Eleições

União Europeia acolhe com cautela a vitória de Biden

O então vice-presidente americano, Joe Biden, e a chanceler alemã, Angela Merkel, conversaram com a imprensa, em Berlim, Alemanha, em 2013 (Crédito: Getty Images)

Por Solange Reis*

Depois do relacionamento turbulento com o governo Trump, a maioria das lideranças europeias acolheu a vitória eleitoral de Joe Biden. Quando o democrata assumir a Presidência dos Estados Unidos, as relações transatlânticas poderão finalmente sair da unidade de terapia intensiva onde estiveram nos últimos quatro anos.

O acolhimento veio acompanhado de cautela, já que a política americana de contraposição à China deverá mudar no formato, mas não na essência. Esse tensionamento impõe uma escolha indigesta para os europeus, entre a potência mantenedora do status quo e a desafiante. Além disso, os precedentes abertos por Trump geraram um grau de desconfiança que, embora não seja permanente, deverá se prolongar por mais um tempo.

Para além das questões práticas e pontuais, os aliados transatlânticos enfrentam o desafio existencial de reverter um declínio que não é simplesmente conjuntural, mas estrutural. Em ambos os lados do Atlântico, as classes nos estratos médios e baixos se ressentem das perdas econômicas e sociais que atribuem à globalização. Procuram nas urnas as propostas nacionalistas que acreditam ser a solução, um caminho que vai de encontro à ordem liberal conduzida pelas potências transatlânticas.

Menos Twitter, mais diálogo

Nenhuma liderança no Velho Continente espera que Biden chame a OTAN de obsoleta, ou considere a União Europeia (UE) um inimigo comercial. Mesmo que o presidente eleito não faça nenhum gesto de aproximação – o que é improvável –, o simples fato de não humilhar os aliados já será considerado um ganho pelo bloco.

Dizem as más e boas línguas, dependendo do ponto de vista, que a restauração da diplomacia favorecerá a ordem liberal. Este conceito expressa a arquitetura da hegemonia global americana, baseada na economia de livre-mercado e na democracia como organização social. No seu conjunto, as relações transatlânticas são um dos sustentáculos do ordenamento internacional que vigorou após o fim da Segunda Guerra Mundial.

Biden espera resgatar a credibilidade dos Estados Unidos no mundo e a boa qualidade das relações transatlânticas. Para isso, pretende substituir provocações por diálogo, tuítes por memorandos de entendimento.

Banho de loja na velha agenda

Sua bandeira inicial irá girar em torno de alguns temas “soft power”. Um deles abrange a criação da Cúpula da Democracia para fortalecer as instituições democráticas e confrontar os regimes deficientes. Subtemas como corrupção, autoritarismo e violação dos direitos humanos constarão da agenda transatlântica. Mas a proposta não difere muito da “Aliança para a Democracia”, desenvolvida pelo atual secretário de Estado, Mike Pompeo.

Outro tópico que será imediatamente abordado, como o próprio presidente eleito já disse, é o Acordo de Paris. Biden prometeu aderir novamente ao compromisso climático, que foi abandonado por Trump. O mesmo deverá ser feito quanto à Organização Mundial da Saúde. A adesão a mecanismos multilaterais é um ponto-chave para os europeus, e a rapidez com que Biden tomar essas iniciativas dirá muito sobre o futuro das relações.

A escolha de Antony Blinken, um europeísta, multilateralista e francófilo, para o cargo de secretário de Estado sinaliza que a União Europeia ganhará espaço no Departamento de Estado. Outro sinal positivo para a retomada da diplomacia é o relatório bipartidário feito recentemente pelo comitê de Relações Exteriores do Senado, intitulado “Estados Unidos e Europa: uma agenda concreta para cooperação transatlântica sobre a China”.

Sobre o programa nuclear iraniano, o novo governo americano deverá retomar o diálogo, mas aproveitar a ruptura para endurecer as regras com o Irã, estendendo-as inclusive ao campo militar. Nesse ponto, a Europa se mostra disposta a ceder aos aliados. Heiko Maas, o ministro das Relações Exteriores da Alemanha, que antes criticava Trump por sair do acordo, agora fala que o Irã deve parar de violar o compromisso.

