América Latina

Bolsonaro sem Trump: um balanço das relações bilaterais na conjuntura atual

Presidente Jair Bolsonaro em evento no Palácio do Planalto, Brasília, em 6 set. 2019 (Crédito: Evaristo Sá/AFP, via Getty Images)

Por Bárbara Vasconcellos de Carvalho Motta e Lívia Peres Milani*

O início da administração de Joe Biden tem um significado importante para o Brasil. Esse significado está ligado à tentativa frustrada do governo Bolsonaro de apoiar as relações bilaterais com os estadunidenses a partir de pontes com o ex-presidente Donald Trump e com o movimento de extrema-direita que o sustentava. Assim, cabe a pergunta: o que se pode esperar do governo Biden para o Brasil? Para respondê-la, é oportuna uma análise sobre as possíveis discordâncias e o que deve restar em termos de convergências entre os dois governos, bem como sobre as formas pelas quais as lideranças de extrema-direita devem continuar a se articular.

Os ruídos e tensões

A primeira – e talvez mais profunda – dissonância entre Biden e Bolsonaro é a divergência ideológica entre os dois presidentes. Na proposta de se aproximar dos Estados Unidos, Bolsonaro compartilhava com Trump uma estreita vinculação ao que vem sendo comumente chamada de “nova direita global”. Apesar de ela não ter se iniciado com os dois governos, as ações de Trump contribuíram largamente para sua divulgação e fortalecimento. Pautada, em grande parte, na crítica à globalização e seus efeitos, essa nova direita procura um retorno a práticas de cunho nacionalista e o reforço de valores tradicionais vinculados à família, ao papel da mulher e seus direitos reprodutivos, à importância da religião como esteio das sociedades e à não inclusão dos direitos de grupos minoritários.

Embora Biden seja visto por muitos como um centrista, sua campanha eleitoral e os primeiros movimentos de composição de sua equipe indicam que ele buscará se afastar desse movimento conservador em um largo conjunto de temáticas, como no debate sobre a participação dos Estados Unidos na ordem liberal internacional. Durante o governo Trump, a política externa norte-americana se estabeleceu justamente na contestação dos pilares fundamentais dessa ordem. Na presidência, buscou o liberalismo econômico, o liberalismo político e o intergovermentalismo liberal, sendo o questionamento a este último um dos mais emblemáticos por causa das ações de retirada dos Estados Unidos dos Acordos de Paris, do Conselho de Direitos Humanos (CDH) da ONU e da Unesco. Na tentativa de estreitar laços com os Estados Unidos e de se aproximar de Trump, a política externa brasileira seguiu trajetória semelhante. Ainda que não tenha se retirado dos órgãos da ONU, o Brasil adotou postura inédita de questionamento dos direitos reprodutivos das mulheres e em projetos que citavam a inclusão de termos como “educação sexual” no CDH.

A proposta de Biden é de, justamente, resgatar a reputação dos EUA nessas três frentes,  sobretudo, na interação com as instâncias multilaterais de negociação. A escolha de Linda Thomas-Greenfield para atuar como embaixadora na ONU parece indicar uma nova abordagem em relação ao multilateralismo, principalmente pela experiência diplomática que ela aporta ao cargo. Em sua cerimônia de confirmação perante o Senado, Thomas-Greenfield apontou para a necessidade de os Estados Unidos retornarem às Nações Unidas não apenas para reforçar os valores liberais fundantes da instituição – definidos por ela como valores norte-americanos, em oposição aos valores autoritários sustentados por países como a China –, como também para auxiliar na reforma da instituição, tornando-a mais efetiva e eficiente.

Se com Trump o Brasil tinha respaldo da maior potência internacional para compor uma coalizão de países ultraconservadores, denominado de Consenso de Genebra, a chegada de Biden abre um abismo de discordância entre Estados Unidos e Brasil na pauta de direitos humanos. De imediato, a nova administração se retira dessa iniciativa, deixando Brasil, Hungria, Polônia e países árabes sem o apoio de seu membro mais expressivo. Caso o Brasil se mantenha afinado com a agenda da direita internacional e privilegie esse alinhamento, em detrimento da subordinação explícita adotada, até então, em relação aos Estados Unidos – o que parece provável –, a discrepância entre o posicionamento dos dois países produzirá ruídos irreconciliáveis neste momento.

