Energia e Meio Ambiente

Conselho do Ártico discute cooperação ambiental em meio à militarização regional

A disputa geopolítica do Ártico (Crédito: Malte Humpert)

Por Solange Reis*

Os ministros das Relações Exteriores dos países árticos se reuniram presencialmente na capital islandesa de Reykjavik, em 20 de maio, para o 12º encontro do Conselho do Ártico. Formada por Rússia, Noruega, Islândia, Estados Unidos, Canadá, Finlândia, Suécia e Dinamarca (representada por sua região autônoma da Groenlândia), a organização também celebrou seus 25 anos de existência.

Ainda sem a popularidade de outras organizações internacionais, o Conselho do Ártico ganha cada vez mais relevância, devido às consequências já visíveis da mudança climática. Conforme o derretimento polar aumenta, crescem a navegabilidade regional, as consequentes divergências territoriais e a preocupação ambiental.

Além da transmissão da presidência rotativa, da Islândia para a Rússia, o evento de 2021 teve como destaque o lançamento do primeiro plano estratégico para os próximos dez anos. Entre os temas discutidos, houve destaque para o meio ambiente e a vacinação contra a covid-19, mas também para a segurança das fronteiras. Rico em recursos minerais e estrategicamente importante, o Ártico é uma região que já vive momentos de tensão geopolítica.

AS, Rusia Perdebatan tentang Penumpukan Militer di KTT Arktik | Voice of America

Frente a frente: secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken (à esq.), e o ministro russo das Relações Exteriores, Serguei Lavrov (à dir.), no Harpa Concert Hall, em Reykjavik, Islândia, em 19 de maio de 2021, na cúpula ministerial do Conselho do Ártico (Crédito: Saul Loeb)

Temas quentes no gelo

O Conselho é composto por oito países e seis organizações nativas, todos em caráter permanente. Além desses, participam como observadores 13 Estados não árticos, sendo oito europeus, além de China, Japão, Coreia do Sul, Índia e Singapura. Também tomam parte em caráter não permanente 13 organizações intergovernamentais e 12 não governamentais.

Durante a Guerra Fria, o Oceano Ártico era uma preocupação das duas superpotências e dos aliados ocidentais, mas a distensão causada pelo fim da União Soviética arrefeceu o interesse geral. Com o aquecimento global e o aumento do derretimento das geleiras nos últimos anos, a região passou a ser navegável, e a exploração de recursos minerais locais começou a se tornar comercialmente viável. Isso fez o Oceano Ártico voltar ao radar geopolítico dos países fronteiriços.

De acordo com o U.S. Geological Survey, agência científica do governo americano, cerca de 30% do gás e 13% do petróleo não comprovados no mundo podem ser encontrados ao norte do Círculo Polar Ártico. A definição de reservas não comprovadas se aplica quando há alta probabilidade de existência dos recursos, mas inexistem as condições físicas, ou tecnológicas, para sua viabilização. De qualquer forma, a história já demonstrou que, onde há petróleo e gás, existe a chance de conflitos e riscos para as soberanias nacionais.

A relevância geopolítica regional também está relacionada com a crescente fragilidade das fronteiras árticas, sobretudo, as russas. Antes isolada por camadas intransponíveis de gelo, a Passagem do Noroeste fica cada vez mais viável para navegação. O estreito liga a Europa ao leste da Ásia, sendo uma rota mais curta e econômica do que as atuais opções através do Canal de Suez e pelo Oceano Índico. Essa transformação faz com que a Rússia aumente as defesas locais,  o que aciona o velho discurso da Organização do Tratado Atlântico Norte (OTAN) sobre o perigo russo.

Resistente ao gelo, a russa Prirazlomnaya é a primeira plataforma ártica operacional do mundo a processar perfuração de petróleo, produção, armazenamento, processamento e carregamento do produto final, mar de Pechora, Rússia (Crédito: Gazprom)

Quando o mar é terra de ninguém

Existem algumas disputas territoriais de menor gravidade que envolvem até os países aliados. É o caso da discussão sobre a Passagem do Noroeste, que o Canadá alega estar sob sua soberania, enquanto os Estados Unidos e os países europeus a consideram uma área de livre navegação. Outra querela abrange a Rússia, cuja reivindicação sobre a Rota do Mar do Norte é contestada pelos Estados Unidos e por outros países, mas não pelo Canadá. Para o regozijo dos realistas da política internacional, russos e canadenses se apoiam mutuamente nessas duas demandas.

O maior potencial de tensão, e consequentemente de conflito, gira em torno das interpretações individuais para a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito no Mar, ou UNCLOS, na sigla em inglês. Com exceção dos Estados Unidos, os demais membros do Conselho do Ártico ratificaram esse tratado.

De acordo com o UNCLOS, os Estados costeiros têm direito de explorar economicamente tudo que houver nas primeiras 200 milhas náuticas a partir de seus litorais. Além disso, o tratado permite que os mesmos Estados reivindiquem o alargamento dessas Zonas de Exploração Econômica (ZEE) para até 350 milhas. Para isso, é preciso que comprovem haver uma extensão natural de suas plataformas continentais. Nas ZEEs estendidas, os países costeiros gozam de direitos soberanos sobre os recursos no fundo do mar, mas não sobre as águas em si, que caem sob jurisdição internacional.

