O U.S.-Mexico-Canada Agreement (USMCA) e a política comercial de Trump

Panorama EUA, vol. 4, no. 8, outubro de 2018

Dois padrões em um acordo: o novo (?) NAFTA negociado pela Administração Trump

por Neusa Maria P. Bojikian*

Finalizado na noite de domingo, dia 30 de setembro de 2018, e anunciado imediatamente, o U.S.-Mexico-Canada Agreement (USMCA), que segundo o presidente Trump, não se trata de um NAFTA renegociado mas sim um “acordo totalmente novo”, virou objeto de discussão mundo afora. O acordo formal ainda não foi assinado, cabe notar. Isso deve ocorrer até o final do ano, e sua aprovação somente será submetida ao Congresso americano em 2019. Como o processo de aprovação demandará um tempo próprio, a maioria das novas provisões do USMCA não entrará em vigor até 2020.

A abordagem mais comum aponta que o USMCA não vai além de uma maquiagem, ou seja, traz mudanças apenas incrementais e nada de substancial em relação ao acordo original. O anúncio apressado, enfatizando o atributo “novo”, seria apenas mais uma tentativa de o presidente imprimir sua própria marca na política comercial recorrendo até mesmo a uma mudança insensata de nome.

Realmente, o presidente anseia livrar-se de tudo aquilo que possa identificá-lo como alinhado às políticas do passado, e imprimir sua marca. Muitos devem se lembrar que o presidente se referiu repetidamente ao NAFTA como o “pior acordo comercial já alcançado pelos Estados Unidos”. Há sim jogos de palavras, construções textuais ambíguas, ameaças e ultimatos nas falas não só do presidente como também de Robert Lighthizer, Representante de Comércio, e de outras autoridades. Entretanto, não se trata apenas disso; houve mudanças importantes. Enquanto algumas foram concebidas para servir de precedentes para acordos com países em desenvolvimento, outras foram concebidas para concorrer com regras preferidas por outros países desenvolvidos.

Mas, afinal, em que matérias e níveis o USMCA estabelece novas provisões legais que podem ser destacadas no atual curso da política comercial dos Estados Unidos? Ao menos seis matérias merecem ser discutidas, pois os compromissos assumidos entre os signatários tendem a indicar os rumos que o comércio mundial e a integração econômico podem tomar.

1. Índices de conteúdo regional e de “fábricas de salários altos”

Quase absolutamente todos os artigos abordando o USMCA, desde o anúncio do presidente Trump, trazem no topo dos destaques a questão das regras de origem, especialmente para o setor automotivo. De fato, essa é uma matéria que chama atenção do público interessado em política comercial.

Desde o início da década de 1990, barreiras tarifárias e barreiras quantitativas relativas ao setor manufatureiro pareciam questões superadas entre os países desenvolvidos, cujas vantagens competitivas avançaram a passos largos nos setores de serviços e/ou de alta tecnologia. Porém, com a Administração Trump e a abordagem unilateral e xenofóbica das autoridades sobre política comercial, essas questões voltaram com força e preocupam sobretudo os arautos da globalização.

Já seria de se esperar que o presidente Trump daria logo na chegada alguns mimos para seus eleitores dos estados da Pensilvânia, Ohio e Wisconsin, que o ajudaram a chegar à Casa Branca. Trump percebeu que precisava dar alguma resposta rápida às alegações desses eleitores de que a viabilidade econômica local foi destruída pelos “maus” acordos comerciais.

O presidente deu mais do que pequenos mimos. Especificamente em relação às regras de origem válidas para o setor automotivo, podem-se verificar algumas indicações de mudanças importantes. Enquanto no NAFTA, instituído no início dos anos 1990, exigia-se que as montadoras produzissem 62,5% do conteúdo de um veículo na América do Norte para que este fosse isento de qualquer tarifa alfandegária, no âmbito do USMCA esse índice deve chegar a 75% no decorrer de um determinado período (ver Article 4-B.3: Regional Value Content for Passenger Vehicles, Light Trucks, and Parts Thereof). Isso significa um enrijecimento significativo nas regras de origem, distorcendo o comércio internacional em favor do bloco regional– ainda que assimetricamente –e desafia os defensores do regionalismo aberto a analisar a classificação desse acordo.

