A saga das discórdias no Partido Democrata

Pete Buttigieg, Bernie Sanders, Elizabeth Warren e Joe Biden (Crédito: Brendan McDermid/Reuters, Chip Somodevilla/Getty Images North America/AFP e Rick Wilking/Reuters)

Por Natália Mello*

Os membros do partido Democrata nos Estados Unidos concordam plenamente a respeito de qual a meta para 2020: impedir a reeleição de Donald Trump. Em tudo o mais, multiplicam-se discórdias.

O risco do cenário político atual é palpável. Trump não concedeu aos migrantes nenhum direito mínimo de dignidade, encarcerou até mesmo crianças que cruzaram as fronteiras com os seus pais, naturalizou no debate público a xenofobia, a misoginia, a LGBTfobia, aumentou a desigualdade de um sistema de tributação já profundamente desigual. E o processo que ensejou a abertura de um impeachment do presidente deixou clara sua disposição de abusar do cargo com o intuito de prejudicar os prospectos eleitorais de Joe Biden, seu então provável opositor.

Um dos cientistas políticos que vêm investigando as ameaças atuais à democracia, Yasha Mounk, argumenta que o que está em jogo nas eleições de 2020 é ainda mais preocupante. A história demonstra que os líderes similares a Trump que foram reeleitos para um segundo mandato passaram a colocar as instituições democráticas sob um risco muito mais grave. Quando reconduzido ao poder, o mandatário alcança maior autoridade e consegue assumir um controle mais amplo de instituições independentes, como o Judiciário, o Congresso, as agências executivas, a mídia, impedindo que essas exerçam suas funções democráticas de freio e contrapeso.

O cenário é grave, mas as discórdias no interior do Partido Democrata tornam as expectativas ainda mais inquietantes.

A grande aposta do establishment do partido para 2020, Joe Biden, começou a disputa de forma decepcionante. Politicamente experiente, moderado, com uma boa base de apoio entre a classe trabalhadora branca e os afro-americanos, o candidato não parecia ser uma má jogada eleitoral.

A idade avançada de Biden (77 anos) era uma desvantagem. Pior, era a baixa adesão que teria entre os eleitores e movimentos mais propositivos de uma renovação no Partido Democrata. E, como havia sido previsto por alguns analistas, a abertura do impeachment contra Trump, proposto por evidências de suborno e extorsão, também poderia comprometer a imagem do pré-candidato democrata. O problema era que seu nome e o de seu filho ficariam expostos na mídia durante todo processo, junto ao telefonema em que o presidente intimava seu colega na Ucrânia a investigar os negócios de Hunter Biden no país.

Por uma mistura de razões, Biden demorou a decolar. O establishment se dividiu: o ex-prefeito Pete Buttigieg foi um dos principais favorecidos. Amy Klobuchar buscou ao máximo competir os votos disponíveis no centro político, mas pouco se beneficiou dos financiamentos, que preferiram o ex-prefeito. Correndo por fora, Mike Bloomberg, o maior bilionário a concorrer a presidência dos Estados Unidos em toda história, com uma fortuna 18 vezes maior do que a de Trump, investiu mais em publicidade do que todos os outros pré-candidatos combinados (precisamente, duas vezes mais do que todo o resto). O foco das propagandas era justamente os 14 estados que foram às urnas no último dia 3 de março, a chamada “Super Terça”.

O cenário pulverizado da disputa e os resultados oficiais do candidato Joe Biden começaram a mudar com a “Ameaça Bernie”. Bernie Sanders é senador de Vermont, autointitula-se um “socialista democrata” e foi tradicionalmente um político independente, mas se filiou ao Partido Democrata em 2016 e agora novamente em 2020 para concorrer às eleições primárias que decidem o candidato a presidente.

Na disputa contra Hillary Clinton em 2016, Sanders já havia desafiado o establishment partidário e, mesmo não chegando a se tornar uma ameaça real, prolongou a decisão de quem seria o candidato oficial até o fim. Mais do que isso, diversos elementos sugerem que vários dos seus apoiadores se ressentiram do tratamento dado pelo partido, dos indícios de favorecimento a Clinton e que alguns se abstiveram do pleito eleitoral.

Do ponto de vista do establishment, o quadro de 2020 é mais ameaçador. A fragmentação de candidatos ao centro fez com que Sanders vencesse a maioria das disputas primárias até a Super Terça. Seus apoiadores são profundamente mobilizados, com uma estrutura de organização mais avançada do que em 2016 e a enorme exposição que o candidato teve até agora estava criando um impulso em sua campanha que poderia torná-lo irrefreável.

O “centro moderado” e o establishment circundante se reestruturaram. Antes perdendo doadores, a campanha de Biden recebeu US$ 2 milhões nos quatro dias que antecederam a primária na Carolina do Sul e mais US$ 2,5 milhões via SUPER PAC. Um aumento expressivo para quem tinha menos do que a metade das verbas arrecadadas por Sanders em início de fevereiro (o primeiro tinha US$ 7,1 milhões, e o último, US$ 16, 8 milhões).

