EUA e NAFTA: impasses e atores domésticos na renegociação do acordo

por Angelo Raphael Mattos*

Incentivada por Donald Trump, a renegociação do Acordo de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA, na sigla em inglês) caminha para sua 8ª rodada, com diversos grupos domésticos apoiando a permanência dos Estados Unidos no acordo, inclusive congressistas do mesmo partido de Trump, republicanos tradicionalmente afeitos ao liberalismo.

Finalizado em 1994, o acordo de livre comércio entre Canadá, EUA e México, contribuiu significativamente para o adensamento do volume comercial entre os sócios. Mesmo assim, o governo norte-americano considera a retirada dos EUA do bloco, caso os interesses do país não sejam acomodados de forma satisfatória. Não obstante, coalizações domésticas entre congressistas e entre governadores estaduais, e grupos de interesse locais têm pressionado pela permanência do país no acordo trilateral de livre comércio que abrange uma área geográfica cuja população é de 478 milhões de habitantes.

Washington critica o acordo pela alegada perda de mais de 5 milhões de postos de trabalho, sobretudo em face do deslocamento de fábricas do setor automobilístico e de transporte para o México, onde os salários pagos por essas empresas são menores. Resgatar esses empregos é promessa de campanha de Trump e atenderia, portanto, à expectativa da classe média operária. Outra crítica reside no fato de os EUA serem deficitários na relação comercial com o parceiro do sul, embora as exportações estadunidenses tenham crescido significativamente para o México nesse quase um quarto de século em que vigora o acordo. Segundo dados do Departamento de Comércio norte-americano, o valor total das exportações dos EUA para o México entre 1991 (US$ 33,2 milhões) e 2017 (US$ 242,9 milhões) cresceu 7 vezes. O maior déficit se concentra no setor têxtil.

O representante de comércio dos EUA pediu o fim do capítulo 19 do acordo, que dispõe sobre o principal mecanismo de resolução de disputas no âmbito do NAFTA. Esse dispositivo permite que os Estados-Partes adotem medidas contra decisões desfavoráveis emitidas por tribunais e agências dos EUA. A tentativa incomodou os representantes canadenses. Assim como o México, o Canadá também é favorável à permanência do referido capítulo no acordo. Os dois países sinalizam no sentido de uma atualização do tratado em linhas gerais, enquanto a Casa Branca parece querer uma reformulação mais profunda, que vai desde um rigor maior com relação à regra de origem dos produtos, até reposicionar postos de trabalhos exportados para o vizinho do sul.

Em sua conta no Twitter, Trump afirmou recentemente: “Nós não podemos fechar os olhos para o comércio desleal desenfreado praticado contra nosso País!”. Anteriormente, ele já havia afirmado que “o NAFTA, que está sob renegociação agora, tem sido um acordo ruim para os EUA. Realocação massiva de empresas e empregos. Tarifas sobre o aço e o alumínio somente serão retiradas se um novo e justo acordo sobre o NAFTA for assinado […]”.

O cenário é de eleições presidenciais no México em julho, e legislativas nos EUA em novembro. O presidente mexicano Henrique Peña Nieto deve enviar a proposta ao Congresso antes do pleito do meio do ano. Já Trump não tem garantias de que seu partido republicano permaneça como maioria no Capitólio.  Ambas as transições políticas podem, eventualmente, representar impasses à finalização de um novo acordo. Diante do imperativo constitucional de ratificação dos acordos comerciais pelo Congresso, é provável que um novo acordo do NAFTA seja enviado aos congressistas ainda este ano. Além desse dispositivo, vale lembrar que o art. 2º da Constituição também prevê outra forma de atuação do Legislativo no processo decisório em política comercial. Segundo tal dispositivo, o presidente poderá, “mediante parecer e aprovação do Senado, concluir tratados.”

Além disso, na esteira das normas editadas pelo Congresso com vistas a fortalecer sua presença nas decisões de comércio, como as leis de comércio de 1974 e de 1979, foi criado o que ficou conhecido como mecanismo de fast-track. Assim como as referidas leis da década de 1970, o fast-track está inserido no contexto das negociações no âmbito do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT, na sigla em inglês), anos depois incorporado pelo Tratado de Marraqueche, de 1994, constitutivo da Organização Mundial do Comércio (OMC), que passou a vigorar no ano seguinte. O fast-track, posteriormente denominado de Autoridade para a Promoção Comercial (TPA, na sigla em inglês), é mecanismo pelo qual o Congresso confere poder provisório ao presidente da República para negociar acordos comerciais. A partir desse instrumento, o tratado negociado não poderá sofrer emendas oriundas do Legislativo, apenas sendo ratificado ou recusado na sua integralidade, o que confere maior confiança ao Executivo durante as negociações e agilidade na aprovação.

Além do Comitê de Relações Exteriores, a atuação do Congresso em política comercial dos EUA ocorre, sobretudo, no âmbito do Comitê de Meios e Recursos da Câmara de Representantes, com foco no aumento das receitas do governo, bem como no Comitê de Finanças do Senado, e no Subcomitê de Comércio Internacional, Alfândega e Competitividade Global em particular. Comitês de áreas correlatas também participam do processo. Soma-se a esse arranjo institucional a influência importante dos grupos de lobby, que corporificam os interesses de setores estratégicos do comércio dos EUA, como o manufatureiro e tecnológico, e o agrícola. Vale lembrar que, nesse cenário em que interagem tais atores, três variáveis se destacam no processo decisório: “as diferenças entre as preferências políticas dos jogadores, a distribuição doméstica de informação, e a natureza das instituições políticas domésticas.” (MILNER, 1997, p. 14)[1]

Nesse contexto, em recente carta bipartidária endereçada ao presidente Trump, divulgada pelo democrata Vicente Gonzalez (D-TX) e assinada por outros seis colegas da mesma Casa como Henry Cuellar (D-TX) e Dan Newhouse (R-WA), os congressistas pedem a Trump que “trabalhe para atualizar e modernizar o NAFTA, e não pela retirada dele.” A carta descreve os benefícios que o acordo tem conferido à economia americana e chama atenção para as consequências de uma possível saída dos EUA do bloco.

