América Latina

Latinos na mira: as deportações nos 100 dias do governo Trump 2.0 

Protesto contra as deportações do governo Trump 2.0, em Dallas, em 2 fev. 2025 (Crédito: mikhail.kelner/Wikimedia Commons/Flickr)

Dossiê “100 dias de Trump 2.0” 

Por Victor Cabral* * [Informe OPEU] [100 dias] [Trump 2.0] [Migração] 

O segundo mandato de Donald Trump pretende cumprir o que seu primeiro governo não conseguiu fazer. Movido pelo rancor por supostas traições de antigos aliados, pela fúria dos eleitores republicanos e pelo reforço de fake news e teorias conspiratórias, o mandatário quer fazer tudo o que seus eleitores desejavam quando gritavam “more four years” nos últimos meses. Seja na decretação de tarifas comerciais para parceiros estratégicos ou rivais geopolíticos, nos ataques ao Judiciário ou no reforço da retórica antimigrante, o governo Trump 2.0 começou fazendo o que o mandatário melhor sabe fazer: dominar os holofotes midiáticos. As migrações, uma das protagonistas nas três campanhas presidenciais de Trump, que marca sua posição com países latino-americanos e caribenhos, mantiveram-se como um dos principais assuntos nos 100 primeiros dias da nova gestão do republicano. 

Os Estados Unidos são um dos países que mais recebem refugiados no mundo, sendo essa uma prática com apoio bipartidário. Todavia, desde o primeiro mandato de Trump (2017-2021), essa realidade mudou. Entre 2017 e 2020, o país acolheu 118 mil pessoas, enquanto em 2024, sob mandato de Joe Biden (2021–2025), o país recebeu 100 mil pessoas, conforme dados do American Immigration Council. Atualmente, Trump tenta reverter as políticas do antecessor democrata e retornar a um período de pouca receptividade a pessoas que se deslocam de maneira forçada internacionalmente. Para o ano fiscal de 2025 (outubro de 2024 a setembro de 2025), o Congresso estadunidense aprovou que o teto de solicitações de refúgio que o país poderá processar é de 125 mil pessoas, maior número no século XXI. Todavia, existir uma garantia de processamento dessas solicitações não implica que essas serão aceitas, pois cada nação tem autonomia para definir quais solicitantes de refúgio serão acolhidos nessa condição. Ademais, a legislação dos Estados Unidos permite a proteção de pessoas em fuga de violência e de perseguições sem solicitarem refúgio, com programas atacados pela atual administração, como o Status de Proteção Temporária (TPS, na sigla em inglês) e o CHNV, criado para a proteção de nacionais de Cuba, Haiti, Nicarágua e Venezuela. 

Expulsão de migrantes regulares e cidadãos estadunidenses 

Nesses 100 primeiros dias, Trump atacou os migrantes com frequência. No dia de sua posse, determinou o encerramento do aplicativo CBP One, criado pelo governo Biden. O CBP One visava gerenciar a entrada de migrantes e suas audiências com os tribunais migratórios, mas o número de audiências disponibilizadas por dia era inferior à demanda de migrantes que chegavam na fronteira EUA-México, incorrendo em críticas à gestão democrata. Também lançou a ordem executiva 14160, tentando acabar com o direito à cidadania pelo nascimento em território estadunidense, o jus solis. Nesse caso, porém, rapidamente encontrou barreiras jurídicas. Os embates com o Judiciário já eram esperados tanto pela equipe presidencial quanto pela oposição, pois Trump dava sinais de que a disputa judicial seria um caminho de sua gestão. A tática ajuda a sustentar narrativas de perseguição contra o governo e anima apoiadores trumpistas quanto à possibilidade de reformas do Judiciário para que esse se torne mais conservador. 

CBP One Mobile Application - Social Media | Homeland SecurityTrump encerrou o app criado no governo Biden (Fonte: captura de tela do vídeo promovido pelo Departamento de Segurança Interna/Mary Roh / Kyle Fordrung)

Deportações para países de origem podem ser esperadas em contextos de governos restritivos aos migrantes, mas Trump não vê problemas em ir além, deportando pessoas para terceiros países. Segundo a ONG Human Rights Watch, entre 12 e 15 de fevereiro, os Estados Unidos realizaram deportações de 299 pessoas para o Panamá, não tendo nascido nem no país centro-americano e nem nos Estados Unidos, negando-lhes o direito do devido processo legal e de solicitação de refúgio. A organização sugere que o Panamá não receba migrantes deportados sem um acordo formal que garanta os direitos deles, como o non-refoulement, proibição de um Estado receptor de refugiados ou de solicitantes de refúgio de enviá-los para países onde sua segurança possa ser colocada em risco. Defensores de direitos humanos lutam pela manutenção dos direitos dos migrantes e da possibilidade de julgamento, especialmente pelas declarações públicas de Trump, ameaçando os migrantes. Para o atual presidente dos Estados Unidos, migrantes indocumentados não deveriam ter direito a julgamentos, devendo ser deportados sem comparecer a um juiz, algo que viola legislações internas e compromissos com o Direito Internacional. Ademais, ordens judiciais proibindo deportações para países que não sejam os de origem dos migrantes têm sido descumpridas pelo governo, bem como deportações para locais não identificáveis, impedindo qualquer rastreamento e informações sobre os migrantes deportados. 