De modo geral, há muita indefinição. No plano de política externa do democrata, as palavras ONU e multilateralismo não aparecem. A Europa/UE é citada somente duas vezes. Uma, como colaboradora contra a interferência da Rússia na democracia ocidental. Outra, como companheira de difusão da democracia no mundo.

Ordem desgastada

É inegável que o período Trump prejudicou a imagem de um sistema mundial feito à semelhança das potências ocidentais. John Ikenberry, um dos mais conhecidos teóricos das Relações Internacionais, anteviu, em 2016, que “todo instinto de Trump é contrário às ideias que têm sustentado o sistema internacional no Pós-Guerra”.

O desacoplamento transatlântico não começou com Trump. Ao longo das décadas, houve vários atritos entre os aliados. Um dos mais notórios ocorreu com a decisão unilateral dos Estados Unidos de invadir o Iraque em 2003. Tampouco faltaram discordâncias comerciais e, até mesmo, choque de visão de mundo. A bandeira climática defendida pelos europeus é o que há de mais simbólico no abismo filosófico entre os dois eixos.

Até mesmo Barack Obama, que retomou o multilateralismo perdido nos anos de George W. Bush, pressionou os europeus a gastarem mais com defesa. Foi ele também quem rompeu oficialmente com a lógica de segurança da Guerra Fria, desviando o foco americano de defesa, da Europa para a Ásia, com sua política do pivô asiático.

O que diferencia Trump de seus antecessores não são as discordâncias pontuais com a UE, mas o questionamento sobre a utilidade da aliança. Ao colocá-la em xeque, o republicano desprezou o próprio poder americano. Pois este e a ordem liberal são as duas faces da mesma moeda. Não existe uma sem a outra.

Antidiplomacia

Trump adotou uma retórica hostil, avisando que as alianças não são eternas. Chegou a dizer que não se sentia obrigado a cumprir o artigo 5º da Carta da OTAN justamente o que trata da segurança coletiva , caso os aliados não destinassem o mínimo de 2% do PIB para gastos com defesa. Embora não seja uma regra, o percentual foi acordado tacitamente em 2006. Ao mercantilizar a cooperação, o republicano profanou a sacrossanta essência da aliança militar, abrindo um precedente do qual os europeus não deverão esquecer.

Outro ponto de fissura foi o abandono do programa nuclear iraniano à revelia dos demais signatários. Alegando que o Irã violava o acordo, Trump reimpôs sanções econômicas a quem comercializar com os iranianos. A radicalização obrigou os europeus, principalmente a Alemanha e a França, a encontrarem soluções alternativas para manter o fluxo comercial com o Irã. Uma delas foi a criação do Intex, um sistema de pagamentos para burlar os canais internacionais padrão.

A lista de unilateralidades dos Estados Unidos é extensa. Assassinato do general iraniano Qasem Suleimani, ações militares no Oriente Médio, imposição de tarifas sobre aço e alumínio europeus. Outro gesto crítico foi a renúncia ao Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário (INF, na sigla em inglês), um instrumento que protegia a Europa de hipotéticos mísseis balísticos russos.

Nada, porém, foi mais prejudicial às relações transatlânticas do que o apoio explícito ao Brexit. Afinal, excluindo-se um ataque militar, o que poderia ser mais hostil à União Europeia do que incentivar a sua desintegração?

O segundo tempo de Trump reduziu o foco sobre a Europa, com a guerra comercial e tecnológica com a China ganhando ênfase. A eclosão da pandemia em 2020 dominou tudo o mais, significando um salve-se quem puder. Quando os contágios começaram a crescer nos Estados Unidos, Trump proibiu a entrada de cidadãos e residentes europeus em território nacional, sem sequer consultar os aliados. Países europeus também acusaram os Estados Unidos de “pirataria moderna”. Em parceria com empresas privadas, o governo americano teria confiscado embarques de material médico da Ásia para a Europa.

