América Latina

Visita de Pompeo sinaliza inflexão na política americana para Venezuela

Pompeo e o ministro brasileiro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo (1o à dir.), em 18 set. 2020, em base aérea em Roraima (Crédito da imagem: Bruno Mancinelle/AP)

Por Carolina Silva Pedroso*

A rápida visita do secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, à América do Sul, a pouco menos de 50 dias da eleição presidencial americana, suscitou uma série de análises sobre as intenções do chefe da diplomacia de Donald Trump – sobretudo, em um contexto tão importante para a política doméstica. Ainda que tenha buscado atingir mais de um objetivo, como consolidar a hegemonia dos EUA sobre a Ilha da Guiana, em especial frente à presença crescente da China, e reforçar o alinhamento de Brasil e Colômbia à política hemisférica de Trump, não resta dúvida de que a viagem tinha um alvo muito claro: o governo de Nicolás Maduro.

As primeiras paradas desse rápido périplo pelo norte da América do Sul foram no Suriname e na Guiana – países pequenos e, muitas vezes, esquecidos da região. A descoberta recente de importantes reservas de petróleo e o aumento de investimentos chineses fez com que eles se tornassem, no entanto, destino do secretário de Estado, que foi recebido pelos respectivos presidentes.

No caso do Suriname, a agenda pareceu estar muito concentrada no fortalecimento da relação bilateral, especialmente no âmbito da atração e da manutenção do capital privado estadunidense no país. Mesmo que não mencionasse de forma direta a concorrência chinesa, Pompeo e o presidente Chandrikapersad “Chan” Santokhi foram questionados na coletiva de imprensa sobre essa questão. O secretário de Trump reiterou seu esforço por defender as companhias dos EUA, as quais, segundo ele – e em contraposição às da China –, agiriam seguindo um modelo ocidental, marcado pela transparência e pelas regras de livre-concorrência, trazendo benefícios para os dois lados envolvidos.

A defesa desses princípios é condizente com seu papel enquanto chefe da política externa norte-americana e é coerente com a proposta da viagem ao Suriname, mas a primeira pergunta direcionada aos líderes durante esse encontro foi relativa à Venezuela. Enquanto que, em sua resposta, o mandatário surinamês foi evasivo e reforçou princípios basilares da diplomacia internacional, como a não ingerência em assuntos internos e a resolução pacífica de controvérsias, Pompeo direcionou críticas à Maduro e alegou que o interesse de seu país era defender a democracia, os direitos humanos e a dignidade do povo venezuelano.

Le secrétaire d'Etat américain Mike Pompeo, aux côtés du président du Surinam Chan Santokhi et du ministre des Affaires étrangères Albert Ramdin au palais présidentiel de Paramaribo, le 17 septembre 2020
(Da esq. para dir.) Pompeo, o presidente do Suriname, Chan Santokhi, e seu ministro das Relações Exteriores, Albert Ramdin, no Palácio presidencial de Paramaribo, em 17 set. 2020 (Crédito: Jason Leysner/AFP)

Na Guiana, esses argumentos contra o regime venezuelano ficaram ainda mais palpáveis nas falas e nas ações do secretário de Estado. Isso porque foi anunciado um acordo de cooperação sobre patrulhas marítimas conjuntas, com o objetivo de evitar o tráfico de drogas pelo território marítimo guianense. Em um contexto, no qual Nicolás Maduro é acusado por esse mesmo crime e considerando-se as constantes afirmações por parte da DEA (United States Drug Enforcement Agency, a principal agência americana de combate às drogas), no sentido de imputar à cúpula bolivariana a promoção de narcotráfico e narcoterrorismo, é possível subentender que realizar um cerco a esse tipo de atividade, que teria na Venezuela um epicentro importante, faz parte da agenda de segurança hemisférica para os Estados Unidos. Em termos de retórica, Pompeo afirmou que, por ser o responsável pela devastação de seu próprio povo, Maduro deve sair do poder e salientou a significativa ajuda financeira dada por seu país à Guiana no recebimento de imigrantes e refugiados venezuelanos.

