OPEU Entrevista

‘Ajuda alimentar é instrumento de poder econômico para os EUA’, diz pesquisador do INEU

Por Tatiana Teixeira

Em um mundo de cerca de 7,7 bilhões de habitantes, com quase 740 milhões vivendo em condição de pobreza extrema, o recém-lançado Segurança Alimentar e Relações Internacionais surge como contribuição importante para um debate cada vez mais urgente. Nos últimos anos, a fome voltou a crescer, atingindo pelo menos 820 milhões de pessoas no planeta, como alertam a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) e outras agências do Sistema ONU.

Organizado por Thiago Lima, professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e membro do INCT-INEU, este livro reúne diversos pesquisadores, que adotam uma abordagem multi e interdisciplinar para discutir as causas deste fenômeno, novos problemas e obstáculos perenes da área. Este projeto contou com o financiamento de agências de fomento, como CNPq (Brasil) e CONICET (Argentina).

Em entrevista ao Opeu, o professor Thiago fala dos avanços nos estudos de Segurança Alimentar e dos desafios para acadêmicos, formuladores de políticas públicas e cidadãos.

Por que segurança alimentar? Como surgiu o interesse pelo tema?

O interesse pelo tema da Segurança Alimentar surgiu durante a pesquisa de Doutorado, quando eu estudava hipóteses para a manutenção do protecionismo agrícola nos Estados Unidos. Na ocasião, em 2012, me deparei com o conceito de Soberania Alimentar, e isso despertou meu interesse pelo tema da Fome e as possíveis explicações para o fenômeno no âmbito da disciplina de Relações Internacionais. A partir daí, procurei mergulhar no tema e identifiquei que o tratamento da questão precisa ser interdisciplinar. Tenho, então, buscado estudar aportes da Sociologia, Geografia, Antropologia, do Agronegócio, da Agroecologia, da Nutrição, entre outras disciplinas. Esses estudos ocorrem dentro do Grupo de Pesquisa sobre Fome e Relações Internacionais, que coordeno na UFPB desde 2012.

Você estuda o assunto há algum tempo. O que mudou nesta área de pesquisa e no diálogo com as Relações Internacionais desde então?

A área de RI parece estar avançando na temática aos poucos, mas de forma sólida. Em 2018, a ABRI premiou a dissertação da Maria Eduarda Sousa, da UEPB, orientada pelo Alexandre Leite, com o tema da Estrangeirização de Terras em Moçambique. Participei da banca da Maria Eduarda e é um trabalho excelente, com enfoque pós-colonial e que aborda a intersecção entre a demanda por terras, por mais produtos agrícolas e os impactos locais em um país periférico. Já há estudos sobre Cooperação Internacional e outros de Análise de Política Externa que abordam o tema da segurança alimentar e nutricional, inspirados principalmente pela saliência do tema nos governos do PT. Porém, acho que o campo das RI ainda precisa colocar a questão da Fome no centro da pesquisa, como objeto fundamental, e não tratar o tema como laboratório para avançar no conhecimento teórico da APE, por exemplo. Acho que um esforço concertado da área, visando oferecer uma solução para o problema da Fome, seria muito bem-vindo.

Como o livro responde aos que apontam um cenário de superpopulação mundial e de escassez aguda de recursos daqui a alguns anos?

Os capítulos do livro deixam claro, cada um a seu modo, que o problema do mundo não é a oferta. É a distribuição. Existem alimentos suficientes, bem como instrumentos logísticos e institucionais para alimentar toda a humanidade. Porém, um sistema internacional competitivo e capitalista impede que os recursos sejam devidamente canalizados.

A questão alimentar ainda é eminentemente política?

Sem dúvida é política. Não é mais técnica, pois o mundo já produz alimentos em quantidade maior do que o necessário hoje. Basta ver a quantidade de alimentos desperdiçados, que vão para o lixo. Há uma decisão política que permite que as pessoas passem fome. É uma decisão que se repete em vários níveis, do local ao global, passando pelo internacional.

Em que situações segurança e soberania alimentar podem ser contraditórias?

A diferença principal é que a soberania alimentar preconiza que cabe ao Estado utilizar seus instrumentos de política pública para determinar como e quais alimentos serão produzidos e como serão distribuídos. Isso conferiria ao Estado a legitimidade para ser liberal, ou protecionista, conforme sua decisão soberana. Contudo, o conceito de segurança alimentar da FAO prima pela abertura dos mercados. Este conceito supõe que a insegurança alimentar será mais eficazmente combatida em uma economia aberta, direcionada pelos princípios das vantagens comparativas. A experiência histórica nos mostra que isso é uma má ideia, se o objetivo for garantir o abastecimento contínuo de alimentos culturalmente adequados e nutritivos. Porém, a alternativa da Soberania Alimentar pode acarretar um aumento dos preços dos alimentos, e isso é um problema, especialmente para os mais pobres. É um debate muito interessante e relevante.

No caso dos EUA, que setores do governo atuam e decidem políticas nesta área?

