorial sobre seus produtos, o que constitui o cerne de sua oposição às leis do Texas e da Flórida.

A problemática também tem sido uma fonte de preocupação no Congresso, no que diz respeito à regulamentação das redes sociais e das empresas de Internet. Tanto legisladores quanto juízes frequentemente enfrentam o desafio de lidar com tecnologias em constante evolução, uma vez que não são especialistas no funcionamento detalhado desses campos dinâmicos. Isso representa um sério desafio para os esforços de acompanhamento e controle dessas indústrias em rápida transformação.

Ao longo de um quarto de século desde que a Internet se tornou uma força vital na sociedade americana, as estruturas jurídicas e políticas dos EUA continuam a demonstrar dificuldades em abordar os intrincados desafios que essa transformação apresenta. O cenário que se delineou na era analógica da mídia eletrônica permanece carente de uma teoria jurídica unificada e de uma linguagem apropriada para aprofundar as discussões.

 

* Lauro Henrique Gomes Accioly Filho é mestrando do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Contato: lauro.henrique.gomes.accioly@aluno.uepb.edu.br.

** Revisão e edição finais: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 4 mar. 2024. Este Informe OPEU não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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