Resenha OPEU

Os 7 de Chicago contra Johnson, Nixon e Trump

Os 7 de Chicago e seus advogados (da esq. para dir.): advogado Leonard Weinglass, Rennie Davis, Abbie Hoffman, Lee Weiner, David Dellinger, John Froines, Jerry Rubin, Tom Hayden, e advogado William Kunstler, do lado de fora do tribunal, em Chicago, em 1969 (Crédito: David Fenton/Getty Images)

Por Mateus de Paula Narciso Rocha*

No filme “Os sete de Chicago” (The Trial of the Chicago 7, 2020, Netflix), é narrado o julgamento histórico de ativistas acusados de conspiração por liderarem as manifestações na Convenção Democrata de Chicago, em 1968, as quais culminaram em violência generalizada. Com enredo envolvente, diálogos ricos e personagens complexos, a obra insere o espectador em um drama que combina comédia, dilemas éticos e a agonia da injustiça.

The Trial of the Chicago 7 (2020) - FilmaffinityCom razão, o filme concorre aos principais prêmios cinematográficos, como o Oscar de melhor filme, e já conquistou o Globo de Ouro de melhor roteiro. O diretor e roteirista é Aaron Sorkin, conhecido pelo clássico “Questão de Honra” (A Few Good Men, 1992) e o premiado “A rede Social” (The Social Network, 2010).

Embora os méritos sejam maiores, a obra tem defeitos. Um deles é ser endereçada exageradamente ao público americano, visto que, com insuficientes pinceladas históricas, pressupõe que o espectador conheça os personagens e o contexto do julgamento.

Outro defeito é a indefinição quanto ao caráter fictício ou real da narrativa. Isto é, conquanto o filme intercale vídeos de arquivo e encenações – sugerindo um apego à realidade –, o diretor, na verdade, insere modificações importantes na história do julgamento, criando fatos inexistentes, como o final catártico melodramático e a mudança na natureza do promotor de acusação. Não se trata, portanto, de um “filme documentário”.

Desse modo, este texto apresenta brevemente o contexto histórico do julgamento, tenta desentranhar ficção e realidade e avalia criticamente outros aspectos da narrativa cinematográfica. Por fim, oferece uma hipótese sobre o motivo de o diretor ter reelaborado parcialmente a história do julgamento.

Johnson e o Vietnã: de ativo eleitoral a passivo

A década de 1960 é um período crítico na história dos Estados Unidos. São os anos da conquista dos direitos civis e da escalada mortífera da Guerra do Vietnã. Nesse intervalo, despontam o movimento pacifista, os protestos antirracistas e, ao mesmo tempo, é recorrente o assassinato político. Em meio à turbulência doméstica – conjugada ao sucesso espacial soviético e à recuperação econômica europeia e japonesa –, a hegemonia econômica e militar dos Estados Unidos parecia estar em decadência acelerada.

Isso decorria, em grande medida, do desgaste humano, econômico e simbólico gerado pela Guerra do Vietnã, conflito que produziu profundas divisões domésticas e traumas indeléveis nos combatentes e na sociedade americana. No início de “Os 7 de Chicago”, o então presidente democrata Lyndon Johnson é apresentado convocando mais soldados para o combate no Vietnã, realizando a chamada “americanização” da guerra.

Johnson havia se tornado presidente em 1963, após o assassinato de Kennedy, e logrou, com a postura dura contra o Vietnã do Norte, a vitória eleitoral em 1964. Dessa forma, cabe lembrar que sua decisão de endurecer a Guerra do Vietnã tinha, no início, certo apoio popular, mas não demorou para entornar. Com o correr dos anos, a guerra passou a ser mais criticada, na medida em que parecia infindável e se acumulavam soldados mortos. Assim, já nas eleições de meio de mandato (midterms) de 1966, os Republicanos obtêm vitórias significativas contra os Democratas.

Desse modo, se em 1964 o endurecimento da guerra foi um ativo para a eleição de Johnson, em 1968, novo ano de eleição presidencial, ela havia se tornado um pesado passivo (em similaridade ao que foi o Iraque para o Partido Republicano em 2004 e em 2008). Ainda que as manifestações antiguerra ocorressem anteriormente, foi a “ofensiva do Tet” que catalisou a insatisfação e tornou mais generalizada a leitura negativa. Essa ofensiva – o ataque surpresa dos vietcongues contra as tropas americanas, em janeiro de 1968, matou mais de quatro mil soldados americanos – inflamou a opinião pública estadunidense e levou Johnson a desistir da tentativa de reeleição.

A ofensiva vietcongue abre o ano de 1968, um dos mais turbulentos da história dos Estados Unidos. Em abril desse ano, o líder civil e religioso Martin Luther King foi assassinado por um atirador branco, gerando protestos e desobediência civil em diversas cidades. Até a capital, Washington, D.C., é tomada por manifestações, sendo impostos a lei marcial e o envio de forças militares para, junto à polícia, restaurar a ordem. Em junho de 1968, o pré-candidato democrata Robert Kennedy, crítico de Johnson, também é assassinado e novos protestos despontam.