Além disso, o novo acordo determina que um percentual crescente– chegando a 40% em 2023 –de partes e peças para veículos isentos de tarifas deve vir de fornecedores certificados como “fábricas de salários altos”. A nova regra estabelece que tais fábricas devem pagar um mínimo de US$ 16/hora para seus operários das linhas de produção. (Ver Article 4-B.7: Labor Value Content). Conforme apurou o The New York Times, isso corresponde a aproximadamente o triplo do salário médio pago atualmente por uma fábrica mexicana. A Administração Trump busca forçar as montadoras a priorizar fornecedores americanos.

Por tabela, os fornecedores canadenses também ganham com isso, restando aos mexicanos as desvantagens. Na prática essa nova medida deve anular a vantagem competitiva do México e seu estoque abundante de mão de obra manufatureira de baixo custo. Poder-se-ia argumentar que ao longo do tempo esta medida acabará anulada naturalmente, já que o valor da hora não está indexado à taxa de inflação. Entretanto não se deve subestimar a força das decisões anteriores em investimentos. Uma vez alterada a cadeia produtiva, em função dos novos fatores, isso produzirá efeitos que devem determinar escolhas subsequentes. Logo, os efeitos da medida podem se estender por um período maior do que aquele a conferir a vantagem contábil.

2. Direitos aduaneiros em nome da segurança nacional

Ainda no que diz respeito ao setor automotivo, o USMCA legitima o direito dos Estados Unidos de impor tarifas de até 25% sobre carros e peças automotivas em nome da segurança nacional. Essa regra foi embasada na Seção 232 da Lei de Expansão do Comércio de 1962.

Na interpretação da Administração Trump, metais vitais para a segurança nacional e que estão na base dessa cadeia produtiva podem ser objeto de direitos aduaneiros e de outras barreiras a fim de que o país possa viabilizar a produção própria e, portanto, a autossuficiência em situação de guerra. Essa interpretação é questionável. Especialistas do próprio país observam que a lei não diz que tais suprimentos tenham que obrigatoriamente ser produzidos internamente. Poderiam ser fornecidos por países aliados.

Mesmo que tal regra possa não ter efeito prático sobre os fornecedores localizados nos países parceiros do acordo– incluem-se entendimentos paralelos que preveem isenções de quaisquer tarifas americanas que venham a ser estabelecidas futuramente sobre 2,6 milhões de veículos de passageiros importados de cada um desses países –o padrão foi estabelecido. Isso marca um precedente importante para outros acordos que venham a ser constituídos e mesmo para medidas unilaterais adotadas pelos Estados Unidos.

3. Cláusulas trabalhistas

O USMCA reitera as garantias básicas já previstas no âmbito da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Portanto o acordo não muda a realidade dos trabalhadores americanos e canadenses. Tende sim a ser um freio a eventuais abusos praticados no México. Dito de outra forma, as cláusulas trabalhistas só foram inscritas no acordo (ver Capítulo 23) para enquadrar os empregadores mexicanos.

Os negociadores mexicanos foram obrigados a se comprometer com reformas trabalhistas que garantam os direitos básicos aos trabalhadores do país e que abranjam inclusive os trabalhadores estrangeiros ingressantes no mercado de trabalho local. Firmaram ainda cláusulas não discriminatórias em razão de gênero. Além disso, tiveram que se comprometer com a promoção do direito dos trabalhadores à representação sindical e à negociação coletiva. Não deixa de ser uma vitória para os sindicatos americanos e canadenses.

Uma provisão nova, que marca mais uma diferença em relação ao NAFTA, diz que os signatários podem acionar uns aos outros por violações trabalhistas que afetem o comércio (ver Capítulo 31). Essa é uma provisão que foi importada do Trans-Pacific Partnership (TPP), acordo comercial preferencial selado durante a Administração Obama e do qual o presidente Trump, antes mesmo de formar sua equipe de política e operações comerciais, retirou os Estados Unidos.