Biden quer resgatar imagem dos EUA em meio ambiente, democracia e direitos humanos (Crédito: Sean Rayford/Getty Images)

Relacionada a esse tema, a promoção da democracia por parte dos Estados Unidos pode gerar tensões entre ambos os países. Embora essa iniciativa tenha se consolidado como um traço da política externa estadunidense, no que diz respeito à expansão do liberalismo político e consolidação da ordem liberal – postura que se manteve constante ao menos desde o fim da Guerra Fria –, a chegada de Trump retirava os Estados Unidos dessa posição de principal promotor do liberalismo político. O discurso da administração Biden retoma esse tema, reapresentando os Estados Unidos como líder na promoção da democracia liberal, afirmando, inclusive, durante sua posse presidencial, que naquele dia se celebrava a vitória da “causa da democracia”. Externamente, os adversários são caracterizados como autoritários, e há a proposta de criação de uma Cúpula de Democracias.

Com relação ao Brasil, embora ainda não haja nenhum movimento concreto, cabe pontuar que Juan González, nomeado Diretor para o Hemisfério Ocidental do Conselho de Segurança Nacional, e que já havia feito críticas ao governo brasileiro durante a campanha de 2020, fez chegar à presidência um relatório. O documento contém recomendações de uma rede de ativistas e acadêmicos que se preocupam com os retrocessos autoritários no Brasil, e que demandam ações dos EUA para garantir a retomada da democracia no país. Considerando que Biden tem buscado se diferenciar de lideranças da extrema-direita, o Brasil poderia ser um dos alvos da noção de promoção da democracia – o que poderia significar, por exemplo, o apoio financeiro a organizações no país que atuem em tal causa.

Por fim, outro tema que volta à agenda da política externa dos EUA, com um peso mais considerável que no passado, é o da mudança climática e proteção ao meio ambiente. Grupos internos ao Partido Democrata se mobilizaram, nos últimos anos, para construir uma agenda que conecta proteção do meio ambiente com redução das desigualdades, que ficou conhecida como Green New Deal. Atendendo a tal mudança, Biden se comprometeu com um plano mais moderado, porém afinado com essa perspectiva. Portanto, tendo em vista a relevância interna desse tema e, especialmente para o partido de Biden, é provável que o mesmo ganhe dimensão ampliada em termos de política exterior, questão na qual o Brasil entra como protagonista.

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Bombeiro em área queimada na bacia amazônica em Sorriso, em 26 ago. 2019 (Crédito: Mayke Toscano/Secom do estado do Mato Grosso, via Getty Images)

As queimadas na Floresta Amazônica e de outros biomas brasileiros tiveram repercussão internacional, gerando uma demanda para sua proteção. Biden comentou o tema em campanha eleitoral quando, em debate com seu concorrente, mencionou que criaria um fundo para a proteção da Amazônia e, caso não obtivesse apoio do governo brasileiro, o país sofreria consequências econômicas. O relatório preparado por ativistas, mencionado anteriormente, recomenda uma postura diferente, pois propõe que os recursos para proteção da Amazônia sejam repassados diretamente a ONGs e ao movimento indígena. Independentemente da abordagem, o tema promete fricções entre ambos os governos.

Os temas de convergência

Embora os desencontros entre Brasil e Estados Unidos tendam a predominar, não existe um desacordo em todos os temas, o que sinaliza para pontos de possível cooperação. As alterações promovidas pela mudança de administração nos Estados Unidos não são estruturais – trata-se especialmente de mudanças de agenda, retomando temas tradicionais que haviam sido escamoteados por Trump, como no caso da promoção do intergovernamentalismo e da democracia liberal. No caso da América Latina, é provável a busca pela manutenção da hegemonia, o que, no momento atual, desdobra-se em dois temas principais: a expansão de potências de outras regiões, especialmente a China, e a contenção do regime bolivariano na Venezuela. Em ambos os casos, há convergências de interesses entre Biden e Bolsonaro.

