Internacional

Guerra da Ucrânia e o jogo de percepções entre Moscou, Pequim e Washington

Crédito: everyonephoto/Flick

Dossiê Guerra na Ucrânia Ano I

Por Matheus de Freitas Cecílio* [Informe OPEU]

Iniciado em 24 de fevereiro de 2022, o conflito na Ucrânia completou um ano de duração. O impacto da invasão russa sobre o sistema interestatal contemporâneo e sobre a geopolítica global dificilmente pode ser superestimado. A rápida resposta escolhida pelos Estados Unidos e pelos demais parceiros ocidentais, no sentido de armar e apoiar a Ucrânia, tem tido repercussões globais. De maneira decisiva, os principais atores do sistema têm sido instados a uma interpretação do conflito, cerrando, assim, linhas em torno de projetos antagônicos que parecem dar o toque da disputa interestatal que toma corpo no século XXI.

É nesse contexto que a amizade “sem limites” sino-russa adquire sua importância e pode nos ajudar a entender o papel do “jogo de percepções” desempenhado por Moscou, Pequim e Washington. Partindo do atual cenário ucraniano, procuramos demonstrar que tem sido elemento recorrente de chefes de Estado usar de maneira tática a percepção de Washington sobre a real força da cooperação entre China e Rússia. Em específico, resgatamos aqui os acontecimentos ligados à Segunda Crise do Estreito de Taiwan.

Percepções de Washington sobre a aliança sino-russa

No caso ucraniano, é inegável que um dos pontos importantes sobre o conflito tem sido a crescente indagação americana e ocidental com a postura da China em relação à guerra, seja pela mídia, seja pelo debate especializado.

Handle with caution: Chinese President Xi Jinping with Russian President Vladimir Putin in 2019Presidente chinês, Xi Jinping, e seu homólogo russo, Vladimir Putin, em 2019 (Crédito: kremlin.ru / Wikimedia Commons)

Um dos aspectos mais importantes que perturbavam a percepção ocidental sobre o papel que a China desempenharia no conflito foi a assinatura, entre Pequim e Moscou, do Tratado de Amizade sem Limites. Tal tratado bilateral foi firmado em 4 de fevereiro de 2022, pouco antes, portanto, da invasão russa. O mesmo tem contribuído para criar a impressão de uma China totalmente ciente das intenções moscovitas e mesmo, quem sabe, apoiadora delas.

Um exemplo histórico relevante que pode nos ajudar a lançar luz sobre o presente é analisar a maneira como Mao conseguiu usar Khrushchev para seus próprios objetivos estratégicos no passado, e como Washington pode, frequentemente, ser tragada para um jogo de cenas, ou percepções, do qual não conhece todos os detalhes.

Paralelo histórico com a Segunda Crise do Estreito de Taiwan

Em plena Guerra Fria, o sucesso da Revolução Chinesa em 1949 havia transformado o Leste Asiático em um hotspot geopolítico. A Guerra da Coreia já marcava a posição dos Estados Unidos, comprometidos com a Doutrina da Contenção, que informava a estratégia americana para o embate contra a União Soviética. Adicionalmente, o recuo dos nacionalistas chineses do Kuomintang em direção à ilha de Taiwan inaugurava um desafio que tem pautado a geopolítica da região desde então.

Em 1958, no contexto da Segunda Crise do Estreito de Taiwan, Mao esperou a ida de Khrushchev a Pequim antes de intensificar avanços contra Taiwan e as ilhas Quemoy. Dava, assim, a impressão, para os Estados Unidos, de que o líder soviético sabia das intenções de Mao e possivelmente as teria chancelado.

Naquela ocasião, a ruptura sino-soviética já caminhava a passos largos, e a relação entre Mao e Khrushchev não era das melhores. O “Discurso Secreto” e a denúncia do stalinismo avançados por Khrushchev haviam sido muito mal recebidos em Pequim. A presença de Khrushchev em Pequim semanas antes da intensificação do bombardeio contra as ilhas Quemoy comunicou a Washington, porém, que o líder soviético muito provavelmente havia discutido e chancelado essa questão durante sua estada na China.

Sobre a china | Amazon.com.brEm Sobre a China (Editora Objetiva, 2011), Kissinger resumiu a questão: “… Khrushchev visitou Pequim três semanas antes da Segunda Crise do Estreito de Taiwan […] da mesma maneira em que ele esteve lá durante as primeiras semanas da primeira crise, quatro anos antes. Em nenhum dos casos Mao tinha revelado as suas intenções aos soviéticos tanto antes quanto durante a visita. Em cada instância, Washington assumiu – e Eisenhower mesmo afirmou isso em uma carta a Khrushchev – que Mao estava agindo não só com o apoio da URSS, mas mesmo a mando dela”.

Isso tudo apesar de, na realidade, as relações sino-russas estarem em franca decadência.