Embora tais cláusulas trabalhistas sejam de interesse dos trabalhadores de um modo geral, elas podem não significar benefícios aos mexicanos. Ao contrário, não só os trabalhadores podem ser excluídos de eventuais ganhos em razão dessas regras, como o governo mexicano pode vir a ter que arcar com somas significativas resultantes de eventuais penalidades sentenciadas por tribunais ad hoc de solução de controvérsias.

4. Regras sobre propriedade intelectual

Sob a denominação Direitos sobre Propriedade Intelectual (DPI), um conjunto de regras são estabelecidas com o intuito de proteger marcas, desenhos, segredos industriais, invenções, trabalhos literários ou artísticos. Trata-se de um tema que figura no topo das demandas das grandes empresas e demonstra a força do lobby econômico na tentativa de harmonização das legislações nacionais. Por outro lado, é um tema que atrita com os objetivos político-econômicos de países em desenvolvimento ou de grupos interessados em um arcabouço jurídico internacional mais socialmente consciente.

Estranho ao comércio na acepção do termo, o tema foi subtraído dos fóruns da Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI) e imposto aos fóruns do GATT, no início da década de 1980, sobretudo pelos Estados Unidos. Soando quase como uma provocação, o tema envolve regras que vão no sentido contrário da liberalização comercial. As regras conformam um arcabouço de natureza monopolística ao estabelecerem direitos exclusivos sobre bens intangíveis. Mais do que proteção aos autores propriamente, as regras pretendem assegurar os direitos às grandes editoras, laboratórios e empresas licenciadas. E na era da Internet, que se revela uma força inigualável na disseminação das ideias, do conhecimento, da cultura geral e na promoção da criação coletiva, os direitos sobre propriedade intelectual parecem ainda mais estranhos, restringindo o fluxo de informações por tempos mais longos.

O USMCA, sem surpresa alguma diante da agenda dos negociadores americanos, estabelece um padrão legal para a proteção e o cumprimento de DPI entre os países envolvidos. O Capítulo 20 inclui obrigações sobre direitos autorais, marcas comerciais, indicações geográficas, desenhos industriais, patentes, proteção de dados para produtos químicos farmacêuticos e agrícolas, segredos comerciais e regras processuais para aplicação de DPI.

No que diz respeito aos direitos autorais, houve uma mudança notável em termos de prazos de proteção para as obras. Agora esse prazo corresponde a 70 anos além do tempo de vida do autor (antes correspondia a 50 anos). Para apresentações e gravações sonoras passou para 75 anos além do tempo de vida do autor (no Canadá a lei doméstica já previa 70 anos).

No caso de novos medicamentos biológicos, o acordo exigirá um termo de proteção de patentes de 10 anos, enquanto para os medicamentos químicos o prazo de garantia das respectivas patentes foi estabelecido em 8 anos. A despeito do prazo de transição que foi estabelecido, as novas regras vão impactar as indústrias farmacêuticas de genéricos. Certamente o México será mais afetado diante desse compromisso do que os outros dois envolvidos. Os negociadores canadenses recorreram aos termos do Acordo Comercial e Econômico Global Canadá-União Europeia (CETA) e ao correspondente Certificado de Proteção Suplementar (CSP) para assegurar um período maior de transição, até cumprir integralmente suas obrigações relativas a produtos farmacêuticos.

Uma outra regra estabelece compensações para os requerentes por eventuais atrasos no processamento de pedidos de concessão de patentes. Também nesse caso, a despeito do prazo de transição para os países implementarem a obrigação, o acordo prevalecerá diante das leis e políticas domésticas.

5. Comércio digital

Quando se compara a orientação da política comercial dos Estados Unidos para questões relativas à propriedade intelectual com questões relativas ao comércio digital, percebe-se um paradoxo. De um lado os negociadores americanos defendem proteções rígidas para propriedade intelectual e de outro a remoção de proteções relativas ao comércio digital.

No final dos anos 1990 os acordos não iam além das cláusulas coibindo as barreiras às transações comerciais feitas por meio das plataformas digitais e asseguravam que estas recebessem o mesmo tratamento dado ao comércio físico (ver o Information Technology Agreement, acordo plurilateral da OMC em vigor desde meados de 1997). De lá para os dias atuais o escopo das provisões de comércio digital deu um grande salto. Naturalmente a maior abrangência dos acordos acompanha a expansão da Internet.