O avanço chinês na América Latina era visto com desconfiança pela administração Trump, a qual classificava os empréstimos chineses como uma política predatória e apontava a existência de um novo tipo de imperialismo, em um movimento de contestação à retórica chinesa de cooperação Sul-Sul e ganhos para todos. Ainda durante a campanha presidencial, Biden criticou a postura de Trump, porém, não o fez em razão de sua agressividade, mas pontuando que houve negligência em relação à região, deixando um vácuo de liderança que poderia ser ocupado pela China. Em termos gerais, a administração Biden tem classificado a China como uma competidora estratégica e reiterado o autoritarismo daquele regime. Como o Executivo brasileiro também converge na crítica aos chineses, em razão do sistema de governo, e prioriza as alianças com o Ocidente, a posição brasileira se torna vantajosa para os EUA.

No que se refere à Venezuela, ambos têm uma postura de contraposição ao governo de Nicolás Maduro. Em artigo publicado na revista Foreign Affairs, ainda durante a campanha eleitoral, Biden definiu a situação na Venezuela como um desafio de segurança nacional. A retórica aponta para a continuidade de pressões sobre o país caribenho, ainda que a abordagem e as táticas possam ser modificadas. A administração anterior havia colocado em prática uma estratégia de pressão, que combinava sanções econômicas com o apoio ao autodeclarado presidente interino Juan Guaidó, em uma busca explícita de mudança de regime. A estratégia não funcionou e Maduro se mantém no poder, apesar das investidas da oposição. Assim, pode haver mudança de estratégia e a adoção de uma postura de baixo perfil.

Cabe lembrar que a pressão estadunidense frente ao regime bolivariano não foi uma novidade do governo Trump – a imposição de sanções teve início após a declaração da situação no país como uma ameaça “não usual e extraordinária“ e que, como pontuado pela professora de Relações Internacionais da Unifesp, Carolina Pedroso, o apoio financeiro à oposição ao chavismo remonta ao governo de George W. Bush, via recursos do National Endowment for Democracy [NED]. Assim, a oposição ao governo não é uma exclusividade da administração Trump. No caso brasileiro, o não reconhecimento do governo venezuelano remonta à administração interina de Michel Temer, no entanto, a retórica se tornou mais acentuada no governo atual.

Passados os dois primeiros meses da posse de Biden, podemos esperar das relações bilaterais manutenção da convergência nas agendas de segurança e econômica, temas que não haviam sido grandemente afetados pela tentativa de Bolsonaro de estreitar laços com os Estados Unidos. Se, por um lado, a retórica de ambos presidentes era mais contundente, as práticas de cooperação entre os países nessas temáticas não obtiveram aprofundamento substantivo. No entanto, o que talvez prevaleça nas relações Brasil-Estados Unidos é o esforço de Biden de desvincular sua imagem da imagem do presidente brasileiro. Além da figura de Bolsonaro ter-se popularizado internacionalmente como uma espécie de Trump dos trópicos, qualquer aproximação explícita dos Estados Unidos com a agenda populista do Brasil pode ser encarada como uma afronta aos eleitores liberais e à ala mais progressista da administração Biden. Nesse sentido, confrontar diretamente a diplomacia brasileira em temas sensíveis – como direitos humanos e meio ambiente –, em cujo debate internacional os Estados Unidos buscam recuperar sua reputação, pode inclusive ser interessante, ao usar o Brasil como trampolim para elevar a retórica estadunidense. Resta saber se, nas relações bilaterais, Biden se restringirá à denúncia de práticas, ou irá encampar a luta contra o populismo de direita no Brasil, via interlocução com outros setores da sociedade civil no país, como grupos de ativistas, o legislativo e a academia.

 

* Bárbara Motta é professora do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Federal de Sergipe (UFS)Lívia Milani é pesquisadora de pós-doutorado do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP) e pesquisadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para estudos sobre Estados Unidos (INCT-INEU). Ambas fazem parte do Grupo de Estudos de Defesa e Internacional (GEDES).

** Publicado originalmente no Le Monde Diplomatique Brasil, em 31 mar. 2021. Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, do INCT-INEU.

 

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