Apelo bipartidário e imigração ‘ilegal’ dominam Estado da União 2019

Por Tatiana Teixeira

Depois de um adiamento de datas pouco comum, mas não inédito, decorrente do shutdown, o presidente Donald Trump fez, em 5 de fevereiro, seu segundo discurso sobre o Estado da União (SOTU na sigla em inglês). Muito aplaudido ao chegar e ovacionado pelos correligionários em vários momentos ao longo da noite, Trump foi recebido por um partido apenas pontual e relativamente coeso. Já feito no SOTU de 2018, o renovado apelo pelo bipartidarismo (“vamos governar não como dois partidos, mas como uma nação”) e pelo fim das tóxicas disputas em Washington (“juntos podemos romper décadas de impasse político”) não encontrou eco suficiente entre os democratas – sobretudo, entre as mulheres.

Nesta importante carta de intenções do Executivo simbolizada pelo SOTU, Trump se referiu diretamente à “classe média”. Uma classe média que o presidente deseja tornar “maior e mais próspera do que nunca”, também tornando “as comunidades mais seguras; nossas famílias, mais fortes; nossa cultura, mais rica; nossa fé, mais profunda”. Para isso – ressaltou Trump –, “precisamos rejeitar a política da vingança, da resistência, da retaliação, e abraçar o inesgotável potencial de cooperação, comprometimento e bem comum”.

Neste momento, em um dos instantes memoráveis da noite (foto), a presidente da Câmara, a democrata Nancy Pelosi (D-CA), aplaudiu Trump de pé com um entusiasmo irônico. Pareceu lembrá-lo de ser fiel às suas próprias palavras no trato político diário.

Reação das mulheres ao governo Trump

Assim como Pelosi, as representantes e senadoras eleitas compareceram vestidas de branco, em sua maioria, em homenagem ao movimento das sufragistas do início do século passado. Além de destacar visualmente a maior presença feminina na Casa, a escolha teve como objetivo chamar a atenção para a agenda do grupo, com temas que vão da igualdade salarial aos direitos reprodutivos. Outro momento a ser lembrado desta noite foi quando o presidente celebrou o número inédito de congressistas mulheres.

Se Trump pareceu, de alguma forma, reconhecer essa mudança como um ganho proporcionado por sua gestão, é preciso esclarecer que se trata do inverso. Nunca antes tantas mulheres (especialmente latinas, afro-americanas, entre outras minorias) se (pré-)candidataram, reagindo a seu governo e ao que apontaram como um comportamento machista, misógino, racista e xenófobo por parte do empresário republicano. Durante o SOTU, uma das representantes com a postura mais visivelmente crítica às palavras de Trump foi a novata de origem porto-riquenha e estrela democrata em ascensão, Alexandria Ocasio-Cortez (D-NY).

Ainda sobre momentos, é digno de nota quando o presidente trata do socialismo como algo potencialmente ameaçador para o país, uma tentativa de rotular os democratas de extrema esquerda neste ano pré-eleitoral. “Aqui nos Estados Unidos estamos alarmados com novos apelos para adotar o socialismo no nosso país. […] Nascemos livres e vamos permanecer livres. Esta noite, renovamos nossa determinação de que a América nunca será um país socialista”, garantiu Trump, muito aplaudido aos gritos de “U.S.A” e diante do olhar incrédulo do senador independente e ex-pré-candidato à Presidência Bernie Sanders (I-VT).

Temas centrais da agenda

Trump insistiu na criação de um “sistema migratório que seja seguro [no original, ele usa safe e secure], dentro da lei, moderno” e manteve as linhas gerais de sua agenda. Essas diretrizes incluem “defender empregos americanos e exigir comércio justo para os trabalhadores americanos”, “reconstruir e revitalizar a infraestrutura da nossa nação”, “reduzir os custos da assistência médica e dos medicamentos” e “buscar uma política externa que coloque os interesses da América primeiro”.

Sem surpresa, a questão migratória ainda é um item prioritário na agenda do governo.

