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The Art of the Deal: mirando a reeleição, Trump busca acordo entre Sérvia e Kosovo

Richard Grenell (centro), enviado de Donald Trump para as negociações entre Sérvia e Kosovo, na Conferência de Segurança de Munique em fevereiro de 2020. Ao fundo, em pé, Hashim Thaçi, presidente do Kosovo (à esq.), e Aleksandar Vučić, presidente da Sérvia (à dir.). Crédito: Michael Dalder/Reuters.

Por Gustavo Oliveira*

“Negociar é minha forma de arte. Outras pessoas fazem pinturas lindas em uma tela, ou escrevem poesias maravilhosas. Eu gosto de fazer negócios, de preferência, dos grandes. É minha forma de diversão”. Assim Donald Trump inicia seu livro The Art of the Deal, publicado em 1987 (A arte da negociação, publicado em 2018 no Brasil pela Citadel Grupo Editorial). Trinta anos depois, como presidente dos EUA, Trump, como apontaram diversos observadores, reivindica transplantar este espírito empresarial para a política externa norte-americana.

A noção de deal como “acordo”,“barganha”,“transação”, ou “negociação”, perpassa a maneira como Trump concebe a resolução de questões internacionais problemáticas para os EUA, como as relações com Rússia, China, Coreia do Norte, Irã e os conflitos no Oriente Médio. Nos últimos meses, tal abordagem tem-se mostrado bastante evidente também nos Bálcãs – precisamente, nas negociações de normalização de relações entre Sérvia e Kosovo.

Região de maioria étnica albanesa, o Kosovo declarou sua independência da Sérvia em fevereiro de 2008, com ativo apoio dos EUA. Tal ato é rejeitado pela Sérvia, que, apesar de significativas concessões, ainda considera o Kosovo oficialmente  como sua província. Negociações de normalização de relações entre os dois lados mediadas pela União Europeia (UE) e apoiadas pelos EUA se iniciaram em 2011. Apesar de diversos avanços, elas não eliminaram o problema das duas reivindicações conflitantes sobre o território do Kosovo. Desde o fim de 2018, as negociações de normalização se encontram formalmente emperradas em virtude da retaliação comercial kosovar à campanha sérvia de obstrução do reconhecimento e integração internacionais do Kosovo.

A postura tradicional dos governos estadunidenses sobre esta disputa era a de que a independência kosovar, da qual os EUA são os principais patronos, é um fato incontornável. A Sérvia deveria se conformar com tal realidade e reconhecer a independência do Kosovo nas fronteiras reivindicadas por este último. De início, a administração Trump deu sinais de inércia, não demonstrando alteração neste posicionamento. Isto começou a mudar, contudo, a partir do segundo semestre de 2018. Em agosto daquele ano, o então conselheiro de Segurança Nacional John Bolton (antigo opositor da independência do Kosovo) declarou que os EUA estavam abertos a qualquer tipo de acordo final de normalização – incluindo um com a polêmica ideia de redesenho territorial do Kosovo em bases étnicas, resgatada em 2018.

Esta nova flexibilidade sinalizou que o atual governo norte-americano coloca resultados concretos acima de antigos princípios. O importante seria acelerar as negociações e chegar a um deal – e quanto antes, melhor. De preferência, antes da eleição presidencial estadunidense de 3 de novembro de 2020.

Os EUA retomam a iniciativa

Em dezembro de 2018, Trump instou diretamente os presidentes de Sérvia, Aleksandar Vučić, e Kosovo, Hashim Thaçi, a chegarem a um “acordo histórico” o mais breve possível. Evocando o famoso aperto de mãos de Yasser Arafat e Yitzhak Rabin, respectivamente líderes da Palestina e de Israel, na Casa Branca em 1993, Trump disse esperar Vučić e Thaçi na residência oficial dos presidentes dos EUA para celebrar um acordo final de normalização. Poucos meses depois, os embaixadores dos EUA nas capitais Belgrado e Pristina complementaram pressões diplomáticas e falaram, de maneira explícita, que 2019 deveria ser “o ano para um acordo” centrado no “reconhecimento mútuo” entre Sérvia e Kosovo.

Em outubro último, um novo marco no engajamento norte-americano foi estabelecido com a nomeação de Richard Grenell como enviado especial para as negociações. Grenell é mais conhecido por sua polêmica atuação como embaixador dos EUA na Alemanha, um dos principais postos diplomáticos estadunidenses, e como Diretor (interino) de Inteligência Nacional. Em busca de um acordo, Grenell, cuja carreira se notabiliza pelo firme alinhamento ideológico com Trump, tem demonstrado um estilo particularmente assertivo e intimidador em seu trato com os representantes de Sérvia e Kosovo.

