China e Rússia

Poder e Legado no Kissinger Institute

Crédito: Wilson Center

Por Pedro Sena Pederneiras*

Em 29 de julho de 2008, o think tank Wilson Center inaugurou o Kissinger Institute on China and the United States, uma instituição de pesquisa voltada para a análise das relações entre China e Estados Unidos e da influência de ambos no sistema internacional. O Kissinger Institute estabelece como sendo sua missão “garantir que o engajamento informado continue a ser o alicerce das relações EUA-China”. O instituto foi liderado em conjunto por duas figuras de destaque na história política das duas nações: Xu Kuangdi, ex-prefeito de Xangai e presidente da China-America Friendship Association, e Henry Kissinger, ex-secretário de Estado americano, falecido no último 29 de novembro.

As relações bilaterais entre China e EUA sempre foram um dos temas mais abordados por Kissinger em seus escritos, talvez por considerar a aproximação entre o governo americano e o governo chinês durante a gestão de Richard Nixon o maior feito de sua carreira. Mas talvez também por ver na exposição desse feito uma forma de limpar seu legado. Os anos finais da vida do ex-secretário de Estado foram, em grande parte, dedicados a moldar a forma como seria lembrado após sua morte. Não é possível saber exatamente o que se passava pela mente de Kissinger, mas podemos inferir que uma de suas principais obsessões era a forma como os livros de história iriam julgar suas ações, a maneira como as futuras gerações iriam se lembrar de Henry Kissinger, o criminoso de guerra. Exaltar sua condução da gênese de uma relação pacífica entre o centro do capitalismo global e um governo radicalmente comunista pode ter sido o caminho que Kissinger encontrou para criar uma memória positiva de si. A figura de um diplomata pacifista é criada para substituir a imagem de um estadista amoral.

De fato, o instituto, assim como o próprio Kissinger em seus últimos anos de vida, sustenta em suas publicações que a cooperação entre os EUA e a China seria mais favorável para ambas as potências do que o cenário atual de antagonismo e agressividade crescentes. Entre suas recomendações para os tomadores de decisão da política externa americana, as últimas publicações do Kissinger Institute incluem propostas como reduzir as barreiras contra a atração de investimentos e produtos chineses, abandonar as pressões sobre o governo chinês na tentativa de torná-lo menos autoritário, estimular o engajamento entre os entes subnacionais dos dois países e transmitir ao governo de Pequim a mensagem de que os EUA não desejam impedir a ascensão chinesa.

Não há problema em se defender um movimento de maior cooperação entre os EUA e a China em um contexto em que a rivalidade entre ambos se mostra deletéria para a economia dos dois países e para a segurança de todo o globo. De fato, no período de possível transição de poder em que nos encontramos, onde a cessão da hegemonia global dos Estados Unidos para a China se torna um cenário cada vez mais provável, executar esse processo de maneira pacífica talvez seja a opção mais benéfica para os Estados Unidos. Afinal, a transição de poder é uma característica inerente ao sistema internacional. Nenhum Estado se mantém hegemônico eternamente, e a passagem deste posto de maneira forçosa inevitavelmente leva a conflitos devastadores, como podemos concluir pela análise de diversos exemplos históricos. Talvez a escolha do governo americano por aceitar a inevitabilidade de sua perda de poder e aproveitar este momento para obter o máximo de vantagens possíveis no processo seja realmente a melhor alternativa para os próprios Estados Unidos e para a comunidade internacional como um todo.