O investimento deu certo. Biden venceu na Carolina do Sul, com uma larga vantagem sobre Bernie (48,4% x 19,9%). Outros pré-candidatos moderados, especificamente Pete Buttigieg e Amy Klobuchar, abandonaram a disputa e apoiaram o ex-vice presidente. Poucos observadores notaram, no entanto, que a vitória do candidato do establishment em 2020 foi bem abaixo do que as marcas alcançadas por Hillary Clinton no mesmo estado em 2016 (76,4% x 26%).

Já os apoiadores de Sanders logo captaram e denunciaram em redes sociais como, em todas as primárias antecedentes, houve demora no anúncio do vencedor, exceto na Carolina do Sul. O resultado final de Iowa levou mais de 20 dias, mas mesmos os demais estados anunciaram o vencedor apenas madrugada adentro, quando todos os eleitores já dormiam. Já o sucesso de Biden na Carolina do Sul foi proclamado pela mídia em poucos minutos, com base em um survey com os eleitores e foi amplamente analisado durante toda noite. A larga vantagem entre um pré-candidato e outro permitia o anúncio antecipado, antes dos resultados oficiais. De qualquer forma, a “denúncia” de eleitores de Bernie de um complô da mídia e do establishment para diminuir o impacto de toda vitória do senador “radical” tinha raízes reais. Raízes que possuem bases profundas e históricas no Partido Democrata.

Há pouco mais de 50 anos, o partido de Roosevelt, que havia sido hegemônico na política estadunidense entre 1932 e 1968, sofreu uma grande derrota, cujos efeitos ainda podem ser sentidos. Dois pré-candidatos conectados à juventude e aos movimentos mais à esquerda do partido disputavam com o presidente Johnson e, logo a seguir, com seu vice e candidato substituto (Hubert Humphrey). Eugene McCarthy e Bob Kennedy (que acabou sendo assassinado antes do fim das primárias) desafiaram o vice-presidente especialmente por causa do descrédito da Guerra do Vietnã. A principal base destas campanhas advinha dos movimentos antiguerra. Embora McCarthy e Kennedy tenham colecionado mais vitórias nas primárias que Humphrey, os chefes locais partidários (os bosses) participaram de todo o tipo de negociatas e de trocas de favores e asseguraram a nomeação do candidato do establishment. Estavam dados todos os componentes que levaram ao desastre da Convenção Nacional do Partido em Chicago em 1968, quando Humphrey foi anunciado como o representante do partido nas eleições, ao mesmo tempo que manifestantes contrários à Guerra do Vietnã eram violentamente reprimidos pela polícia em cenas televisionadas e transmitidas para todo o país.

Depois deste momento trágico, o partido que até então era o hegemônico elegeu apenas três presidentes dos Estados Unidos: Carter, Clinton e Obama. Mas 1968 é apenas uma face da saga dos conflitos internos ao partido Democrata. A outra face aconteceu em 1972 e pode ser vista como a história de 1968 invertida.

Entre 1968 e 1972, a disputa eleitoral intrapartidária se transformou em batalhas sobre a melhor maneira de reformar a estrutura partidária, especialmente, o método de condução das primárias. A “nova esquerda” se organizou em torno de um movimento (conhecido como New Politics) que buscou garantir a realização de primárias em todos os estados e tentou promover um aumento de participação e influência dos militantes na agenda política partidária. Além disso, buscou adotar medidas para o recrutamento afirmativo de minorias e de jovens como delegados nas convenções do partido.

Apesar das reações do establishment, um dos líderes na condução destas reformas, George McGovern, foi nomeado o candidato a presidente na eleição de 1972. Os democratas foram às eleições extremamente divididos, porém, e McGovern sofreu, primeiro de tudo, a oposição de seu próprio partido. Esta campanha foi criticada por seu “excesso de radicalismo”, sendo que alguns políticos e grupos da base do próprio Partido Democrata se recusaram a anunciar apoio a McGovern, incluindo, o presidente da federação dos sindicatos AFL-CIO (George Meany).

O resultado foi a maior derrota eleitoral do partido desde o New Deal de Roosevelt. Nixon arrancou votos até mesmo de bases que eram, então, tradicionalmente democratas (como os dos trabalhadores de baixa escolaridade e os estados do Sul), e McGovern venceu apenas em Massachusetts e no Distrito de Columbia. Entre os grupos da coalizão democrata, apenas os negros se mantiveram fiéis e não votaram nos republicanos. Esta foi a última vez que um candidato mais à esquerda e em contato com os movimentos sociais conseguiu alcançar a nomeação do partido. Algumas campanhas tiveram, no entanto, repercussões significativas, como as de Jesse Jackson, em 1984 e 1988, e a de Bernie Sanders, em 2016.

O impacto da derrota massiva de McGovern pode ser sentido até hoje. Durante as eleições de 2016, por exemplo, um comentarista do Wall Street Journal comparava aquela eleição à de 1972 e chegava mesmo a “culpar” McGovern pelo fenômeno Trump.