Na prática, não é possível saber, por exemplo, onde o venezuelano Ricardo Prada está localizado, suas condições de saúde ou mesmo se está vivo. Outro caso de grande repercussão é o de Kilmar Abrego García, deportado para El Salvador sob acusação de ser narcotraficante. Os Estados Unidos não provaram sua culpa e a Justiça estadunidense exigiu a devolução de García ao país do qual foi expulso. Em reunião bilateral na Casa Branca, o presidente salvadorenho, Nayib Bukele, e Donald Trump informaram que não poderiam levar um “terrorista” aos Estados Unidos, deixando claro que um inocente permanecerá encarcerado sem culpa e julgamento. Em 100 dias, já temos desaparecimentos forçados de migrantes sendo produzidos pela Casa Branca, deportação de inocentes que permanecerão em presídios de segurança máxima e discursos públicos de não-intervenção para correção de deportações erradas. O que podemos esperar dos próximos três anos e oito meses? 

Uma das medidas mais problemáticas de Trump foi a invocação, em 14 de março, da Lei de Inimigos Estrangeiros, de 1798. Essa lei permite que os Estados Unidos possam deportar nacionais de outros países sem o devido processo legal, suspendendo as chances dos migrantes de defenderem seus direitos de permanecerem em solo estadunidense. A ação do republicano repercutiu no sistema judiciário, que revogou o efeito da legislação. Um dos riscos dessa lei é a deportação de migrantes para locais em que possam ser vítimas de tortura ou de perseguição. Ainda que os Estados Unidos tenham em seu ordenamento jurídico proteções aos migrantes para não serem deportados injustamente, Trump e sua equipe consideram que a lei do século XVIII é predecessora e, portanto, estaria acima da legislação vigente. Essa lei já foi utilizada para deportar nacionais de países, com os quais os Estados Unidos estavam em guerra, uma situação diferente da atualidade. Trump insiste, no entanto, em que o país está sob “invasão”, criando “inimigos” encarnados da figura de “migrantes criminosos e narcotraficantes”, e usa tal argumento para justificar deportações imediatas. 

O uso da Lei de Inimigos Estrangeiros faz parte do esforço de diferentes áreas do governo para criar um clima de insegurança entre os migrantes, visando a reduzir as chegadas na fronteira terrestre sudoeste, com o México, e convencer os que estão em situação irregular a se oferecerem para a deportação. Agentes do Serviço de Imigração e Alfândega dos Estados Unidos (ICE, na sigla em inglês) realizam visitas em comunidades, nas quais os migrantes residem, para interrogar e deter pessoas consideradas suspeitas. Homens tatuados são os principais alvos, devido ao uso de tatuagens por membros de gangues de narcotráfico em El Salvador e na Venezuela como identificação dos grupos. Em 15 de março, a administração Trump deportou quase 300 pessoas para El Salvador, acusadas de serem integrantes da gangue venezuelana Tren de Aragua ou da salvadorenha Mara Salvatrucha 13, todos sem o devido processo legal. Os deportados foram enviados para a megaprisão Centro de Confinamento do Terrorismo (CECOT, sigla em espanhol), em Tecoluca, em El Salvador. Existem possibilidades de Trump designar gangues do Haiti como organizações terroristas estrangeiras, para deportar esses nacionais mais facilmente para o CECOT, em vez de lidar com a espiral de violência que assola a nação caribenha. 

DHS Secretary Kristi Noem Travels to El Salvador | Departmen… | FlickrSecretária do Departamento de Segurança Interna (DHS), Kristi Noem, durante visita ao CECOT, acompanhada do ministro salvadorenho da Justiça e Segurança Pública, Gustavo Villatoro, em Tecoluca, El Salvador, em 26 mar. 2025 (Crédito: DHS/Tia Dufour/Flickr)

Inaugurada em janeiro de 2023, essa prisão de segurança máxima tem capacidade para 40 mil detentos, sendo uma instituição com denúncias de violação de direitos humanos, inclusive pela ausência de contato entre detidos e advogados. Construída para sufocar o crime organizado salvadorenho, a prisão hoje abriga migrantes deportados dos Estados Unidos sob a justificativa de serem membros de gangues, ainda que entidades do governo tenham admitido terem deportado pessoas erradas. Pela falta de clareza de quantas pessoas foram deportadas para El Salvador e quantas estão oficialmente detidas no CECOT, não é possível dar números exatos sobre detidos, até mesmo pelo fato de o governo salvadorenho negar essas informações à imprensa. Representantes jurídicos desses migrantes em El Salvador reportam invasões a suas sedes administrativas e ações intimidadoras por parte do governo de Nayib Bukele. 