Segundo o texto, a permanência é de interesse tanto do partido democrata quanto do republicano. Os congressistas enfatizam que do aprofundamento das relações entre os três sócios, resultando no acordo, dependem milhões de trabalhadores, em especial no tange aos pequenos e médios empreendedores, que só puderam expandir seus negócios na esteira dessa maior competitividade internacional conferida pelo NAFTA. Metade de todos os bens importados por Canadá e México são produzidos nos EUA.

Coalizões locais compostas por políticos e grupos agrícolas de estados como o Missouri também pressionam pela permanência dos EUA no bloco comercial. Para eles, a retirada do país do NAFTA teria implicações sérias para economia regional. Mais de 60% das exportações do Missouri são destinadas a áreas de livre comércio como os mercados canadense e mexicano. Isso possibilita a geração de um número bem maior de postos de empregos, bem como preços de venda locais mais baixos. O senador republicano Dan Hegeman afirmou a uma rádio de St. Louis que o Missouri só produz muito além do necessário para aquele estado porque exporta para mercados como os do NAFTA, e, desse modo, abandonar o acordo resultaria em queda drástica da produção. Do mesmo modo, sinalizou a governadora do Iowa, Kim Reynolds, na sua fala semanal à impressa. Deixar o NAFTA seria “devastador para Iowa” e para outros estados, podendo ter “consequências inesperadas” para produtores rurais e industriais norte-americanos.

O republicano Roger Marshall, que acompanhou presencialmente as últimas conversas da rodada na Cidade do México como membro da delegação que é parte do Comitê de Meios e Recursos, mostrou-se otimista pela permanência dos EUA no acordo. Para ele, um entusiasta do acordo desde sua constituição, o NAFTA é parte importante dos interesses dos produtores do Kansas, seu estado de origem, e as últimas tratativas ocorridas no México sinalizam que, “embora haja desacordo em questões específicas, os três países compartilham a mesma meta de modernizar o NAFTA de forma que ninguém seja desprezado.” É o que seu colega republicano, Kevin Brady (Texas), que lidera essa delegação congressual nas tratativas correntes do NAFTA, também acredita.

Em seu discurso no Conselho de Liderança dos Negócios do Texas (TBLC, na sigla em inglês), Brady afirmou que “modernizar o NAFTA representa uma grande oportunidade para nós [EUA] de crescimento da economia […] esse acordo tem sido incrivelmente benéfico ao Texas, às minhas comunidades de nossa região, e aos EUA como um todo.” Brady acrescentou que as renegociações requerem “significativa coordenação entre o Congresso e a Casa Branca.” Não sendo, pois, tarefa fácil.

Já os democratas Bill Pascrell (D-NJ) e Sandy Levin (D-MI), integrantes do mesmo Comitê, pronunciaram-se sobre questões trabalhistas no México. Para eles, os salários mais baixos pagos no vizinho do sul têm implicações sérias na redução de postos de trabalho em território estadunidense, e, portanto, essa questão é ponto fundamental que não deve ser marginalizado da renegociação do NAFTA. Para Pascrell e Levin, o México não consegue reverter os baixos salários pagos aos seus trabalhadores porque haveria uma falta de coesão de classe para negociar salários mais valorizados, o que atrai a terceirização oriunda dos EUA. “Os salários não serão apenas um obstáculo para um novo NAFTA, serão uma sentença de morte para qualquer acordo que esteja tramitando no Congresso” (tradução nossa) afirmaram Pascrell e Levin em declaração conjunta endereçada ao ministro mexicano do trabalho Roberto Campa, que, segundo os congressistas norte-americanos, tem subestimado as questões trabalhistas na renegociação do NAFTA.

Embora o Congresso seja composto na sua maioria pelos republicanos, parcela deles permanece a favor da modernização do NAFTA sem a retirada dos EUA do bloco, como é possível constatar nas declarações individuais e conjuntas. O impacto na economia local, sobretudo do meio leste norte-americano e sul do país, que concentram importantes cinturões agrícolas, seria bastante significativo. Para tentar compensar setores da economia norte-americana, o governo Trump elevou de modo substancial as tarifas de importação sobre o aço (25%) e o alumínio (10%), como visto recentemente.

Com efeito, o liberalismo norte-americano tem por desafio hodierno, mais do que nunca, alinhar interesses comerciais dos diferentes atores domésticos com o quanto se deve ceder na barganha internacional – à la Putnam (1988) – tendo em vista que os dois âmbitos estão intrinsecamente relacionados, o que não difere do caso do NAFTA.[2] O governo Trump, dessa forma, busca cumprir uma agenda que parece reiterar o America First não apenas no plano retórico, mas também na prática de sua política comercial na arena externa.

 

* Doutorando e mestre em Relações Internacionais pelo Programa de Pós Graduação San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP). Pesquisador no Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU), com apoio CAPES.

[1] MILNER, H. V. Interests, institutions and information. Domestic politics and international relations. Princeton: Princenton University Press, 1997.

[2] PUTNAM, R. ‘Diplomacy and domestic politics: the logic of two level games’ International Organization, v. 42, n. 3, p. 427-460, 1988.

 

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