A reação coletiva a todas as hostilidades por parte da UE, ou dos países-membros, variou entre notas de repúdio a algumas medidas práticas. Entre elas, o desenvolvimento de um plano de autonomia estratégica e a aplicação de tarifas sobre alguns produtos americanos.

Um amigo inconveniente

Apesar da simpatia mútua, há zonas de potencial atrito entre o novo governo e o bloco europeu. Entre elas, o tratamento regulatório das atividades de gigantes tecnológicas como Google, Facebook, Amazon. Em 15 de dezembro, a UE apresentou a proposta de lei “The Digital Services Act” (Lei de Serviços Digitais), limitando o poder jurídico e fiscal dessas grandes corporações, quase todas americanas, no território comunitário. Regulamentar é tudo o que resta, já que os europeus parecem ter perdido a oportunidade de competir tecnologicamente no quesito informação. Passam a ser, portanto, clientes importantes e exigentes.

Biden tem-se mostrado favorável a mais controle digital, mas seu compromisso com o lobby do Vale do Silício poderá limitar, e até mesmo inviabilizar, a convergência plena com os europeus nesse aspecto.

No campo comercial, as expectativas são de menos enfrentamento direto. Há, no entanto, um detalhe curioso quando Biden fala em desenvolver uma política externa para a classe média. Com ideias sobre gerar emprego, desenvolver um comércio justo e trazer as lideranças trabalhistas para a mesa de negociações, ele sinaliza para os eleitores democratas e republicanos. Basicamente, define a segurança econômica como interesse nacional, o que deverá conter elementos protecionistas.

Quanto à estratégia militar, o presidente eleito diz ser importante acabar com as guerras intermináveis, nas quais os Estados Unidos se envolveram. É bom lembrar que, já nos tempos de sua vice-presidência, os estrategistas militares alertavam que o país não tem mais capacidade para lutar duas guerras ao mesmo tempo. A desaceleração dos combates é boa para os países europeus, cujas populações desaprovam as aventuras de guerra.

É provável que os europeus embarquem ainda mais no discurso americano sobre violação de direitos humanos na China e outras temáticas do tipo. Quanto aos temas duros, como Taiwan, Hong Kong e disputas marítimas no Sudeste Asiático, esses cobrarão um preço mais alto, o que fará os europeus pensarem duas vezes.

A grande estratégia dos Estados Unidos deverá consolidar a abordagem contra a China. Nesse quesito, a UE se vê em um dilema. Como atender aos apelos de seu maior aliado sem perder as oportunidades abertas com o capital e o mercado chineses?

O fato é que a Europa convive muito melhor com a China, a quem chama de rival sistêmico, do que com os Estados Unidos, que a classificam como rival estratégico. Além disso, o relacionamento com os chineses varia muito de país para país. Itália e Alemanha, para citar apenas dois, mantêm ótimas relações comerciais com Pequim.

No dia 17, a chanceler Angela Merkel aprovou o uso da tecnologia 5G da empresa chinesa Huawei. A adoção é condicional e ainda precisa passar pelo Parlamento, mas já significa uma derrota para a Casa Branca, independentemente de quem a lidera. Tal decisão não surpreende por duas razões. A primeira é o fato de a China ser o maior parceiro comercial da Alemanha. Em segundo lugar, a tecnologia 5G decide quem larga na frente na corrida para o estágio seguinte do capitalismo. A Alemanha aceita com resignação sua insignificância militar, mas não está disposta a perder o posto de gigante econômico.

Biden deverá seguir apostando no resgate do discurso democrático, porém o confronto na política internacional talvez não seja entre democracia e autoritarismo. Uma China liberal competiria da mesma forma com o Ocidente.

 

Solange Reis é doutora em Ciência Política pela Unicamp, professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas e pesquisadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-Ineu). Contato: reissolange@gmail.com.

** Recebido em 18 dez. 2020. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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