Ao longo dos anos 1960, elas continuariam a piorar, culminando com um conflito de fronteira. E, na década seguinte, a liderança chinesa já estaria totalmente convencida de que a URSS representava um risco maior para a China do que os Estados Unidos, o que a levaria a optar por uma aproximação com Washington. Ou seja, a despeito desses fatores, Mao conseguiu fazer parecer que havia uma relação entre Pequim e Moscou muito mais sólida do que, de fato, era.

Essa impressão em Washington foi importante para levar os americanos a reabrirem negociações de alto nível com a China, uma vez que, por meio dessa estratégia, Mao havia conseguido levar a União Soviética a apoiar os chineses, passando a imagem de união bilateral, mesmo que de forma involuntária para Moscou.

Passados 60 anos, Putin parece ter aprendido a lição com o líder revolucionário chinês, já que desencadeou a invasão à Ucrânia semanas após a visita de Xi Jinping. Nela, foi assinado um Tratado de Amizade Sem Limites entre os dois países, sugerindo para Washington e para o Ocidente de forma geral, que o atual líder chinês soubesse das intenções moscovitas e, quem sabe, tenha-lhes mesmo chancelado. Conforme sugerido no início, este tema tem sido exaustivamente debatido nos círculos ocidentais.

É importante notar que, conforme mostra o trabalho de Ariel Shangguan, o próprio termo “amizade sem limites” não é politicamente neutro. As autoridades chinesas têm traduzido “amizade” como “amigabilidade” em todos os seus tratados com URSS e Rússia desde meados do século XX, sugerindo, talvez, que pretendem rebaixar um pouco o perfil de cooperação.

Como afirma Shangguan, isso teria a ver com a má experiência de Pequim com as “sociedades de amizade” da Rússia Soviética. Os chineses teriam visto nessas instituições um exemplo da arrogância soviética em relação à experiência socialista na China. Tal episódio negativo marcou, segundo o autor, a liderança do Partido Comunista da China (PCC), motivando-o, sistematicamente, a evitar a palavra “amizade” em seus tratados com0 a Rússia.

Apesar da passagem de mais de meio século entre os acontecimentos da Segunda Crise do Estreito de Taiwan e da Guerra da Ucrânia, o mesmo lance de política externa, dessa vez invertido, sendo jogado sugere a continuada centralidade estratégica de China, Rússia e Estados Unidos. E reforça, adicionalmente, o papel crucial garantido, pelos atores do sistema, à percepção de Washington.

Jogo de percepções dentro da diplomacia triangular: passado e presente

Sendo assim, sustentamos que China e Rússia continuam a desempenhar papéis neste “jogo de percepções” em relação a Washington. Conforme demonstramos, Pequim pôde auferir um enorme ganho estratégico no contexto da Segunda Crise do Estreito de Taiwan, valendo-se apenas do timing da visita de Khrushchev. Procurou, com isso, indicar aos americanos que Moscou estava ciente e aprovava os esforços chineses em seus avanços sobre Taiwan e no bombardeio sobre Quemoy. Sustentamos, também, que talvez Putin tenha se valido da mesma estratégia, optando por iniciar a invasão pouco tempo após a visita de Xi Jinping, como uma maneira de causar dúvida nas fileiras ocidentais e, desse modo, tentar minar, ou dificultar, sua resposta coletiva.

O conflito na Ucrânia se apresenta como um elemento decisivo no novo jogo da Diplomacia Triangular, que demonstra ainda sua centralidade estratégica, mesmo 50 anos após o rapprochement sino-americano da década de 1970. Para os Estados Unidos, a lição mais significativa continua sendo não superestimar a força da relação sino-russa e conseguir desenvolver a habilidade, própria da Realpolitik, de “ler entre as linhas” daquela amizade “sem limites”. Da mesma maneira, fez Nixon (na dobradinha com Kissinger) na década de 1970 em seu brilhante lance de política externa, provavelmente o mais importante para a conclusão da Guerra Fria de maneira favorável a Washington.

Presidente Richard Nixon (à direita) e o então secretário de Estado, Henry Kissinger, em 21 jan. 1974, no Salão Oval da Casa Branca, em Washington, D.C. (Crédito: National Archive/Newsmakers)

Desde então, a aproximação entre China e Estados Unidos teve efeitos decisivos para a história do sistema interestatal. A atual tensão entre Washington e a renovada aliança sino-russa parecem dar o toque da disputa hegemônica no século XXI. Tentamos demonstrar, com este breve resgate histórico, que Moscou pode usar Pequim, assim como Pequim usou Moscou, e que cabe a Washington desenvolver a sensibilidade estratégica para, como se diz no inglês, see through the cracks.

 

* Matheus de Freitas Cecílio é doutorando em Economia Política Internacional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (PEPI/UFRJ). Contato: freitas.cecilio@gmail.com.

** Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. 1ª versão recebida em 17 fev. 2023. Este informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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