Esta abordagem encontrou obstáculos, porém. O governo kosovar se recusava a encerrar as restrições comerciais estabelecidas em 2018, enquanto o governo sérvio continuasse a campanha de “desreconhecimento” do Kosovo. Do outro lado, a Sérvia impunha o fim incondicional das barreiras comerciais para voltar a negociar.

Para o governo dos EUA, estes problemas se agudizaram na sequência da eleição parlamentar de outubro de 2019 no Kosovo. Albin Kurti, líder do partido “Autodeterminação” (Lëvizja Vëtevendosje, LVV), tornou-se primeiro-ministro. No que tange às negociações de normalização, o partido tradicionalmente se posiciona de forma crítica sobre concessões à Sérvia e à comunidade sérvia no Kosovo (cerca de 100.000-150.000 pessoas, ou 5%-8% da população total). Tradicionalmente crítico da ingerência internacional no Kosovo, o LVV foi frequentemente sabotado pelas potências ocidentais antes de chegar ao poder e possui um histórico de tensões com a diplomacia norte-americana.

Os princípios do governo de Kurti para as negociações descartavam quaisquer discussões de cunho territorial, bem como a fragmentação administrativa interna do Kosovo em linhas étnico-regionais (referência ao projeto de autonomia para as regiões de população sérvia concebido no processo de normalização). Um ponto particularmente conflitante com os EUA, as barreiras comerciais, também estava presente. Contrariando insistentes demandas de Grenell, Kurti, apesar de abolir as tarifas estabelecidas em 2018, estabeleceu novos tipos de restrição que desagradam à Sérvia e aos EUA.

Para o governo norte-americano, tamanha desobediência não poderia ficar impune. Em março, em aberta retaliação à manutenção das restrições comerciais, foi anunciada a suspensão de projetos econômicos estadunidenses no Kosovo. No mesmo mês, Grenell e Donald Trump Jr. ecoaram ameaças de retirada dos cerca de 650 soldados norte-americanos da KFOR, a missão de peacekeeping liderada pela OTAN no Kosovo que efetivamente dissuade ações militares da Sérvia na região. Esta cifra, a maior entre os 27 países participantes da KFOR, corresponde a cerca de um quinto do contingente total da missão.

Liderada por Thaçi, a classe política kosovar albanesa, incluindo parceiros de coalizão de Kurti, entendeu o recado. Acusado de comprometer a aliança com os EUA, Kurti sofreu um voto de não confiança em 25 de março no Parlamento, cujo estopim formal foram divergências em torno do combate ao novo coronavírus. Realizada presencialmente em plena pandemia, a sessão foi publicamente elogiada pelo embaixador norte-americano. Tensionando a constituição do Kosovo, uma coalizão com perfil mais afável aos interesses dos EUA começou a se desenhar. Como faz questão de indicar publicamente, Grenell tem tido participação ativa neste processo, mostrando a continuidade das usuais práticas norte-americanas de gestão informal da política no Kosovo.

Um deal até novembro?

Acentuada em ano eleitoral por um oficial de alto escalão e de perfil claramente trumpista (características que diferenciam Grenell de Matthew Palmer, diplomata de carreira que também lida com a questão Sérvia-Kosovo), a crescente escalada de envolvimento norte-americano indica um interesse eleitoreiro na atuação do governo Trump. De fato, ainda que a questão Sérvia-Kosovo seja periférica para a política externa e o eleitor médio dos EUA, um acordo pode ser explorado por Trump em dois sentidos.

Em primeiro lugar, um acordo fortaleceria a imagem que Trump cultiva de hábil estadista capaz de resolver problemas que rivais como os democratas não foram capazes de solucionar quando estiveram no poder. A finalização da normalização entre Sérvia e Kosovo seria mais uma peça no portfólio de resultados diplomáticos de Trump no ano eleitoral, a exemplo da redução de tropas dos EUA no Afeganistão e da apresentação do plano de paz para o conflito Israel-Palestina. Nesse sentido, o caso Sérvia-Kosovo ganha em atratividade, levando-se em conta o estereótipo ocidental dos Bálcãs como um permanente “barril de pólvora” – crença que Trump parece compartilhar.