Assim como no SOTU anterior, o presidente voltou a relacionar o imigrante em condição irregular nos Estados Unidos a situações de violência, mencionando os “inúmeros americanos assassinados por aliens criminosos ilegais”, ou ainda a “menos trabalhos” e a “salários mais baixos” para a população. No discurso de 2019, a fronteira “muito perigosa” é franco espaço para os “coiotes impiedosos, cartéis, traficantes de drogas e de pessoas”. Segundo Trump, “o estado sem lei da nossa fronteira sul é uma ameaça para a segurança e para o bem-estar financeiro de todos os americanos”.

Quando Trump anunciou que enviaria mais 3.750 soldados para a southern border, Pelosi reagiu negativamente. Em seguida, contudo, veio a ovação dos colegas de partido: “Eu quero pessoas que venham para o nosso país, mas elas têm de vir legalmente”. O presidente também se referiu à “imigração ilegal” como algo que divide “a classe trabalhadora americana e a classe política” e reclamou dos “políticos ricos e dos doadores” que defendem “fronteiras abertas”, mas se protegem atrás de “muros, portões e seguranças”. Do SOTU, Trump deixou de fora, porém, as denúncias recentes sobre uso de mão de obra imigrante irregular em seu clube nacional de golfe em Bedminster, Nova Jersey.

2018 x 2019: Política Doméstica e Economia

A diferença em relação ao SOTU anterior está nos detalhes.

Saem os pilares do plano migratório trumpista, e entra o muro fronteiriço ao sul. A batalha contra o Obamacare não está mais presente e, alinhado com uma demanda democrata, Trump afirmou que “proteger pacientes com condições preexistentes” será uma de suas grandes prioridades na área da saúde. Celebrou a aprovação de uma lei para enfrentar a “crise dos opioides” e fez pedidos ao Congresso: recursos para erradicar a epidemia de aids em uma década, US$ 500 milhões em verbas para a pesquisa de câncer infantil também para o período dez anos e a aprovação de uma lei que proíbe o aborto tardio. Ativistas viram os dois primeiros projetos com bons olhos, mas esperam detalhes e ação. Na questão do aborto, o debate se anuncia longo.

Não há valores para seu pedido renovado de aprovação do plano de infraestrutura e, salvo os números (exagerados) do mercado de trabalho, Trump faz pouquíssimo uso de dados para exaltar o “boom econômico sem precedentes” dos últimos dois anos. Ainda na Economia, o presidente menciona a substituição do Acordo de Livre-Comércio da América do Norte (Nafta, na sigla em inglês) pelo Acordo EUA-México-Canadá (o impronunciável USMCA), que “trará empregos de volta”, “expandirá a agricultura” e “protegerá a propriedade intelectual”. Pediu também a aprovação do United States Reciprocal Trade Act.

Assim como em 2018, a pauta ambiental e a reforma sobre posse e porte de armas continuaram sendo não-temas para o Executivo de Trump.

2018 x 2019: Política Externa

As expressões America First e Make America Great Again deixam de ser uma obsessão, assim como “terroristas”, ou “rogue states”. A Coreia do Norte não é mais uma “ditadura cruel e depravada”. Depois de atingir níveis retóricos preocupantes na escalada verbal com o líder norte-coreano, Trump anunciou para o Congresso sua segunda cúpula bilateral com Kim Jong-un, nos dias 27 e 28 de fevereiro, no Vietnã. Apesar da tensão comercial atual com a China e da saída dos EUA do Tratado INF por divergências com a Rússia, ambos ocupam um espaço moderado no discurso. Também diferentemente do ano passado, Pequim e Moscou não aparecem como “rivais” de forma explícita. Em um dos poucos momentos de unanimidade, democratas e republicanos aplaudiram o presidente em suas considerações sobre a política comercial da China e a defesa dos interesses americanos.

Ainda na comparação em política externa, Cuba sequer aparece este ano, enquanto na Venezuela, sem diferenças, o “regime” Maduro é “condenado por sua brutalidade”. A novidade fica por conta de Juan Guaidó, reconhecido como “novo presidente interino”. O “regime radical do Irã” continua na mira dos EUA, mesmo após a saída de Washington do acordo nuclear com Teerã. O presidente retoma, assim, seu “realismo com princípios”, doutrina que marcou uma inflexão na política externa americana e que já havia sido explicitada na Estratégia de Segurança Nacional (NSS de 2017) e nos discursos na Assembleia Geral da ONU. “Nunca vamos nos desculpar por promover os interesses da América”, afirmou o republicano.