Os Estados Unidos possuem o programa de ajuda alimentar mais antigo do mundo, com origens nos anos 1950. Antes disso, ainda no século XX, alguns países doavam alimentos, mas não havia nada sistemático. Estas políticas nos EUA contam com as disputas e coalizões de alguns grupos de interesse. São os produtores de commodities, as empresas de transporte, funcionários do Departamento de Agricultura, da USAID [acrônimo para Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional] e Legisladores. Até onde pesquisei, havia um esforço do Executivo nos governos Bush Jr. e Obama, Republicano e Democrata, para reformarem o sistema estadunidense de ajuda alimentar. Lá, uma parte considerável dos alimentos que vão ser doados deve ser comprada em solo estadunidense, bem como preparados, embalados e transportados usando insumos e serviços estadunidenses. É o que se chama de “doação vinculada”. Bush Jr e Obama tentaram aliviar essas restrições, de modo que o Executivo pudesse comprar alimentos, insumos e serviços no mercado mais livremente, inclusive em locais mais próximos das populações a serem auxiliadas. Ocorre que interesses protecionistas limitam essa reforma no Congresso, e o sistema de ajuda acaba sendo menos eficiente do que poderia ser. Tudo isso deve ser compreendido à luz de um “pecado original”. Nos EUA, a ajuda alimentar surge como uma forma de se livrar de excedentes de alimentos – sobretudo trigo – que não encontravam compradores nos mercados após a Segunda Guerra Mundial. Quer dizer, o programa de ajuda alimentar dos EUA nasce como um instrumento de poder econômico dos Estados Unidos. Atos Dias e eu contamos essa história em mais detalhes no artigo A ajuda alimentar internacional dos EUA: política externa, interesses econômicos e assistência humanitária.

Seu capítulo sobre a ajuda alimentar com OGMs oferecida pelos EUA trata de uma questão ética importante. Que interesses estão por trás de políticas que permitem enviar para países pobres produtos banidos nos EUA?

A nossa conclusão é a que os Estados Unidos utilizaram, mais uma vez, a ajuda alimentar como uma forma de avançar interesses econômicos, corporativos. Isso ocorreria de algumas formas. Primeiro, dando fim a produtos que não poderiam ser comercializados. Segundo, difundindo os organismos geneticamente modificados para países que não produzem com esse pacote tecnológico. Seria um tipo de contaminação que, uma vez feita, poderia minar a política anti-OGM desses países. Com isso, ganham principalmente as empresas que produzem produtos e serviços que compõem os pacotes tecnológicos agrícolas: sementes, fertilizantes, pesticidas, consultorias etc.

Com a ascensão de governos de extrema direita, pode-se esperar que tipo de impacto na área?

Parece que os governos de extrema-direita, por serem anticientíficos e obscurantistas, não se importam com as conclusões dos especialistas acerca dos danos ambientais e de saúde pública causados por um sistema agroalimentar baseado em poucas commodities que são transacionadas ao redor do globo. Isso sem falar na questão agrária, isto é, na necessidade de reforma agrária com redistribuição de terra. Nesse sentido, a perspectiva com esses governos é a pior possível para a alimentação saudável, para o meio ambiente e para o combate às desigualdades que causam a fome.

Em tempos sombrios, como proteger os mais vulneráveis?

A proteção aos mais vulneráveis precisa ocorrer de multiplas formas, conforme o caso. É preciso combinar estratégias de emergência com estratégias estruturantes. Fornecer o alimento necessário para uma vida saudável imediatamente e, ao mesmo tempo, desenvolver políticas que permitam que as pessoas adquiram sua autonomia em termos de renda, ou da produção do próprio alimento. Além disso, oferecer alimentação de qualidade em equipamentos públicos, como escolas, hospitais e restaurantes populares é questão fundamental. Comida de verdade, não farinatas, bolachas, “fitoterápicos” e coisas do tipo. A ajuda internacional pode ser muito bem-vinda, mas deve vir de forma bastante coordenada com o poder público local e com as comunidades locais. Do contrário, o que pode acontecer é que a ajuda alimentar estrangeira acabe desestruturando o mercado doméstico. Neste cenário, sofrem principalmente os produtores rurais que, por regra, costumam ser justamente os mais vulneráveis. A relação dos EUA com o Haiti oferece exemplos nesse sentido. No artigo Controvérsias da ajuda alimentar para o desenvolvimento: o protesto haitiano contra o apoio dos EUA ao programa de merenda escolar do Haiti [publicado em 2018, em coautoria com Erbenia Lourenço], é possível verificar como a ajuda alimentar mal planejada pode acabar sendo um estorvo. Ajuda alimentar é coisa muito séria, que demanda planejamento altamente profissional e com muito respeito ao país e à população recipiendários.

 

INFORMAÇÕES SOBRE O LIVRO

* LIMA, Thiago (org.). Segurança Alimentar e Relações Internacionais. João Pessoa: Editora UFPB, 2019. 180p.

Sumário

1 APRESENTAÇÃO. Alimentação, Segurança Humana e Relações Internacionais: relações de Humanidade? por Thiago Lima (UFPB, pesquisador do INCT-INEU), Agostina Costantino (UNS – Argentina), Laís Forti Thomaz (UFG, pesquisadora do INCT-INEU) e Raquel Maria de Almeida Rocha (USP)

2 Dimensão jurídica do Direito Humano à alimentação adequada e políticas públicas, por Ana Carolina Oliveira Lopes (UFPB) e Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer Feitosa (UFPB)

3 O Brasil e a diplomacia do combate à fome e à pobreza, por Felipe Leal Albuquerque (ICS – Universidade de Lisboa)

4 Da prática aos princípios da cooperação Sul-Sul: a metodologia de atuação do Centro de Excelência contra a Fome, por Clarissa Franzoi Dri (UFSC) e Andressa Molinari da Silva (UFSC)

5 Ajuda alimentar internacional e organismos geneticamente modificados: o caso dos EUA, por Thiago Lima (UFPB), Erbenia Lourenço (UFPB, bolsista INCT-INEU) e Henrique Zeferino de Menezes (UFPB)

6 Da insegurança à dependência alimentar: padrão de acumulação e apropriação de terras na Argentina, por Agostina Costantino (UNS – Argentina)

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