É importante ressaltar ainda que a triangulação EUA-Guiana-Venezuela não passa somente pelo aspecto da guerra às drogas e da imigração venezuelana. Os vizinhos sul-americanos possuem um secular contencioso fronteiriço. Recentemente, o tema voltou a se tornar um problema diplomático, após reservas petrolíferas terem sido localizadas justamente no território reclamado pelo regime bolivariano, que corresponde a 2/3 do total guianense. Mesmo sem grande expertise em petróleo, a Guiana tem conseguido aumentar sua produção, com projeções inclusive de ultrapassar a da Venezuela, porém concentrando quase toda operação em empresas estrangeiras. A estadunidense Exxon-Mobil, por exemplo, faz parte de um consórcio que explora petróleo em uma região marítima que é reivindicada pela Venezuela e já foi alvo de interrupções por parte da Marinha bolivariana em 2018.

Já no Brasil, a agenda foi de somente 3 horas na capital de Roraima, Boa Vista, e incluiu a visita às instalações da Operação Acolhida, que desde fevereiro de 2018 é desenvolvida pelo Exército brasileiro, junto com organizações não-governamentais, Polícia Federal e agências da ONU, para auxiliar imigrantes e refugiados venezuelanos. Desta forma, a centralidade do encontro que teve o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, como anfitrião, foi a questão da imigração venezuelana e os impactos para o Brasil e para os EUA.

Embora tendo sido uma breve passagem, ele pôde conversar com alguns refugiados venezuelanos e voltou a denunciar o governo de Maduro. Após a visita, o Itamaraty retirou o visto diplomático de representantes venezuelanos vinculados ao regime bolivariano, em consonância com o discurso de defesa da democracia como sendo um dos elos do Brasil de Bolsonaro aos Estados Unidos de Trump.

(Da esq. para dir.) Presidente colombiano, Iván Duque, e o secretário Pompeo no palácio presidencial, em Bogotá, 19 set. 2020 (Crédito: Nicolas Galeano/Ascom da Presidência via AP)

Seguindo a mesma tônica, um dos temas mais discutidos na Colômbia foi a situação dos venezuelanos, sobretudo, no contexto da pandemia da covid-19, e o auxílio que o Estado colombiano vem prestando a essa população. Acolhendo mais de um milhão e meio dos cinco milhões de venezuelanos que deixaram sua terra natal nos últimos anos, é considerado o país que mais recebeu pessoas desta nacionalidade desde o início da crise migratória, em 2015. Outros pontos que compuseram a visita de Pompeo a um de seus principais aliados sul-americanos foram a guerra às drogas, o combate às guerrilhas, a segurança hemisférica, o estreitamento do relacionamento comercial e o aumento de investimentos estadunidenses na zona rural da Colômbia – não por acaso, onde os principais grupos guerrilheiros e de narcotraficantes estão estabelecidos.

Assim como Jair Bolsonaro, o colombiano Iván Duque é um dos líderes regionais mais críticos ao chavismo. Desde sua eleição, em 2018, ele não reconhece a legitimidade do regime de Nicolás Maduro, a quem considera um “usurpador”, uma ameaça à estabilidade regional e responsável por crimes contra a humanidade. Essa última afirmação ocorreu justamente durante o encontro com Pompeo, à luz do recente relatório das Nações Unidas sobre as sistemáticas violações aos direitos humanos cometidas pelo Estado venezuelano sob Maduro.

O encontro entre eles aconteceu em uma escola de cadetes que foi alvo do último atentado supostamente realizado pelo Exército de Libertação Nacional (ELN), uma das maiores guerrilhas ativas do país. Aproveitando o ensejo do local onde estavam, ambos relacionaram as atividades desses grupos com o regime venezuelano. Caracas estaria acobertando atividades ilícitas em seu território, as quais prejudicam não apenas a Colômbia, mas os Estados Unidos, que acabam sendo um dos principais destinos das drogas produzidas e transportadas por esta rota.

Com ênfases distintas em cada país, a repulsa ao governo de Nicolás Maduro esteve sempre presente na viagem de Pompeo à América do Sul, realizada na mesma semana em que o mundo soube da acusação de que imigrantes detidas tiveram seus úteros retirados sem consentimento nos Estados Unidos. Como exposto, o secretário de Estado americano não poupou críticas ao mandatário venezuelano, a quem chamou de “ditador” e de “narcotraficante”. Maduro rebateu e atacou o estadunidense pela viagem “bélica” empreendida ao subcontinente que teria como propósito, segundo ele, colocar os países vizinhos contra a Venezuela, instigando um conflito regional.