Um problema desse tipo envolve atualmente três países. Rússia, Dinamarca, via Groenlândia, e Canadá disputam a Lomonosov Ridge, uma espécie de cadeia serrana de gelo. As potenciais riquezas dessa área, bem como de outras, fazem do Ártico uma espécie de fronteira avançada da geopolítica do século passado.

12ª Reunião

A mais recente conferência ministerial foi também uma celebração dos 25 anos da criação do Conselho, e nela foram tratados os temas tradicionais sobre preservação, despoluição e desenvolvimento sustentável. Como de praxe, houve transferência da presidência rotativa. A mudança, que ocorre a cada dois anos, desta vez coloca a Rússia como definidora da agenda. Como vários focos de tensão envolvem a divergência de interesses entre os russos e alguns dos demais participantes, o biênio 2021-2023 promete ser politicamente mais agitado.

No encontro, discutiu-se a vacinação contra a covid-19 para uma população estimada em 4,2 milhões de habitantes, sendo que pelo menos metade vive em território russo. Dadas as grandes distâncias e o espaçamento entre as pessoas, uma dificuldade é a logística de distribuição e aplicação das vacinas.

A maior novidade ficou por conta do lançamento do plano estratégico para os próximos dez anos, que tem como foco desenvolvimento sustentável, reformas institucionais e aumento do multilateralismo. No encontro anterior, o Conselho do Ártico sequer conseguiu elaborar uma declaração conjunta, devido à divergência de interesses na época. O negacionismo climático do governo Trump colocava os Estados Unidos em rota de colisão com os demais participantes, mas a agenda de Joe Biden favorece a convergência.

Militarização

Se, por um lado, o Conselho trabalha para desenvolver mais cooperação nos temas sociais, por outro, enfrenta riscos de confrontos na alta política. E isso também se deve à mudança climática. O derretimento do gelo polar facilita o acesso aos recursos naturais e abre novas rotas de comércio marítimo, exacerbando a competição. Como uma coisa leva à outra, a militarização já é uma realidade.

Apesar de defender a cooperação no Ártico, o governo americano produz um farto material que vai no sentido oposto, destacando as supostas más intenções russas. Cita igualmente a China, embora menos como rival militar do que como concorrente econômico.

Nada mudou com o governo Biden. Um exemplo recente é a aproximação com a Noruega, país que está em vias de autorizar instalações americanas em algumas de suas bases militares. No mês passado, a Noruega também aceitou a atracação do “USS New Mexico”, submarino nuclear americano, no porto norueguês de Tromso. Além disso, os Estados Unidos têm realizado exercícios militares na parte europeia do Ártico desde 2008.

‘USS New Mexico’ estacionado em Tromsø, Noruega (Crédito: Helene Sofie Thorkildsen/Forsvaret)

A costa ártica da Rússia se tornou vulnerável, à medida que a barreira protetora de gelo diminuiu, o que levou o Kremlin a reforçar sua defesa com bases militares. Para a OTAN, não se trata de uma estratégia defensivista, mas de uma ameaça para toda região. É esperado que essas preocupações sejam abordadas em maior profundidade na próxima reunião da OTAN, em 14 de junho.

A fim de prevenir o que considera uma provocação, a aliança já começou a fazer sua contribuição para a escalada da tensão. A aliança realizará, no próximo ano, e em parceria com a Noruega, a operação Cold Response 2022, maior manobra militar na região desde a Guerra Fria. A área de treinamento, que contará inclusive com a participação da Alemanha, fica a 600 quilômetros da Península Kola, onde a Rússia mantém submarinos nucleares.

Geopolítica anacrônica

Dois dias antes da reunião do Conselho do Ártico, o secretário de Estado americano, Antony Blinken, visitou a Dinamarca. Além de garantir que os Estados Unidos não comprarão a Groenlândia, como sugerido por Donald Trump, o diplomata americano elogiou os esforços dinamarqueses em aumentar a vigilância local. Durante a visita, o primeiro-ministro Mette Fredriksen declarou que a Dinamarca, os Estados Unidos e a OTAN – “e ninguém mais” – desempenham o papel crucial no Ártico.

O presidente russo, Vladimir Putin, discorda categoricamente. Reconhecendo que todos sempre querem morder algum pedaço da Rússia, Putin prometeu desdentá-los para impedir a mordida. E acrescentou, com uma fala feita pelo czar russo, Alexandre III, no século XIX: “Todos temem nossa imensidão”.

Pancake ice on Arctic Sea Ice: Dave Walsh Photography

O avanço silencioso – e perigoso – da mudança climática no Oceano Ártico (Crédito: Dave Walsh)

Como sempre, Putin recorre às muletas retóricas da grandiosidade da Rússia, o que tem grande apelo junto à sua população e algum impacto em seus rivais. O mais provável, porém, é que as potências árticas estejam todas igualmente desdentadas frente a um inimigo contra o qual as armas militares não funcionam. Trata-se da mudança climática, que avança silenciosa, enquanto os governos mantêm a mentalidade anacrônica da securitização dos recursos fósseis. Fariam melhor se olhassem para a frente e planejassem um mundo pós-petróleo.

 

* Solange Reis é doutora em Ciência Política pela Unicamp, professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas e pesquisadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-Ineu). Contato: reissolange@gmail.com.

** Recebido em 6 de junho de 2021. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

Edição e revisão final: Tatiana Teixeira.

Assessora de Imprensa do OPEU e do INCT-INEU, editora das Newsletters OPEU e Diálogos INEU e editora de conteúdo audiovisual: Tatiana Carlotti. Contato: tcarlotti@gmail.com.

 

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