Interesses americanos

Esta não é, porém, a retórica que se esperaria do maior representante do realismo político americano. Kissinger passou toda a sua carreira como estadista, opondo-se à visão do liberalismo internacional de cooperação para ganhos mútuos como sendo o caminho mais vantajoso para todas as nações envolvidas. Suas ações como secretário de Estado sempre visaram unicamente aos interesses dos EUA em detrimento dos interesses de qualquer outra potência global. Assim, quando analisamos superficialmente as publicações de seu instituto de pesquisa, poderíamos estranhar o frequente apoio a ações de cooperação entre Washington e Pequim. Mas, analisando com mais detalhe, vemos que as recomendações dos autores do instituto possuem muito da visão americocêntrica de Kissinger. Os interesses americanos, e não os interesses compartilhados da comunidade internacional, são sempre o principal objetivo de todas as propostas apresentadas pelos autores do Kissinger Institute. Quando uma iniciativa do governo de Pequim aparenta servir aos interesses do Estado chinês em detrimento dos interesses americanos, as orientações dos acadêmicos se aproximam da tomada de atitudes mais combativas.

O mesmo artigo que recomenda uma maior colaboração entre os governos subnacionais americanos e chineses também adverte quanto à possibilidade de que o Partido Comunista Chinês use destes projetos de colaboração como instrumentos de expansão de sua zona de influência sobre os EUA por meio da espionagem e do desenvolvimento de sua força militar. Assim, além de propor a cooperação entre os governos locais de ambos os países, também sustenta que o governo americano deve agir para que esta cooperação não seja usada pela China como uma ferramenta para sua ascensão.

Já o artigo que defende a redução de barreiras ao comércio e ao fluxo de capitais com a China afirma que um dos fins dessa medida seria desviar os investimentos chineses para países do Sul Global, como as nações latino-americanas. Dessa forma, os EUA seriam capazes de manter sua influência sobre essas nações, reduzindo a zona de influência chinesa. O objetivo maior da cooperação entre EUA e China não seria, portanto, o estabelecimento da paz e o crescimento simultâneo dos dois países, mas sim a limitação do poder político chinês.

A função política do instituto costuma ser ocultada por uma aparência acadêmica benéfica. Isto é feito por grande parte dos think tanks de política externa, os quais têm como propósito real o desenvolvimento de estratégias a serem usadas no jogo de poder internacional. Uma declaração oficial do Kissinger Institute afirma: “O Kissinger Institute trabalha para garantir que a política chinesa sirva aos interesses americanos a longo prazo e se baseie na compreensão dos fatores históricos e culturais nas relações bilaterais e na avaliação precisa das aspirações do governo e do povo da China”. Portanto, ao mesmo tempo em que o instituto admite que busca moldar a política externa americana e as ações do governo chinês, de modo a se alcançar as ambições próprias dos Estados Unidos, adota-se também um discurso que destaca fins de progresso científico e de manutenção das relações bilaterais entre os dois países. É possível que esse posicionamento busque não apenas ocultar a instrumentalização do instituto para os propósitos do governo americano, mas também ajudar a construir uma imagem mais pacífica da figura de Henry Kissinger.

Apesar de todos os seus esforços, porém, é muito improvável que Kissinger seja esquecido como um dos maiores corruptores do realismo internacional. O realismo não é uma teoria normativa, mas sim descritiva. Sua pretensão nunca foi indicar o caminho que os Estados deveriam seguir no caótico mundo da política internacional, mas sim buscar compreender a natureza e o funcionamento desse mundo. Mas, para Henry Kissinger, a realidade descrita com pesar por Edward Carr e Hans Morgenthau, marcada por um mundo dominado por Estados amorais que agem unicamente de acordo com seus próprios interesses, não seria trágica, mas útil. A vida de Kissinger foi dedicada à busca pela expansão do poder americano e ao cumprimento de suas ambições pessoais. As instituições voltadas para o campo da política internacional eram instrumentos a serem utilizados nesse projeto. Seu instituto é apenas mais um deles.

 

* Pedro Sena Pederneiras é pesquisador colaborador do INCT-INEU/OPEU e graduando em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais e Defesa (IRID/UFRJ). Contato: psena9898@gmail.com.

** Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. 1ª versão recebida em 21 dez. 2023. Este Informe OPEU não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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