Ainda que as declarações de ambos os lados possam ter sido duras, é preciso ir além da retórica explosiva para compreender o significado dessa viagem no marco das relações bilaterais, levando-se em consideração pelo menos dois aspectos: como esses países vinham interagindo nos últimos anos e qual o contexto atual em esse relacionamento se insere.

‘Inimizade conveniente’

Desde a chegada de Chávez ao poder, em 1999, e especialmente após a eleição de George W. Bush, as relações entre os dois países passaram por uma espiral de tensões, chegando a ficar sem representação diplomática mútua. No âmbito econômico, porém, as trocas comerciais se tornaram ainda mais intensas, inserindo-se no que ficou conhecido como “inimigos sim, negócios à parte”. A expressão é usada pelo venezuelanista Leonardo Valente em sua tese de doutorado.

Por um lado, as ações unilaterais empreendidas no âmbito da Doutrina Bush e as comprovadas tentativas de ingerência dos EUA na política venezuelana – em que o golpe de 2002 foi a mais ousada e chegou a tirar Chávez do poder por algumas horas – aumentavam o ímpeto anti-imperialismo do governo bolivariano. Por outro, a despeito da intenção chavista de se contrapor à hegemonia estadunidense, havia um limite material para isso: a enorme dependência comercial de seu principal parceiro, tanto como comprador do petróleo, como refinador do óleo cru e pesado que existe no subsolo venezuelano.

A existência dessa rivalidade entre as gestões W. Bush e Chávez gerou um ciclo de retroalimentação: a postura anti-imperialista do venezuelano reforçava o receio estadunidense quanto ao processo bolivariano e incentivava o financiamento à oposição, enquanto esse apoio explícito aos grupos opositores serviam para justificar a crescente preocupação chavista com conspirações e interferências dos EUA na política doméstica. Tudo isso sedimentado por profundas relações econômicas, comerciais e financeiras, fazendo com que essa inimizade diplomática, no final das contas, fosse conveniente para ambos.

Essa “inimizade conveniente”, conceito usado em nossa tese de doutorado, significa que, dado o clima de polarização interna desde a chegada de Chávez ao poder, as animosidades diplomáticas com os Estados Unidos se tornaram convenientes tanto para sustentar a rivalidade do governo com a potência hemisférica, como para aumentar a aliança entre Washington e a oposição antichavista, cujos aportes financeiros recebidos por diferentes instituições estadunidenses foram essenciais para o surgimento de novos partidos e lideranças (esse mapeamento está mais detalhado em nosso trabalho). A conveniência também se deu no âmbito externo, uma vez que, apesar das estridentes declarações entre as chancelarias e cúpulas de governo, o cerne da relação bilateral – o comércio petroleiro – não foi prejudicado. Ao contrário, alcançou níveis ainda mais elevados do que na era pré-Chávez.


Presidente chinês, Xi Jinping (E), e o venezuelano, Nicolás Maduro, em Pequim, 14 set. 2018 (Crédito: Reuters)

Entrada da China

Com a morte de Chávez em 2013, já sob o segundo mandato do presidente Barack Obama e com a ascensão de Nicolás Maduro, as relações se mantiveram pautadas pela inimizade conveniente, porém com um agravante para os Estados Unidos: a China. Exatamente no mesmo ano em que Maduro passou a ocupar a Presidência, o gigante asiático alcançou, pela primeira vez, o segundo lugar dentre os principais parceiros comerciais da Venezuela (importação e exportação), atrás somente dos estadunidenses.

Desde então, o país bolivariano não divulga mais seus dados oficiais. Portanto, o último registro revela que foram importados US$ 10,5 bilhões dos Estados Unidos, e US$ 7,6 bilhões da China, enquanto as exportações venezuelanas foram de US$ 30,4 bilhões e US$ 28,3 bilhões, respectivamente. Mesmo sem preencher todos os requisitos que faziam dos norte-americanos os parceiros “ideais” para o país caribenho (proximidade geográfica, facilidade logística e expertise no refino do petróleo venezuelano), a crescente presença chinesa na América Latina como um todo passou a incomodar a potência hemisférica.