Em segundo lugar, a “pacificação” sinalizada por um acordo propiciaria a retirada, ou a redução, do contingente militar dos EUA no Kosovo. Trata-se, é verdade, de uma quantidade relativamente reduzida de tropas, que ainda por cima estão em uma área relativamente estável em comparação com regiões como o Oriente Médio. Ainda assim, a redução do compromisso militar estadunidense no Kosovo (já sinalizada, no final de 2018, pelo apoio dos EUA à formação de um exército kosovar) se encaixa na retórica de Trump sobre a necessidade de racionalizar o envolvimento militar do país no exterior.

Poderão Trump e Grenell atingir seus objetivos até a eleição nos EUA? Além dos golpes contra Kurti, há outros sinais de que o engajamento recente dos EUA tem rendido frutos neste sentido. Em janeiro e fevereiro, por exemplo, Grenell encaminhou acordos preliminares, promovendo voos comerciais e o transporte ferroviário e rodoviário entre Sérvia e Kosovo.

Grenell também teve diversos encontros com lideranças de Sérvia e Kosovo, incluindo um em Washington, no início de março. Especula-se que este encontro na capital americana tenha encaminhado algum tipo de solução, possivelmente incluindo o controverso redesenho territorial. Parte do norte do Kosovo, majoritariamente habitado por sérvios e onde a Sérvia exerce grande influência (por meio, por exemplo, de órgãos de administração pública), seria confirmada como parte do território sérvio.

A liderança da Sérvia já chegou a explicitar que uma solução deste cunho seria a ideal. Conforme o ministro do exterior Ivica Dačić, ela apenas formalizaria uma “situação de fato existente”. Similarmente, Thaçi, em 2018, falou em uma “correção de fronteiras” (implicando também a união do Kosovo com áreas vizinhas de população albanesa no sul da Sérvia) como caminho para um acordo. Em troca, a Sérvia incorreria em alguma forma de reconhecimento (direto ou indireto) da independência do Kosovo, primordialmente no que diz respeito à entrada na ONU. Thaçi e Vučić negam, porém, ter encaminhado um entendimento em Washington. Em comunicado oficial, Grenell e Palmer também negaram a existência de qualquer “plano secreto” envolvendo troca de território.

Um trunfo para o governo norte-americano nas negociações é a posição da Sérvia. A flexibilidade da administração Trump, que se diferencia da maior rigidez pró-Kosovo que prevalece no establishment político estadunidense, é vista em Belgrado como uma janela de oportunidade para reduzir os custos de uma renúncia definitiva à província (a título de ilustração, congressistas democratas já criticaram o que veem como uma conivência da administração Trump em relação à Sérvia). Não por acaso, o partido controlado pelo governo sérvio no Kosovo apoiou a queda de Kurti e concordou em integrar a nova coalizão que pretendia chegar ao poder em Pristina.

Há na Sérvia uma tendência à ampla rejeição social do reconhecimento da independência do Kosovo, nas diversas variantes em que isto poderia ocorrer. Além disso, as eleições parlamentares de 26 de abril foram adiadas em virtude da pandemia. O pleito, que as atuais forças governantes usariam para reforçar sua legitimidade no momento supostamente decisivo de negociações, deve acontecer somente em 21 de junho. Ainda assim, além do apoio dos EUA, jogam a favor de Vučić nas negociações o aparelhamento institucional, uma extensa máquina partidária e midiática e o expressivo apoio popular frente a oposicionistas.

Opinião se divide no Kosovo

A situação é mais complicada no Kosovo. Desde o final dos anos 1990 um dos principais interlocutores dos EUA na região, Thaçi é o maior interessado em um acordo. A imagem de “pacificador” e os serviços prestados aos EUA derivados de um acordo podem contribuir para fortalecer uma carreira política decadente, manchada por indícios e suspeitas de envolvimento com o crime organizado, a corrupção e violações de direitos humanos no contexto do conflito no Kosovo dos anos 1990. A concentração de poder em torno de Thaçi é, contudo, muito menor do que no caso de Vučić na Sérvia. Além disso, em que pese a convergência motivada pelas recentes pressões dos EUA, os últimos anos têm mostrado divisões na elite política kosovar albanesa a respeito da normalização com a Sérvia, inclusive no que diz respeito à questão do redesenho territorial.