Em 2020, é comum o comentário entre membros do establishment, da mídia e de analistas de diferentes posições políticas do quanto é arriscada a escolha de Sanders como candidato oficial do partido, já que seu radicalismo afastaria os setores majoritários do partido. Apesar de atrair ativistas e a juventude, não atrai a maioria e compromete assustadoramente a eleição para o Congresso, especialmente nos swing states (que ora dão vitória aos democratas, ora aos republicanos), o que potencialmente pode levar a que Trump conquiste novamente maioria nas duas casas legislativas.

De fato, por um lado, existem argumentos razoáveis que permitem sustentar tal precaução. Por outro, um olhar atento à história permite levantar um outro risco igualmente plausível. Um partido dividido como é o Democrata, cujo dissenso vem crescendo nos últimos anos, precisa tanto de sua base moderada, quanto de sua base mais progressista e à esquerda. Em meio ao crescimento da desigualdade nos Estados Unidos, da evolução de dívidas com saúde e com financiamento da universidade, parece ainda mais problemático imaginar que é possível não satisfazer a ala mais à esquerda do partido e conquistar uma vitória nas eleições presidenciais.

O pronunciamento de Bernie Sanders na noite do dia 3 de março, logo após a divulgação dos primeiros resultados da Super Terça, denunciava claramente como o outro pré-candidato apoiou a Guerra do Iraque e ratificou o polêmico resgate aos bancos, entre outras pautas que o movimento que ele lidera rejeita. Outros temas, não mencionados por Bernie, também já se transformaram em controvérsias eleitorais, como o apoio de Biden à lei de Clinton contra o crime (1994), considerada por muitos como responsável pelo aumento do encarceramento em massa nos Estados Unidos. O debate sobre cada um desses pontos vem sendo desenvolvido nos últimos meses e não é de pouca importância para os grupos mais progressistas.

O discurso de Biden na última terça, por sua vez, denunciou novamente que uma campanha divisiva, radical, distanciada da ala moderada do partido não conseguiria unir a base dos democratas e derrotar Trump.

É possível reconhecer, no entanto, que os três candidatos democratas que tiveram sucesso em ser eleitos presidentes depois de 1972 foram justamente aqueles que conseguiam atrair e aproximar tanto a ala mais progressista do partido, quanto a mais centrista, fabricando uma imagem de si perfeitamente ajustada a estas duas paixões.

Jimmy Carter surgiu em meio à crise do Vietnã e do Watergate, prometendo resgatar a moralidade na política estadunidense, abraçou os direitos humanos, escolheu assessores representativos de minorias, mas tinha também um discurso fortemente associado aos princípios do ajuste fiscal e controle das finanças e ainda era um candidato religioso da região sul do país.

Bill Clinton é atualmente lembrado pelo amplo compromisso com o neoliberalismo e por um discurso criminal punitivista, mas naquele período ele também apelava claramente para uma ideia de um “novo sul” e de modernidade. O ex-presidente prometeu “acabar com a assistência social como a conhecemos”, mas sua “mão esquerda” se comprometeu com o crescimento econômico, com a expansão de empregos e com uma maior estabilidade. Tudo isso, permitindo algo que a direita conservadora republicana não admitia: o respeito aos direitos das mulheres, aos direitos civis e à defesa do meio ambiente, pautas que atraíam suburbanos de classe média mais liberais.

Barack Obama é um grande retrato dessa dupla face. Subiu nas pesquisas anunciando a mudança, ele próprio representando um grande avanço, em um país que enfrentou o racismo a ponto de estar apto a eleger seu primeiro presidente negro. Embora tenha sido eleito durante a crise de 2008, nunca usou a oportunidade, no entanto, para assumir uma batalha contra o sistema financeiro. Decepcionou, com isso, alguns eleitores mais à esquerda.

Com base em uma perspectiva histórica, é difícil, sim, imaginar que Sanders consiga conquistar o restante da base do Partido Democrata. Mesmo que convencesse, a eleição poderia repetir a derrota de 1972 para a campanha ao Congresso, uma vez que haveria uma grande chance de o partido se voltar contra o nomeado, assim como fez com McGovern. Alternativamente, o outro lado também apresenta fraquezas consideráveis que nos fazem perguntar qual será o alcance deste novo impulso de Biden. Vencer as primárias é uma possibilidade provável, mas poderá ele conseguir uma vitória contra Trump sem a base progressista do partido?

O desenrolar das eleições de 2020 nos darão estas respostas. Por enquanto, podemos esperar que, nos próximos meses, cada um dos pré-candidatos continuará a denunciar o outro como inelegível. Existem grandes chances de que o bordão mais repetido ao longo desta campanha continue a ser o típico início de frase que vem sendo usado para acusar o adversário de excesso de radicalismo, ou sob outro ponto de vista, de um exagerado compromisso com o sistema atual. Refiro-me à sentença tão reproduzida que já é um clássico: “We are not going to beat Donald Trump, if we…”.

 

* Natália Mello é professora de Relações Internacionais da PUC- SP e pesquisadora do INCT-INEU.

** Este texto é uma republicação da análise publicada pela autora no Boletim Lua Nova, em 5 mar. 2020. A versão original está disponível aqui.

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