Em acordos mais recentes, os demandeurs buscam compromissos que abordem uma gama mais ampla de questões, como compromissos para permitir o fluxo de dados através das fronteiras e proibições de requisitos para armazenar dados localmente. O Capítulo 19 do USMCA reúne uma série de provisões que vão ao encontro desses objetivos e certamente é um dos que mais marcam mudanças substanciais em relação ao NAFTA original.

Conforme propagou o Representante de Comércio dos Estados Unidos, o novo capítulo de Comércio Digital “contém as disciplinas mais fortes sobre o comércio digital de qualquer acordo internacional, fornecendo uma base sólida para a expansão do comércio e investimento em produtos e serviços inovadores nos quais os Estados Unidos têm uma vantagem competitiva.”

Esse capítulo foi cuidadosamente negociado para marcar território na disputa de preferência entre Estados Unidos, União Europeia e China. Note-se que os termos e condições não foram negociados apressadamente pela atual administração. Na verdade, muito conteúdo já havia sido assegurado por negociadores americanos no Trans-Pacific Partnership.

Além da isenção de direitos aduaneiros sobre produtos comprados eletronicamente, como música, jogos, filmes e livros eletrônicos, as cláusulas abordam segurança jurídica na contratação eletrônica, validade das assinaturas eletrônicas, tratamento não discriminatório dos serviços digitais. Até aqui, nada que represente algum significativo conflito de interesses entre as partes.

As disposições mais sensíveis, no entanto, concentram-se nas regras associadas aos dados, justamente onde reside parte substancial do valor do comércio digital. As regras que interessam sobretudo às grandes empresas de tecnologia da informação e comunicação atuantes no mercado de computação em nuvem referem-se às restrições para: (1) transferências de dados entre fronteiras; (2) políticas de localização de dados. As empresas certamente não querem se submeter a regulamentações que as obriguem a armazenar informações pessoais dentro de uma determinada jurisdição. E as autoridades americanas tampouco querem que isso ocorra.

Enquanto os acordos envolvendo a União Europeia impõem limites sobre transferências de dados, exigindo com isso que os dados sobre cidadãos europeus sejam coletados, processados e/ou armazenados em servidores localizados na UE, o USMCA proíbe tais limitações, imprimindo com isso um padrão oposto.

Os negociadores mexicanos aceitaram sem qualquer condicionalidade o padrão americano. Entretanto, os interlocutores canadenses fizeram valer a cláusula grandfather, o que significa que as regulamentações já existentes, requisitando localização de dados para manter informações confidenciais, serão preservadas. Províncias que já possuem regulamentações de tais tipos, como Colúmbia Britânica e Nova Escócia, estão fora do alcance das obrigações válidas para as demais que não possuem qualquer legislação similar. Essas jurisdições canadenses possuem preocupações semelhantes às jurisdições europeias preocupadas com a perda de privacidade no ambiente digital e preferem exigir a localização de dados para garantir que suas leis sejam aplicadas. Nesses casos, os requisitos de localização estão diretamente relacionados com um padrão mais rígido de proteção às informações pessoais e de direito à privacidade.

Ao passo que os acordos da União Europeia são mais rígidos com os requisitos de proteção aos dados, exigindo uma estrutura legal para proteger as informações pessoais dos usuários do comércio digital, o USMCA revela uma ampla flexibilidade nessa matéria. Nas letras do Artigo 19.8 reconhecem-se os benefícios econômicos e sociais da correta proteção às referidas informações e estabelece-se que “cada parte shall [a palavra expressa uma forte afirmação ou intenção] adotar ou manter uma estrutura legal que garanta a proteção das informações pessoais dos usuários do comércio digital”. Levam em conta os princípios e diretrizes de organismos internacionais relevantes, como o APEC Privacy Framework e o OECD Recommendation of the Council concerning Guidelines governing the Protection of Privacy and Transborder Flows of Personal Data (2013).