Outros casos de deportação sem o devido processo legal são denunciados quase diariamente. Na segunda quinzena de abril, três crianças com cidadania estadunidense foram deportadas com suas mães para Honduras, uma delas com câncer. As medidas de Trump demonstram que seu governo não tem apreço pela Constituição estadunidense, considerando-se a reiterada negação da garantia de direitos humanos de migrantes. Deportar crianças nascidas nos Estados Unidos com cidadania assegurada constitucionalmente é uma das etapas das políticas que Trump quer implementar: a de retirar a cidadania de crianças nascidas em solo estadunidense e filhas de pais migrantes em situação irregular. 

Perseguição judicial e uso da força armada 

A perseguição não se restringe aos migrantes, atingindo figuras do Poder Judiciário. A juíza de Milwaukee (Winscosin) Hannah Dugan foi presa pelo FBI (equivalente à Polícia Federal no Brasil), sob acusação de obstrução e ocultação de indivíduo da prisão. Ela teria, supostamente, auxiliado um migrante réu em seu tribunal a não ser preso e deportado por agentes de imigração que o esperavam no corredor fora da sala de julgamento. Já liberada após pagamento de fiança, Hannah alega que tomou a atitude pelo fato de o mandado dos agentes não corresponder ao devido processo legal para prisão e deportação. Ainda assim, foi suspensa de suas atividades pela Suprema Corte de Wisconsin, considerada de maioria liberal/progressista. As ações de Trump contra os migrantes demonstram o esgarçamento do tecido social estadunidense e expõem uma das técnicas da extrema direita global: a perseguição ao Judiciário. Se uma juíza é detida por exigir que os executores da lei sigam a legislação vigente, é possível imaginar que perseguições públicas a opositores políticos de Trump que defendem migrantes em breve ocuparão as manchetes dos jornais e os informes do OPEU. 

Ainda em abril, o governo Trump determinou que o Exército dos Estados Unidos assumisse a supervisão de uma faixa de 274 quilômetros de fronteira, localizada no extremo-sul do Novo México. Nessa região, agora de controle militar, migrantes apreendidos pela agência de Alfândega e Proteção de Fronteiras (CBP, na sigla em inglês) podem ser detidos pelas tropas estadunidenses sob o argumento de serem invasores estrangeiros, pois essas pessoas estariam entrando ilegalmente em uma base militar. Dessa forma, militares que não podem atuar ativamente em solo estadunidense contam, agora, com brechas legais para exercer poder de vigilância de civis. Esse processo pode, em algum momento, incorrer no aumento da violência física contra migrantes que tentam cruzar a fronteira irregularmente, repetindo as lastimáveis cenas de setembro de 2021, quando agentes da Patrulha Fronteiriça perseguiram migrantes a cavalo para impedi-los de atravessar o Rio Grande, na altura do estado do Texas. 

U.S. border officials on horseback try to stop migrants crossing from Mexico(Arquivo) Migrantes perseguidos na fronteira (Fonte: captura de tela de vídeo da agência Reuters)

As ameaças de Trump de perseguir migrantes, em situação regular ou irregular no país, mostram-se relativamente factíveis. O ritmo de deportação nos três primeiros meses foi similar aos dos três primeiros meses de Biden, mas o medo instaurado, que não pode ser mensurado, parece estar causando o efeito esperado. Batidas policiais em comunidades migrantes, deportações sem o devido processo legal, desaparecimento de deportados, perseguição a juízes e uso da força militar para barrar civis, como se esses fossem inimigos que invadem o território nacional, dão a tônica do autoritarismo que deverá reger o governo Trump 2.0. É hora de nos acostumarmos novamente com os Estados Unidos em posição de ataque, não contra inimigos externos, mas sim contra pessoas em fuga da violência, em situação de vulnerabilidade e contra aqueles com uma vida estável que sustentam a economia estadunidense.

 

* Victor Cabral é doutorando em Relações Internacionais e mestre em Geografia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Foi pesquisador visitante na Universidad Complutense de Madrid (Espanha). É bacharel em Defesa e Gestão Estratégica Internacional e em Relações Internacionais, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. É colaborador do OPEU e pesquisa migrações climáticas, violência e migração na América Latina e controle e externalização de fronteiras dos Estados Unidos. Contato e publicações: https://linktr.ee/thevictorcabral 

** Revisão e edição: Tatiana TeixeiraRecebido em 30 abr. 2025. Este conteúdo não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU. 

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