Desde sua campanha à Presidência de 2016, Trump não deixou de mencionar a ameaça que a China representava ao poderio estadunidense em diversos âmbitos, incluindo a influência econômica que passara a ter na vizinhança americana. Nesse mesmo período, a deterioração da vida social e econômica na Venezuela aumentou também a conflituosidade política no país, expondo a relevância das relações estabelecidas desde a época de Chávez com a Rússia, enquanto fornecedora de armamentos, e com o Irã, aliado estratégico no Oriente Médio. A presença de ambos na América Latina, especialmente na Venezuela, é vista como um problema para os Estados Unidos, especialmente sob a gestão Trump.

Se, no quadro externo, a Venezuela caminhava para aprofundar os laços com regimes não alinhados aos Estados Unidos, a profunda crise multidimensional em que estava inserida gerou uma situação inédita de saída em massa de cidadãos, em busca de melhores condições de vida no exterior. A chegada de muitos deles ao território norte-americano jogou mais luz sobre a questão venezuelana e instigou a comunidade já existente, especialmente concentrada na Flórida, a apoiar a candidatura e, na sequência, o governo Trump.

Mesmo tendo sido eleito sob a égide de menor engajamento no exterior, o tema da Venezuela foi bastante mobilizado pelo republicano, seja pela própria debacle bolivariana, seja pela pressão desses grupos internos com interesses diretos na derrocada de Nicolás Maduro. Por isso, rompendo com o relativo equilíbrio e acomodação que a inimizade conveniente tinha gerado por tantos anos, o governo dos Estados Unidos passou a impor sanções que, pela primeira vez, alcançaram o elemento central da relação bilateral: o petróleo.

Se, economicamente, alguns “tabus” foram superados, politicamente, já não há constrangimentos. Trump e sua cúpula querem Maduro fora e chegaram a incentivar a autoproclamação do opositor Juan Guaidó como presidente interino do país, a quem ainda reconhecem como o mandatário legítimo da Venezuela – embora não tenha o poder de fato. E foi justamente em mais uma tentativa de liderar o país que Guaidó teria firmado um contrato com a empresa de segurança norte-americana Silvercorp, a fim de sequestrar o líder bolivariano e enviá-lo para os Estados Unidos, onde já havia sido acusado de narcotráfico.

A estapafúrdia Operação Gideón, desarticulada em maio de 2020 por forças leais a Maduro, foi uma combinação fracassada, mas interessante. Isso porque mesclava a articulação de uma resistência armada ao regime, cujo acampamento e base de treinos estavam localizados na Colômbia, com a participação de uma companhia privada. Se, durante o século XX, a primeira estratégia foi a mais utilizada por governos estadunidenses na intenção de desferir golpes políticos na América Latina (Nicarágua talvez seja o caso mais evidente), no século XXI, ela foi repaginada, com a participação de atores não-estatais oriundos justamente das intervenções dos EUA no Oriente Médio, como é o caso da Silvercorp.

Apesar de não ter oficialmente admitido sua participação na Operação Gideón, a administração Trump nunca escondeu que estaria disposta a usar a força, se fosse preciso, para acabar com o governo herdeiro do chavismo. A visita e as declarações de Pompeo na América do Sul demonstraram o interesse de Washington em um desfecho que resulte na saída de Maduro, ainda que não indiquem a participação direta da potência.

Diante do contexto político de grande incerteza quanto ao resultado eleitoral nos Estados Unidos e que estados decisivos como a Flórida contam com o voto latino (incluindo o eleitor de origem venezuelana) para definir quem será o próximo presidente, a lógica do posicionamento de Pompeo neste momento se torna ainda mais evidente: convencer esse eleitorado a continuar apoiando Trump e, quem sabe, arregimentar mais votos em um estado tão relevante eleitoralmente. E, diante do nível de esgarçamento das relações bilaterais, sua visita pode ser vista como um grande alerta para o regime bolivariano, pois, na busca pela reeleição e mesmo em uma eventual vitória de Trump, os EUA estão sinalizando que podem ir além das ameaças.

 

* Carolina Silva Pedroso é mestre e doutora em Relações Internacionais pelo Programa San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP e PUC-SP). Realizou pesquisa de campo com as organizações políticas venezuelanas nos EUA em 2017, quando foi pesquisadora associada ao Institute for Latin America and the Caribbean (ISLAC) da University of South Florida (USP). Atualmente é professora do Departamento de Relações Internacionais da UNIFESP e pesquisadora do INCT-INEU.

** Recebido em 21 set. 2020. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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