Brasil

BRICS ampliado, a agenda do Sul e o possível papel do Brasil

(Da esq. para dir.) Presidentes Luiz Lula da Silva, Xi Jinping (China) e Cyril Ramaphosa (África do Sul); premiê indiano, Narendra Modi; e chanceler russo, Serguei Lavrov, na cúpula do BRICS, em Johanesburgo, em 22 ago. 2023 (Crédito: Gabinete do premiê indiano, GODL-India)

Por Rafael R. Ioris* [Informe OPEU]

Desde que retornou à Presidência, Lula tem tentado equilibrar viagens junto a parceiros tradicionais ao mesmo tempo em que tem buscado reavivar antigos projetos ligadas à chamada agenda do Sul. Em seu primeiro mês no cargo, participou de uma reunião da Comunidade de Nações da América Latina e Caribe (Celac), na Argentina, onde manifestou o desejo de fortalecer as relações do Brasil na região. Logo depois, Lula visitou o presidente Joe Biden em Washington, onde os dois líderes expressaram seu desejo mútuo de promover a democracia e pressionar por um caminho de desenvolvimento ambientalmente mais saudável, em particular na região amazônica. Em seguida, fez uma ambiciosa visita à China, a fim de aprofundar as relações comerciais e tentar liderar um esforço de paz para a guerra na Ucrânia. Tais ações acabam de assumir maior relevância e magnitude.

De fato, após muita especulação em torno de um suposto baixo prospecto de atuação em comum, o encontro do BRICS em Joanesburgo, na África do Sul, no final de agosto passado, surpreendeu a todos, após ter produzido uma mudança histórica na dinâmica do próprio grupo. E, embora tudo indique que não tenha sido uma negociação fácil, caso todos países aceitem efetivamente o convite para fazerem parte do bloco, a partir de 1º de janeiro de 2024, o BRICS terá 11 países-membros que, somados, representam cerca de quase metade da população mundial, detendo também um terço do PIB global e representando países espalhados em distintas partes do globo.

Muito tem sido dito sobre as dificuldades que um grupo tão díspare de países terá para seguir adiante na promoção de uma agenda comum. Lembremos, contudo, que o BRICS nunca representou e, certamente, nunca se constituiu como uma aliança, ou união aduaneira formal – para citar dois dos principais formatos tradicionais de agrupamentos regionais de países.

De maneira concreta, caberia também lembrar que o termo BRIC(S) surgiu como uma sigla para se referir a um agrupamento de países (inicialmente Brasil, Rússia, Índia e China) que, apesar de grandes diferenças entre si, apresentavam, no começo dos anos 2000, boas oportunidades de investimento para os detentores de capital do centro do capitalismo global. Ou seja, ironicamente, a expressão que hoje reflete uma coalizão de países crescentemente críticos da ordem geopolítica e econômica liberal estabelecida no Pós-Guerra – que tem estado crescentemente em xeque, mas que, não obstante, ainda pauta, em grande medida, o curso da globalização neoliberal dos últimos anos – foi cunhada como instrumento que refletia a lógica mercadológica de um mundo liderado pelo G7 (países capitalistas mais ricos do mundo).

Interessantemente, ao longo dos últimos 15 anos, os países referenciados pela sigla passaram a se valer da mesma não para corroborar a intenção original da expressão, ou seja, garantir a atratividade de seus mercados para o benefício do grande investidor internacional, mas sim utilizando-a como forma de buscar articular uma melhor inserção conjunta dentro da economia e da ordem política mundiais, crescentemente, inclusive, questionando-a de maneira crítica e sistemática. Tal processo foi no início bastante lento, mas se acelerou de maneira significativa em tempos recentes, refletindo claramente novas dinâmicas nas relações internacionais do mundo de hoje.

De maneira concreta, o primeiro encontro do grupo foi em Ekaterinburgo, na Rússia, em 2009, quando ocorreram conversas iniciais sobre a necessidade de diversificar o uso de moedas em transações comuns. A entrada da África do Sul, em 2011, significou a ampliação na própria sigla, que passou a ser, por fim, BRICS.

