A China segundo o olhar do governo Trump

Por Williams Gonçalves*

A Grande Estratégia da Contenção perdeu o sentido com o encerramento da Guerra Fria. Essa estratégia elaborada no Governo Truman, logo a seguir à dissolução da grande aliança que derrotou o nazifascismo, norteou a política externa dos Estados Unidos até o desmanche do bloco comunista e o colapso do Estado soviético. Ano após ano, governo após governo, a Estratégia da Contenção foi sendo adaptada às mudanças da conjuntura internacional, mas sem perder de vista o objetivo central.

Era uma estratégia com dupla face: de um lado, impedir qualquer avanço do comunismo além daquele perímetro estabelecido pelos acordos que finalizaram a Segunda Guerra Mundial e ampliado pelo êxito dos comunistas chineses em 1949; de outro, garantir a hegemonia norte-americana no restante do mundo, que se traduzia na liberdade de ação das finanças, das empresas, da estrutura midiático-cultural e das Forças Armadas do país no então chamado “mundo livre”. A extinção do inimigo estratégico na passagem dos anos 1980 para os 1990 tornou, obviamente, essa estratégia automaticamente obsoleta. O objetivo de manter o poder hegemônico continuava a existir, mas já não podia mais se ancorar no combate ao comunismo. Havia que se elaborar nova estratégia para justificar a hegemonia.

Consenso bipartidário

A razão do êxito dessa estratégia foi a aquiescência de todas as elites do país, agrupadas em torno dos dois grandes partidos políticos: Republicano e Democrata. O consenso bipartidário foi responsável pela ininterrupta conservação da Estratégia da Contenção. Ao longo do tempo, democratas e republicanos divergiram acerca de estilo e de ênfases, porém jamais do objetivo estratégico de impedir o surgimento de governos comunistas, ou aliados dos comunistas. Em cumprimento dessa estratégia, os governos dos Estados Unidos nunca hesitaram, ostensiva ou veladamente, em participar de golpes de Estado promovidos por aliados locais, ou mesmo praticar diretamente intervenções militares. Para tanto, bastava que percebessem a possibilidade de formação de governos comunistas.

Convém ainda sublinhar que o conceito de comunismo era, por sua vez, bastante elástico. Ele abarcava não apenas os governos de orientação marxista-leninista, mas também de outras tendências ideológicas, até mesmo nacionalistas, desde que, de alguma maneira, estes se apresentassem como obstáculo.

Na década que se seguiu à Guerra Fria, os Estados Unidos assumiram a posição central no sistema internacional de poder. Foi uma década em que não havia nenhuma potência em condições e com motivação para desafiar o poder norte-americano. Nesse período, viveu-se a ilusão de que as relações internacionais se converteriam, definitivamente, em relações econômicas internacionais, cuja regulação dependeria tão somente das leis do mercado. Apesar disso, ou talvez por isso mesmo, os formuladores norte-americanos não conseguiram mais elaborar uma Grande Estratégia que cumprisse o mesmo papel da Doutrina da Contenção. Embora se tenha mantido o consenso bipartidário de que aos Estados Unidos cabia o exercício do poder hegemônico, para que a ordem internacional liberal fundada em Bretton Woods mantivesse a solidez, o fato é que não se encontrou nenhuma ideia pela qual os demais atores estatais aceitassem se submeter em troca de proteção dos EUA.

A base da estratégia é a definição do inimigo. De acordo com o perfil do inimigo e da ameaça que ele representa, é que se desenha o plano para derrotá-lo. Isso supõe o estudo de seus pontos fortes e de suas vulnerabilidades, o que inclui seus aliados e sua capacidade de exercer influência. A partir desse estudo, ordena-se os aliados prioritários e secundários. Como em um jogo de xadrez, portanto, para derrotar o rei, é necessário ter clareza sobre as hierarquias e as posições das peças que formam seu campo.

Em grande medida, o sucesso de uma estratégia depende da capacidade dos elaboradores de mobilizarem aliados confiáveis, dispostos a permanecer na luta até a vitória final. Para isso, contudo, faz-se necessário demonstrar fundamentadamente que o inimigo ameaça a todos e que a vitória sobre ele será a vitória de todos. Por fim, deve-se considerar que a definição de um inimigo não implica necessariamente um confronto. O inimigo é útil para gerar tensão permanente e, desse modo, proporcionar à potência hegemônica o controle sobre seus aliados.

A estratégia anticomunista preenchia todos esses quesitos. Desde que o comunismo como estrutura e ideologia de Estado desapareceu, porém, os formuladores norte-americanos não conseguiram identificar um inimigo que propiciasse aos Estados Unidos continuar a exercer o papel de líder hegemônico. Aquele que talvez tenha se aproximado mais do desejado perfil de inimigo foi o terrorismo internacional, destacado pelo Governo de George W. Bush. Todavia, o terrorismo a pouco e pouco foi revelando suas inconsistências como inimigo estratégico, a começar por sua própria fragilidade conceitual. Assim, no subsequente governo de Barack Obama, já não se considerou mais a luta contra o terrorismo internacional um objetivo estratégico.