No início de maio, as divisões políticas no Kosovo ganharam um novo capítulo. Atendendo a recurso do LVV que questionava a legalidade das manobras de Thaçi, a corte constitucional local suspendeu, com prazo até o fim de maio, o processo de formação da nova coalizão governante. Kurti também tentou elevar a atenção internacional sobre esta disputa ao fazer solicitação similar – porém, sem êxito – junto à Comissão de Veneza (órgão consultivo do Conselho da Europa sobre questões constitucionais).

Apesar das tentativas de isolamento desferidas por parte da elite política kosovar albanesa, o LVV e Kurti (que por ora permanece primeiro-ministro interino) têm apostado em sua popularidade e na insatisfação social com a tradicional elite kosovar albanesa (simbolizada principalmente por Thaçi) para se reafirmar no poder em novas eleições após o arrefecimento da pandemia. É possível, portanto, que se prolongue um impasse institucional e político no Kosovo capaz de obstruir as intenções da administração Trump.

Há, por fim, fatores internacionais que podem atravessar os planos de Washington. A posição da UE é um deles. Insistindo no retorno das negociações, o bloco europeu recentemente nomeou Miroslav Lajčák, um diplomata eslovaco com experiência nos Bálcãs, como enviado para as negociações. Também indicando a necessidade de celeridade, Lajčák afirmou ser factível chegar a um acordo até março de 2021. Destacou, no entanto, que a qualidade do acordo é mais importante do que o prazo de sua aprovação. Apesar de ainda haver vozes dentro da UE abertas à questão do redesenho territorial, a Alemanha tem sinalizado oposição a este tipo de solução.

Representantes da UE e de seus países-líderes também reivindicaram protagonismo nas negociações e manifestaram críticas às maquinações contra Kurti apoiadas pelos EUA. A normalização de relações é um requisito da UE para que Sérvia e Kosovo levem adiante o processo de integração ao bloco. O engajamento nesta questão é uma oportunidade para a UE recuperar seu prestígio nos Bálcãs, abalado nos últimos anos em virtude da estagnação da expansão regional do bloco e de sua incapacidade de resolver diversas crises e disputas na região.

O peso da Rússia

Outro potencial obstáculo para os EUA é a Rússia, tradicionalmente a principal aliada da Sérvia na rejeição da independência kosovar. A entrada na ONU, principal dimensão de reconhecimento internacional desejada pelo Kosovo, depende do consentimento dos membros do Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU), entre os quais está justamente a Rússia.

É verdade que a diplomacia russa tem ecoado posicionamentos sérvios e afirmado apoiar uma solução aprovada por Belgrado, indicando consentimento com o que quer que seja aceito pelo governo sérvio. Tal apoio é qualificado, no entanto, pelas proverbiais referências à necessidade de se respeitar a Resolução 1244 do CSNU, que fala no compromisso com a soberania e com a integridade territorial da Sérvia. Nesse sentido, há relatos de um precedente recente de divergências russo-sérvias. Em outubro de 2018, Vladimir Putin teria rejeitado uma proposta de Vučić sobre a entrada do Kosovo na ONU em troca do reconhecimento do norte do Kosovo como parte da Sérvia.

Ao abrir caminho para a expansão da OTAN na região (no caso do Kosovo) e remover uma disputa que permite a Moscou influenciar as circunstâncias políticas nos Bálcãs, um acordo final de normalização de relações entre Belgrado e Pristina pode afetar negativamente o prestígio geopolítico da Rússia. Cálculos nesse sentido podem fazer o governo russo obstruir a chegada a um entendimento que não atenda aos interesses de Moscou.

Nestas circunstâncias de potenciais obstáculos políticos e com o tempo se esgotando até a eleição presidencial nos EUA, é possível que a administração Trump, principalmente a partir da atuação de Grenell, apresente uma espécie de plano de normalização final Sérvia-Kosovo de caráter e recepção similares aos do controverso “Acordo do Século” proposto para Israel e Palestina em janeiro – ou seja, uma proposta ambiciosa, mas fortemente contestada por outros atores interessados e, portanto, de aplicabilidade questionável.

Isto para não falar de eventuais dificuldades de implementação, que não raro têm ocorrido nos quase dez anos do processo de normalização entre Sérvia e Kosovo. No contexto eleitoral dos EUA, contudo, um encaminhamento neste sentido, pelo menos parcialmente, poderia satisfazer o apetite propagandístico do pretenso dealmaker da Casa Branca.

* Gustavo Oliveira é doutorando do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp, PUC-SP) e pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU), com bolsa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Também é pesquisador do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (GECI/PUC-SP).

** Recebido em 8 de maio de 2020. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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