(Arquivo) Retrato de família na primeira cúpula BRICS, em 16 jun. 2009 (Crédito: Gabinete do premiê indiano/Wikimedia Commons)

Ampliação do BRICS e reordenamento mundial

Agora, após o último encontro em Joanesburgo, com a decisão de sua ampliação, ficou evidente que se trata de um grupo de países disposto a se tornar cada vez mais relevante no cenário internacional, inclusive por meio do aprofundamento da promoção de novos arranjos econômicos e políticos que possam representar de maneira mais efetiva as mudanças no peso de atores específicos fora do eixo do Atlântico Norte, assim como as novas dinâmicas econômicas e geopolíticas em curso. Aventou-se que a decisão da ampliação no número de membros teria derivado e beneficiado quase que exclusivamente a China, o grande rival da ordem de poder liderada pelos EUA. Outros ainda apontam que sua expansão apresentaria novos desafios específicos à atuação internacional do Brasil dentro e fora do grupo.

Tais visões têm procedência e, de fato, não surpreendem uma vez que, ao longo da última década, quando da consolidação do grupo, o peso da China na economia e geopolítica mundiais aumentou em níveis históricos, ao passo que a relevância do Brasil, especialmente entre 2015 e 2021, diminuiu de maneira vergonhosa. No mesmo sentido, caberia lembrar que uma maior representatividade do Sul Global poderia vir a ser efetivada, caso países como Indonésia, Malásia, Nigéria, Senegal, México, Colômbia, entre outros, fossem incluídos no grupo.

De todo modo, parece certo que, independentemente de quem a ampliação do BRICS beneficie, em maior ou em menor grau, o encontro histórico em Joanesburgo tornou ainda mais evidente a urgência de um reordenamento na dita ordem mundial – de fato, cada dia mais fora de ordem. As democracias liberais ocidentais parecem enfrentar hoje uma de suas maiores crises desde, pelo menos, os anos 1960. O autoritarismo que, corretamente, as lideranças de tais países criticam em vários membros do BRICS, parecem se tornar moeda corrente de líderes que, a cada dia mais, viabilizam-se como futuros chefes de governo, como Donald Trump e Marine Le Pen (para não citar Giorgia Meloni e Viktor Orbán). E não será, pois, pela partilha de acusações mútuas entre lideranças do G7 e do BRICS acerca de que lado seria mais contraditório em suas proposições e práticas que novos arranjos, tão necessários, poderão, talvez, vir a ser efetivados.

Assim, seria imprescindível termos uma expansão da agenda e a ampliação de espaços formais de deliberação, onde vozes ampliadas e diversas possam ser levadas efetivamente em consideração no processo de tomada de decisão de temas que impactam a comunidade global como um todo. Estes incluem questões há muito em pauta, como comércio e fluxos financeiros internacionais, mas têm, cada vez mais, de incluir também temas sempre relegados a um segundo, ou terceiro plano, como aqueles ligados ao problema da crescente desigualdade dentro e entre países, assim como à questão da fome, das migrações etc. O que vê, pois, é que, apesar de todas as mudanças no processo de integração econômica (em matrizes neoliberais) ao longo dos últimos 50 anos, a demanda por uma Nova Ordem Econômica Internacional (NOEI) mais inclusiva se apresenta cada vez de maneira mais clara nos dias de hoje.

Embora dentro de um contexto geopolítico muito distinto, a noção da necessidade de espaços de deliberação mais inclusivos nos remete, interessantemente, aos anos de 1960 e 1970, a chamada “Década do Desenvolvimento”, quando vimos a explosão de novas pautas políticas, econômicas e simbólicas que forçavam os limites e o funcionamento da democracia liberal, assim como a pauta e os debates ocorrendo nas esferas internacionais. Foi quando estudantes, minorias raciais, mulheres, jovens, trabalhadores tomaram as ruas de Paris, Dacar, Rio de Janeiro e Cidade do México, e diplomatas não ocidentais passaram a ocupar cadeiras na Assembleia Geral das Nações Unidas, dentro de um processo que questionava o funcionamento da economia capitalista global e, acima de tudo, a rígida e excludente bipolaridade em curso.