O problema está no detalhe. Note-se que a 5a nota de rodapé prevê que a obrigação pode ser cumprida não apenas por leis mas também por procedimentos corporativos voluntários. A nota diz o seguinte: “Para maior certeza, uma Parte pode cumprir a obrigação prevista neste parágrafo ao adotar ou manter medidas como…leis de proteção de dados pessoais, leis setoriais relativas à privacidade ou leis que prevejam a execução de compromissos sobre privacidade voluntariamente assumidos pelas empresas.”

Por fim pode-se dizer que o USMCA tende a ser amigável às grandes empresas de tecnologia da informação e comunicação do país não só pelo alívio que trouxe com os requisitos acima, mas também pelo fato de que suas regras desresponsabilizam as empresas pelo conteúdo produzido pelos usuários. Além disso, as provisões anti spame de proteção ao consumidor são genéricas, sem qualificações. Isso significa que os requisitos podem ser cumpridos sem produzir efeitos. Também de caráter flexível revelam-se as regras adotadas sobre a matéria de neutralidade da Internet. Na verdade, não há uma referência específica à essa questão, mas apenas “princípios sobre acesso e uso da Internet para o comércio digital.”

6. Sistemas de Resolução de Conflitos

No NAFTA original havia três sistemas de resolução de conflitos: um normatizado pelo emblemático Capítulo 11, que se pode chamar aqui de Sistema Investidor-Estado; outro pelo Capítulo 19, Sistema de Solução de Controvérsias; e o outro pelo Capítulo 20, Sistema de Solução de Controvérsias Estado-Estado.

Os dois últimos foram mantidos praticamente sem alterações. Manter o Capítulo 19 era de extrema importância para os negociadores canadenses. Para os negociadores mexicanos também, mas, em razão da assimetria de poder nas relações, esses preferiram deixar a cargo dos interlocutores canadenses a missão de preservar a integridade do referido capítulo. Os negociadores canadenses estavam supostamente dispostos a abandonar as negociações caso pressionados a fazer concessões sobre tal sistema.

Em síntese o Capítulo 19 permite que se contestem medidas impondo direitos alfandegários relativos a antidumping e medidas compensatórias, mediante um painel de arbitragem internacional ad hoc. Os árbitros que vão decidir se esses direitos possuem legitimidade com base nas leis domésticas americanas.

Permitir acabar com tal capítulo seria se desfazer de um sistema forjado pelos negociadores canadenses ainda nas negociações do acordo bilateral (Canada-United States Free Trade Agreement), assinado em 1988 e depois transposto para o NAFTA. Antes da vigência desse sistema, as reclamações tinham que ser levadas às cortes americanas. Essas, na percepção dos exportadores e autoridades canadenses, eram caras, lentas e pouco confiáveis para revisar objetivamente os direitos alfandegários impostos pelo governo dos Estados Unidos às importações canadenses.

Ao longo dos anos, o Canadá recorreu sistematicamente às regras previstas no Capítulo 19 para desafiar as restrições impostas pelos Estados Unidos sobre as exportações de madeira. Naturalmente, isso criou uma rejeição entre os competidores americanos do respectivo setor que viram na Administração Trump uma oportunidade singular de conseguir atingir seus objetivos de reserva de mercado.

Já o Sistema Investidor-Estado, objeto de grande controversa desde que foi implementado no NAFTA em contraposição ao modelo que estava simultaneamente sendo adotado no GATT, sofreu uma mudança especialmente marcante com o USMCA. Esse sistema será eliminado entre Estados Unidos e Canadá, mas permanecerá em vigor entre os Estados Unidos e México.

Os negociadores americanos e mexicanos selaram um acordo (Anexo 14-D do Capítulo 14) estabelecendo o sistema para dirimir controvérsias que envolvam expropriação e violações ao princípio de não-discriminação. As alegações baseadas no chamado “tratamento justo e equitativo”, que foram apresentadas no curso da vigência do NAFTA, em princípio não serão acolhidas pelo sistema. A nova regra também estabelece que os reclamantes precisam primeiro tentar resolver os litígios nos tribunais domésticos e só depois de decorridos trinta meses sem que haja um termo poderão levá- los ao nível internacional. O NAFTA permitia que os investidores levassem as ações diretamente à arbitragem internacional sem passar pelos tribunais locais.