Yippie demonstrators swarming a statue in Grant Park during the 1968 Democratic National Convention.

Manifestação durante a Convenção Nacional Democrata de 1968, em Chicago (Crédito: Time)

Foi nesse contexto que o Partido Democrata caminhava para a Convenção Nacional em Chicago, em agosto de 1968, para escolher o novo candidato a presidente. Com a morte de Bob Kennedy e as movimentações da cúpula, o favorito se tornava Hubert Humphrey, vice-presidente de Johnson, o qual era visto por muitos como pró-Guerra. Diversos grupos – como estudantes, hippies, movimento negro e democratas tradicionais – se organizaram para ir à convenção e pressionar a decisão do partido. As manifestações não foram, porém, autorizadas pelo prefeito democrata Richard Daley. Figura influente no Partido e próximo de Johnson e Humphrey, ele defendia maior repressão às manifestações daquele ano. Assim, quando os protestos ocorreram em Chicago, eles foram violentamente reprimidos pela polícia.

Nixon, racismo e semicrítica à guerra

Em meio à situação doméstica caótica, o candidato republicano Richard Nixon derrotou Humphrey, em novembro de 1968, e foi eleito sob a bandeira da “lei e da ordem” e com a promessa de dar um “fim honroso” à Guerra do Vietnã. Com a vitória de Nixon, despontou o interesse do Executivo de propagandear os novos tempos ordeiros, e o governo decidiu processar os líderes das manifestações de Chicago. De um momento para o outro, a versão oficial passou a ser que os ativistas não teriam ido à Convenção para protestar contra a guerra, mas para cometer atos violentos e tumultuar. Encontrou-se um dispositivo legal para enquadrá-los, a lei Rap Brown, e o caso foi levado a julgamento.

O julgamento durou mais de cinco meses e, embora não tenha sido televisionado, obteve ampla repercussão jornalística. Desde o início, muitos acusados – como o hippie Abbie Hoffman – entenderam que o julgamento não era apenas uma batalha pelo convencimento do júri, mas, sobretudo, uma disputa pela opinião pública. Assim, os hippies – que haviam lançado a candidatura de um porco à presidência nas manifestações de Chicago – utilizaram do próprio espetáculo criado pelo governo Nixon para denunciar, ao seu modo, o caráter farsesco da acusação e do juiz; como narra o filme de Sorkin em cenas que, surpreendentemente, não são fictícias.

Judge On a Rampage

Desenho de Seale atado na corte (Crédito: Howard Brodie)

Inicialmente, os sete de Chicago eram oito. O caso do pantera-negra Bobby Seale, que sequer conhecia os outros sete réus, foi desmembrado ao longo do julgamento, após tensões entre ele e o juiz Julius Hoffman. Como retrata o filme, Seale foi levado a julgamento mesmo sem advogado e foi impedido de se representar. Intrépido, ele confrontou reiteradamente as arbitrariedades e as parcialidades gritantes do juiz e, em determinado momento, o juiz Hoffman ordenou que as forças de segurança da corte atassem o corpo e a boca de Seale para impedir suas intervenções no tribunal.

O caso real de Bobby Seale é, porém, ainda mais duro do que a narrativa cinematográfica. No filme, a cena causa indignação no público do tribunal e é vista como abominável até pelo promotor da acusação, sendo desfeita imediatamente: Seale é desamarrado, e o caso é desmembrado. Na realidade, a violência contra Seale durou vários dias e, mesmo atado, ele continuou a exigir seus direitos. A virtude e a solidariedade que brotaram no filme quando Seale foi amarrado são uma projeção do que deveria ocorrer, não do que aconteceu.

A violência contra Seale relembra que mais difícil do que mudar a legislação – o racismo havia sido legalmente proscrito em 1964 por pressão do movimento negro – é reformar a cultura. Se episódios explícitos de racismo, como o caso de Rosa Parks – presa em 1955 por não ceder o assento do ônibus para brancos – tornaram-se ilegais, o racismo estrutural permaneceu, como revela o tratamento dado aos negros em diversos episódios, ilustrado no recente caso de George Floyd.

Outro ponto digno de nota no filme é o que pode ser entendido como uma “semicrítica da guerra do Vietnã”. Em quase todo enredo, a invasão dos Estados Unidos ao Vietnã é apresentada como negativa, devido aos seus resultados – a morte de soldados americanos –, e não por sua natureza intrínseca. Assim, o filme modifica a leitura real dos Sete de Chicago sobre a Guerra do Vietnã, visto que essas lideranças criticavam as mortes tanto de americanos quanto de vietnamitas, não subscrevendo à semicrítica nacionalista da obra.