Se, na América Latina, tais questionamentos ficaram, em geral, mais restritos ao nível doméstico no que tange à busca pela reorganização de suas economias em bases industriais, na Ásia e na África, de maneira especial, tais esforços se alinharam de maneira mais coordenada em ações coletivas transnacionais que tiveram em Bandung, em 1955, e em Belgrado, em 1961, marcos importantes na busca por arranjos multilaterais mais inclusivos e representativos dos interesses de populações mais amplas e diversas.

undefined(Arquivo) Sessão plenária na Conferência de Bandung, 1º jan. 1955 (Crédito: Ministério das Relações Exteriores da Indonésia/ Wikimedia)

Como a história nunca se repete da mesma forma, não se trata aqui de dizer que o BRICS seja a culminação linear de um projeto de longa gestação. A agenda por uma NOEI teve, de um ponto de vista formal, seu apogeu no início dos anos 1970 e foi, por fim, abandonada já no final da própria década, ou no início dos anos 1980, quando países do Sul passaram a enfrentar dificuldade econômicas profundas que favoreceram a busca por “soluções” individuais para negocias seus endividamentos crescentes. Da mesma forma, o centro capitalista mundial, liderado pelos EUA, conseguiu, após o fiasco no Vietnã, marginalizar a temática do desenvolvimento da pauta das agências multilaterais, ao passo que o reaganismo liderou o processo de financeirização da economia mundial, assumindo uma postura mais confrontacionista ante o Bloco Socialista. Com isso, vemos o reaquecimento da Guerra Fria.

Parece mesmo certo afirmar que o projeto de uma governança mais inclusiva, apresentado há mais de 50 anos, pode ter pecado por seu caráter talvez demasiadamente utópico, dado que as esferas de poder talvez não estivessem prontas para aceitar a incorporação das demandas dos jovens que queriam tomar o poder em 68. No mesmo sentido, as esferas internacionais de poder não estavam prontas para a realidade de um mundo menos ocidental e que exigia que o comércio se desse em termos menos desiguais, que houvesse maior transferência de tecnologia para os países pobres, e que o armamentismo fosse substituído pelo combate à fome e à pobreza.

Se então foi assim, o interessante é que presenciamos, hoje, a existência de um mundo já bem menos ocidental, ou, pelo menos, um mundo bem mais complexo, onde, se profundas desigualdades entre países ainda existem, novos atores estatais não ocidentais agora competem abertamente pela influência, talvez mesmo predominância, em diversas áreas do globo. Se tal realidade será suficiente para permitir a retomada de esforços coletivos por rearranjos nos ordenamentos do sistema internacional, é algo ainda incerto.

E, embora em algumas áreas estejamos presenciando a existência de uma realidade multipolar, a crescente rivalidade, não apenas econômica, entre Estados Unidos e China, parece nos apresentar os contornos de uma possível emergente nova Guerra Fria, com impactos globais. Da mesma forma, até o momento, o BRICS, mesmo que ampliado, ainda não nos permite afirmar que o grupo incorpora, de fato, as demandas representativas do Sul Global como um todo, como os países Não Alinhados talvez pudessem pretender fazê-lo de maneira mais plausível.

Peso e contribuição do Brasil

De todo modo, especialmente dado que vários outros países, além dos cinco novos membros (Egito, Irã, Etiópia, Arábia Saudita e Emirados Árabes), estariam interessados em se juntar ao grupo, temos, sim, a possibilidade crescente de uma maior representatividade de vozes – algo que tenderá a enriquecer a pauta de demandas, mesmo que haja um grande desnível no peso de países específicos dentro do bloco. Ao mesmo tempo, um BRICS ampliado requererá grande habilidade de negociação interna, assim como canais de diálogo com os países centrais da ordem hegemônica decadente, mas ainda em funcionamento. E é aqui que, mais do que nas experiências dos anos 1960 e 1970, o Brasil poderia ocupar um papel-chave, desde que suas lideranças estejam à altura das necessidades do complexo mundo de hoje.

Lembremos que a política externa brasileira tem tido, nos últimos anos, o desafio de navegar entre o apoio às demandas por reformas nas estruturas de poder centrais e não alienar parceiros tradicionais. Vivenciamos uma realidade similar, nos anos 1970, momento do crescente peso econômico brasileiro no mundo. Se, então, não conseguimos administrar muito bem tal dilema, muito se deveu ao fato de estarmos submetidos a uma ditadura de direita alinhada aos interesses do bloco ocidental.

Nos últimos 30 anos, contudo, nossa diplomacia se mostrou, com raras exceções, muito mais criativa ao conseguir manter bons níveis de relacionamento com aliados históricos e, ao mesmo tempo, ampliar o espectro de parcerias no Sul Global. Além do BRICS, o Brasil aumentou sua presença em países no continente africano, assumiu um papel central no IBAS e, mesmo no G20, tem trabalhado para que temas centrais dos países do Sul, como o combate contra a desigualdade e a fome, assumam maior relevância.