Implosão do consenso

Até a chegada de Donald Trump à presidência do país, os norte-americanos não haviam conseguido elaborar uma nova Grande Estratégia, mas haviam mantido o consenso bipartidário a respeito da proeminência dos Estados Unidos no mundo como guardião da ordem internacional liberal. A ideia de que os valores que os Estados Unidos historicamente defendem – livre-comércio, democracia pluripartidária e liberdade individual – constitui a base de uma ordem internacional que proporciona paz e prosperidade manteve unidas as elites do país. Com Trump, esse consenso foi rompido. Como afirma George Friedman em análise publicada no GPF-Geopolitical Futures, Trump esvaziou as situações que pareciam requerer ação militar e se lançou em uma grande ofensiva econômica como uma maneira de afirmar a posição dominante dos Estados Unidos no mundo.

Trafegando, assim, na contramão dos interesses da indústria armamentista, Trump aos poucos foi arrefecendo a pressão sobre a questão da Crimeia, da Síria, da Coreia do Norte e do Mar da China. Esse esvaziamento e o uso da opção diplomática se devem, como sublinha Friedman no mesmo artigo, em grande medida, ao fato de os Estados Unidos não terem condições de enfrentar situações de guerra em todos os cenários em que o país se acha envolvido. Em contrapartida, Trump elevou muito a pressão sobre a China, transformando essa disputa econômica em guerra comercial. A descompressão sobre a Rússia lhe custou, inclusive, fortes constrangimentos da mídia e da oposição e ameaça de impeachment, sob o argumento de que sua atitude para com os russos encobre ilícitos.

Em relação à China, o que é tratado de maneira genérica como guerra comercial, na verdade, trata-se de uma desesperada tentativa do Governo Trump de impedir que esse país assuma a liderança da economia mundial, mediante seus êxitos industriais e tecnológicos. A expansão internacional da rede 5G operada pela empresa Huawei e a ampla adesão à Iniciativa do Cinturão e da Rota constituem as questões mais importantes dessa disputa, levando-se em consideração, é evidente, que a ampla adesão de europeus, asiáticos e africanos a esta mesma Iniciativa aponta na direção da supremacia naval da China.

Em busca de um inimigo

Pequim assumiu claramente, portanto, a condição de principal antagonista dos Estados Unidos. O Governo Trump ainda não apresentou, porém, algo que possa ser entendido como uma Grande Estratégia. Tudo o que tem feito é reagir às iniciativas tomadas pelos chineses. Robert D. Kaplan afirma que a inexistência de uma Grande Estratégia para lidar com o fenômeno chinês decorre da incapacidade dos estrategistas norte-americanos de entenderem que a China está construindo um império.

Em suas palavras: “We have truly entered in an American-Chinese bipolar struggle. But it is bipolar struggle with an asterisk: the asterisk being Russia, which can always inflict consequential damage on the United States. Yet, whereas the Russians appear to our media as classic bad guys, the Chinese are more opaque and business-like, so the gravity of our competition with Beijing is still insufficiently appreciated by our media”.

Uma resposta a essa incapacidade do Governo Trump de elaborar uma Grande Estratégia começou, talvez, a ser esboçada pela sra. Kiron Kanina Skinner, em 29 de abril último, em Washington, no Future Security Forum. Kiron Skinner, professora de Relações Internacionais que ocupa o posto de diretora de Planejamento Político do Departamento de Estado (DoS, na sigla em inglês), afirmou que não há possibilidade de entendimento com os chineses, porque esses “não são caucasianos”.

Para sustentar esta ideia, Kiron Skinner apresentou curiosa argumentação: “When we think about the Soviet Union and that competition, in a way, it was a fight within the Western family. Karl Marx was a German Jew who developed a philosophy that was really within the larger body of political thought… That has some tenets even within classical liberalism…”.

E ela completa: “You could look at the Soviet Union, part west, part east, but it had some openings there that got us the Helsinki Final Act in 1975. It was a really important Western concept that opened the door really to undermine the Soviet Union, a totalitarian state, on human rights principles. That’s not really possible with China. This is a fight with a really different civilization and a different ideology. And the USA hasn’t had that before. It’s also striking that it’s the first time we will have a great power competitor that is not Caucasian”.

Kiron Skinner procura, evidentemente, reabilitar a ideia de “choque de civilizações” apresentada por Samuel Huntington há 25 anos. A intervenção da atual diretora de Planejamento Político do DoS tem suscitado perplexidade e diversas críticas de analistas liberais. Para eles, uma visão como essa não contribui em nada para o equacionamento dos problemas que separam Estados Unidos e China na atualidade. Pelo contrário, o uso dessa teoria somente pode aumentar ainda mais as dificuldades existentes. Entre esses críticos que se dedicaram a analisar a intervenção de Kiron Skinner, figuram Paul Musgrave e Martin Wolf.

* Williams Gonçalves é pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre Estados Unidos (INCT-INEU) e professor de Relações Internacionais da UERJ e do Programa de Pós-Graduação em Estudos Marítimos da Escola de Guerra Naval (PPGEM-EGN).

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