FILE - In this March 1966, file photo, a U.S. Air Force B-52 delivers a bomb load of more than 38,000 pounds against Viet Cong strongholds in South Vietnam during the Vietnam War. The Vietnamese capital Hanoi once trembled as waves of American bomber

Um avião B-52 lança bombas no Vietnã, em 1966 (Crédito: Associated Press)

Com essa crítica, o filme curiosamente se aproxima da leitura do governo Nixon sobre o conflito na Indochina. Nixon via a Guerra do Vietnã como um problema por seus efeitos, sobretudo, as mortes de americanos e a cisão doméstica. Munido desse diagnóstico, Nixon patrocinou a “vietnamização” da guerra – a retirada das tropas estadunidenses –, enquanto aumentou os bombardeios aéreos, lançando fogo nos civis vietnamitas. Desse modo, embora o filme critique o governo Johnson e Nixon, ele se aproxima, paradoxalmente, da interpretação do republicano sobre o Vietnã.

Levante cifrado contra Trump

Certa vez, o filósofo italiano Benedeto Croce disse que a história, mesmo a mais antiga, é sempre história contemporânea, sugerindo que o passado é reconstruído pelo historiador, com base nos problemas e perspectivas do presente. A instigante ideia pode ser aplicada ao “filme histórico” em debate.

O diretor da obra parece ter consciência dessa dificuldade e foi além: modificou intencionalmente a história real, e não apenas com intuitos estéticos, ou dramáticos. Ele decidiu, por meio da dramatização do passado, enviar uma mensagem política ao presente. Não é casual que o filme de Sorkin tenha sido lançado três semanas antes das eleições presidenciais dos Estados Unidos de 2020; que o diretor seja um declarado crítico de Trump; e que, no clímax do filme, seja narrada a fala de Abbie Hoffman sobre a mudança revolucionária na democracia: as eleições.

Com essa chave interpretativa é possível decifrar alguns aspectos da obra, em particular a razão do diretor ter modificado a natureza do promotor e inserido o final fictício catártico. Fontes sobre o julgamento real sugerem que o promotor de acusação era um indivíduo unidimensional interessado em vencer a qualquer custo. No filme, porém, o promotor, interpretado por Joseph Gordon-Levitt, é representado como um indivíduo complexo e respeitável, um republicano exemplar, conservador e honesto. Esse promotor não compactuaria com as táticas sujas do governo Nixon, ou com torturas. No filme, é ele que, imediatamente, intervém para impedir que Seale continue amordaçado.

O ator Joseph Gordon-Levitt como o promotor de acusação (Créditos: Netflix)

Tudo sugere que o diretor Sorkin não pretendeu, com a mudança, reabilitar a imagem do promotor real, mas, na verdade, construir esse personagem como um símbolo: o “republicano honesto”. A construção fictícia desse personagem tem seu arco narrativo fechado quando, no final fictício, o promotor se levanta, junto aos acusados e ao público, para honrar os mortos estadunidenses no Vietnã, em meio aos protestos furiosos do juiz. Portanto, mesmo com o caso real favorecendo a tensão entre “acusados” contra “juiz e acusadores”, o diretor preferiu construir o enfrentamento “acusados” contra “juiz” e elevar a figura do promotor.

Tendo em vista o momento da estreia do filme, o discurso sobre a centralidade das eleições e o levante do republicano honesto contra a figura ilegítima – o juiz Hoffman –, o filme “Os 7 de Chicago” pode ser interpretado como um levante cifrado contra Trump. O ex-presidente Trump, que gerou cisão inédita no Partido Republicano, estaria representado simbolicamente pelo juiz Julius Hoffman, um juiz que, por não ser imparcial e justo, não deveria estar no comando do tribunal e, por estar ali, produz um julgamento farsesco.

Desse modo, o final catártico fictício de Sorkin traz a luta dos sete de Chicago para o presente. Pretende mostrar que é possível reunir os diversos grupos democratas e os republicanos honestos contra a figura ilegítima que está no poder. Com seu “Frankenstein cinematográfico” – que mescla ficção e realidade –, Sorkin revisita um fato histórico importante, oferece uma experiência instigante ao público e alerta sobre a importância das eleições presidenciais: remover quem não deveria estar ali. É por priorizar essa mensagem que Sorkin decidiu fazer um filme mais paroquial e menos universal, direcionado basicamente ao público estadunidense, e perdeu a oportunidade de fazer uma crítica ainda mais profunda contra a injustiça, a guerra e o racismo.

 

* Mateus de Paula Narciso Rocha é mestre em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e doutorando em Ciências Sociais na UNESP/Marília. É pesquisador do INCT-INEU e estuda a política exterior dos Estados Unidos para a China. Contato: mateusdepaula@outlook.com.

** Recebido em 12 abr. 2021. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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