O problema é que sessas novas medidas não valem para setores importantes da economia mexicana, como petróleo e gás, infraestrutura e telecomunicações (ver Anexo 14-E). Nesses setores, os investidores seguem podendo processar os Estados não só em caso de expropriações e medidas discriminatórias, como também em caso de alegada violação ao “tratamento justo e equitativo”. Além disso, eles não são obrigados a recorrer aos tribunais domésticos antes de iniciar a arbitragem internacional.

As autoridades canadenses puderam exibir um grande resultado com essa negociação. Em várias situações amargaram o efeito da avidez de determinadas empresas, hábeis em processar os Estados sob alegação de prejuízos decorrentes de mudanças de políticas e regulamentações e estavam devendo respostas aos seus cidadãos. Sob o USMCA, os investidores americanos já presentes no Canadá podem usar o sistema por mais três anos. Depois disso as controvérsias devem ser apresentadas ao sistema jurídico estatal canadense. O mesmo vale para os investidores canadenses presentes nos Estados Unidos. Nas relações entre Canadá e México, o sistema de solução de controvérsias será regido pelo Comprehensive and Progressive Agreement for Trans-Pacific Partnership, que prevê o Sistema Investidor-Estado.

Notas finais

Conforme destacado acima, o USMCA significa mais do que uma mudança incremental em relação ao seu antecessor. E as novas regras também não são em essência traduções das mudanças tecnológicas ou de novos nichos de mercados. Mais do que isso, o acordo reflete os novos padrões de regras comerciais que vão seguir sendo adotados nos acordos comerciais internacionais, especialmente aqueles dos quais os Estados Unidos farão parte.

No começo da década de 1990, o NAFTA motivou uma grande discussão em torno dos custos sociais incorridos pelo livre comércio global. De uma vez só, suas regras representaram uma abertura do setor de serviços e o comprometimento com uma série de regras sobre investimentos e Direitos sobre Propriedade Intelectual e superaram o resultado da soma de todas as rodadas de negociação havidas no GATT.

Durante as negociações do NAFTA, no começo dos anos 1990, os negociadores americanos repetidamente lembravam aos negociadores mexicanos que esses precisavam muito do acordo. Os mexicanos foram avisados de que não havia perspectiva de um acordo sem liberalização dos serviços financeiros e, sem resistência alguma, esses entregaram o setor na bandeja. Em troca dos investimentos no setor automotivo, os mexicanos assumiram o ônus das regras mais rígidas, como o Sistema Investidor-Estado, que derrubou políticas públicas nacionais de longa data. Além disso foram, obrigados a fazer concessões no setor agrícola pois sem essas o processo não avançaria.

Ao final, o valor adicional que o NAFTA representava para os negociadores mexicanos– muito acima do que representava para os canadenses –fez com que os americanos usassem sua influência bilateral para acessar não só o mercado mexicano, mas uma série de outros mercados em desenvolvimento.

Passados vinte e cinco anos, o México não apenas deixou de receber qualquer consideração especial em função de seu correspondente grau de desenvolvimento econômico, como foi novamente chamado a pagar a maior parcela dos custos da liberalização comercial. Como não bastasse, o USMCA carrega custos próprios para o México, ao estabelecer-lhe tratamento ainda mais rígido, se comparado àqueles dispensados aos outros dois signatários.

A discriminação mais perturbadora revela-se no sistema de solução de controvérsias. O USMCA imprime dois padrões a ser adotados pelos Estados Unidos. Um válido para os países desenvolvidos e outro para países em desenvolvimento, justamente os mais interessados nos Investimentos Externos Diretos (IED). Enquanto os canadenses podem comemorar o fim de um sistema usado por empresas para desafiar regulamentações de interesse público, os mexicanos continuarão convivendo com o déficit de espaço regulatório. Não é exagero dizer que os negociadores americanos foram ainda mais brutais.

 

* Pesquisadora do INCT-Ineu. Doutora e mestre em Relações Internacionais pelo PPGRI-Unesp-Unicamp-PUC-SP. Autora do livro Acordos comerciais internacionais: o Brasil nas negociações do setor de serviços financeiros (2009, Unesp) e Coorganizadora do livro Negociações econômicas internacionais: abordagens, atores e perspectivas desde o Brasil (2011, Unesp).

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