Nesse sentido, após a destruição e o isolamento da extrema direita neofascista, a relevância do Brasil no cenário tem sido resgatada de maneira eficiente e supreendentemente rápida. Manter a linha de equilíbrio que tem sido buscada por Lula, contudo, não será fácil. O mundo de hoje se encontra em rápida transformação, no qual a lógica geopolítica, por vezes indo às vias de fato da guerra, tem assumido peso maior desde, pelo menos, o final dos anos 1980.

A rivalidade entre China e EUA tem potencial de assumir cada vez mais contornos de conflito aberto, e o Brasil terá dificuldade para ser visto, ao mesmo tempo, como membro-chave do BRICS e representante privilegiado das demandas do Sul, e interlocutor crucial e aliado, ou pelo menos parceiro comercial tradicional do Ocidente. Tal desafio se aprofundará na medida em que o grupo venha, talvez, a assumir posições mais abertamente confrontacionais em relação ao Ocidente.

Muito dependerá, pois, do peso e da capacidade de articulação que o Brasil conseguirá manter dentro do grupo. Uns entendem que tal peso nunca foi, de fato, significativo. E parece certo que tal peso esteja hoje diminuindo, especialmente frente ao maior peso mundial da Índia, assim como ante a provável dissolução do poder de voto do Brasil dentro de um grupo ampliado e crescentemente sob a inegável liderança da China.

Ainda assim, pelo menos sob a hábil e carismática batuta de Lula, o Brasil não teve, pelo menos até o momento, de submeter suas posições a fim conseguir ter influência dentro do BRICS. No mesmo sentido, a liderança brasileira no Novo Banco de Desenvolvimento, ou Banco do BRICS, certamente ajudará a manter a relevância brasileira na promoção de uma ambiciosa agenda que busca não apenas repensar a ordem internacional em sua dimensão econômica, mas também geopolítica.

Logo do Novo Banco de Desenvolvimento do BRICS, na sede da instituição, em Xangai (Crédito: Bb3015/ Wikimedia Commons)

Sim, a expansão do BRICS se deu junto a países que, com raras exceções, não têm um bom histórico no que se refere ao respeito aos direitos humanos fundamentais de todos seus cidadãos. Mas o fato de o Brasil se encontrar em um momento de reconstrução de sua própria democracia – embora aumentem as dificuldades e a carga de trabalho a fim de tentar conciliar as agendas doméstica e internacional – representa um momento de oportunidade de promover tais valores e direitos em ambas as esferas.

No mesmo sentido, dadas as incertezas e a volatilidade crescente do cenário internacional, será um grande desafio para a diplomacia brasileira conseguir conciliar as demandas e as pressões do G-7 com as expectativas crescentes de um BRICS ampliado. Será, pois, necessário que as lideranças brasileiras de hoje e dos próximos anos tenham claro os desafios, mas também as oportunidades, de um mundo mais complexo e crescentemente conflituoso. Imprevisibilidade e riscos fazem cada vez mais parte do dia a dia da política internacional.

A democracia liberal se encontra em crise, e o autoritarismo atrai adeptos ao redor do mundo. Dentro desse cenário, um país com um histórico de bom diálogo no plano internacional poderá vir a ser valorizado como interlocutor privilegiado para que canais de diplomacia, cada vez mais necessários, sejam mantidos. Encontrar eixos temáticos para trabalhar com grupos de países em questões específicas – como, por exemplo, governança ambiental, no G-20 e junto ao G-7, e combate à desigualdade dentro do BRICS – poderá ser o caminho mais viável, pelo menos no curto prazo.

Se temos habilidade para trabalhar no sentido de tentar dar respostas aos imensos desafios do presente, precisaremos também ter o elemento de coragem que um grande diplomata já nos alertava há tempos. Somente assim poderemos consolidar nossa relevância dentro de um mundo cambiante, onde será cada vez mais necessário promover a paz, assim como maiores níveis de inclusão dentro e entre os diversos países ao redor do globo.

 

* Rafael R. Ioris é professor de História e Política da Universidade de Denver, nos EUA, e pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU).

** Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. 1ª versão recebida em 15 dez. 2023. Este Informe OPEU não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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