“Grandes nações não lutam guerras intermináveis”, completou Trump, ao se referir à saída dos EUA da Síria, possibilitada segundo ele pelo enfraquecimento do Estado Islâmico (EI), e às negociações para fazer o mesmo com as tropas americanas ainda estacionadas no Afeganistão.

Novo ‘shutdown’ à espreita

O que surgiu na superfície como um convite aberto à união entre as duas principais legendas da política nacional também transpareceu na forma de barganha e de não-ditos – caso do Russiagate e de um possível novo shutdown, que acontecerá se não se resolver a “urgente crise nacional” nos termos desejados por Trump.

O “milagre econômico” pode ser parado a qualquer momento por “guerras tolas, política ou ridículas investigações partidárias”, alertou o magnata republicano, ao mesmo tempo em que pediu uma “ação bipartidária”. Além disso – insistiu –, “paz e lei” não combinam com “guerra e investigação”. Nesta indireta alusão à profunda investigação prometida pelos congressistas democratas, somada aos esforços empreendidos em paralelo pelo procurador especial Robert Mueller, o que se tem é a fala contida de um presidente acuado por uma série de escândalos.

A sombra das investigações

No ano passado, quando a crise parecia no auge, Trump minimizou esse assunto e não mencionou uma única palavra sobre isso. Novos desdobramentos, com indiciamentos e plea bargains de ex-funcionários e aliados, e mais pressões tornaram mais difícil ignorar o tema no SOTU.

Ao contrário do que já fez em muitos tuítes e entrevistas, neste discurso, Trump não pediu diretamente o fim das investigações contra ele, contra suas empresas, ou contra seus familiares e integrantes de seu círculo mais próximo. Também não recorreu ao já conhecido argumento de “caça às bruxas”. Houve uma inflexão discursiva perceptível, com um tom menos persecutório e menos agressivo, incomum para o estilo trumpista. Naquele mesmo dia, horas antes de falar ao Congresso, Trump já havia disparado vários tuítes contra seus desafetos. Embora a Casa Branca atual evite comentar sobre os redatores que colaboram na produção dos pronunciamentos do presidente, parece ter havido uma mudança de speechwriter para este evento específico.

“Precisamos escolher entre grandeza, ou paralisia; resultados, ou resistência; visão, ou vingança; incrível progresso, ou destruição sem sentido”, pediu o mesmo presidente que manteve a queda de braço que levou o governo federal a uma paralisia parcial recorde de 35 dias. O objetivo? Obter recursos para cumprir uma de suas principais promessas de campanha: a construção de um muro na fronteira com o México.

Muro da discórdia

No SOTU 2019, o presidente reforçou o recuo que vem dando em relação ao tema, flexibilizando sua ambição inicial. “É um muro de aço inteligente, estratégico, dá pra ver por ele. Não apenas um simples muro de concreto. Vai ser implantado em áreas identificadas pelos agentes de fronteira que têm mais necessidade”, afirmou.

De acordo com Trump, a proposta do Executivo para “pôr fim à crise na nossa fronteira sul” inclui “ajuda humanitária, mais aplicação da lei, detecção de drogas nos portos, fechar as brechas que permitem o tráfico de crianças e planos para uma nova barreira física, ou muro”. Ainda está longe das demandas democratas, que querem uma política mais humanizada, com garantias para os chamados Dreamers e menos concentrada no aspecto policial. Pode servir como uma nova tentativa para retomar o diálogo na legislatura que apenas começa, mas Trump precisará oferecer mais. Na voz de Stacey Adams, a afro-americana que por muito pouco não obteve uma histórica vitória na Geórgia nas midterms, a resposta democrata ao SOTU deixou isso claro.

“Sabemos que o bipartidarismo poderia criar um plano migratório do século XXI, mas este governo escolhe colocar crianças em jaulas e separar famílias”, denunciou.

Este foi o terceiro mais longo SOTU na história recente do país, com 1h22 de duração, superado apenas por Bill Clinton, no ano 2000, quando discursou por 1h28, e em 1995, por 1h24.

 

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