Política Doméstica

O colapso da saúde pública dos EUA 

(Arquivo) ‘Meu corpo, minha escolha” diz cartaz, em protesto contra a vacina anticovid, na Wake Forest University, em 2021 (Crédito: Anthony Crider, via Wikimedia Commons. Fonte: Bulletin of the Atomic Scientists)

Por Ingrid Marra* [Informe OPEU] [Saúde] [Covid-19]

Estamos observando, de perto, o colapso da saúde pública nos Estados Unidos. Desde o início da pandemia da covid-19, em 2020, uma série de decisões na área da saúde foram tomadas, visando à abertura da economia em detrimento da contenção de doenças infecciosas. Agora, entrando no sexto ano da pandemia, o país está colhendo os frutos de uma política fatal de desmonte da infraestrutura no setor.  

Em dezembro de 2024, membros do Departamento de Saúde do estado de Louisiana foram proibidos de promover a vacina contra a covid-19, gripe (Influenza) e varíola do macaco. Os funcionários também foram proibidos de dar entrevistas, organizar eventos de vacinação, criar postagens em redes sociais, ou fazer apresentações que incentivassem a vacinação. Nessa época, o estado de Louisiana tinha as maiores taxas de morte por gripe do país. Grande crítico dos mandatos de vacina anticovid-19 durante a pandemia, o governador do estado, o republicano Jeff Landry, foi responsável por cinco projetos de lei e por duas resoluções para flexibilizar requerimentos da vacina. O republicano também foi responsável por instigar dúvidas sobre a eficácia das vacinas.  

O atual secretário de Saúde do país, Robert F. Kennedy Jr., afirmou que vacinas contra vírus respiratórios não funcionam e atrasou a aprovação da Novavax (vacina mais atualizada contra a covid-19) na Food and Drugs Administration (FDA), órgão responsável pela promoção da saúde pública. Em fevereiro deste ano, o presidente Donald Trump proibiu o financiamento federal para mandatos de vacinas contra covid-19 em escolas, banindo subsídios a agências que requerem a vacinação de estudantes para atender a programas educacionais. Com a justificativa de “proteger liberdades individuais”, a Casa Branca reforçou que a educação de crianças e jovens não deve ser condicionada por mandatos governamentais. Segundo o comunicado oficial, mandatos de vacinas colocam “pressão” sobre os estudantes, que são obrigados a tomar “decisões baseadas em coerção”.  

O raio cai duas vezes no mesmo lugar: a indicação de RFK Jr. para Saúde no governo Trump 2.0

Saiba mais sobre o secretário de Saúde de Trump e seu histórico antivacinas neste Informe OPEU de Henrique Menezes

O governo também afirma que crianças e jovens adultos têm um “risco incrivelmente baixo” de desenvolver casos graves de covid-19. Com isso, incorre-se em um caso grave de desinformação: crianças e jovens adultos são os grupos que mais sofrem com covid longa e suas sequelas, tanto em saúde mental quanto em saúde física. As sequelas são diversas. Podem ser de natureza cardiovascular, respiratória, neuropsiquiátrica (incluindo o desenvolvimento de episódios psicóticos), gastrointestinal, reprodutiva ou em sistemas musculoesqueletais. Como consequência, o número de pessoas em idade produtiva com deficiência aumentou drasticamente depois de 2020, saltando de uma média de seis milhões entre 2008 e 2020, para quase nove milhões de pessoas no fim de 2024.  

A infecção pelo vírus da covid-19 também está altamente associada ao declínio cognitivo e a lapsos de memória, mesmo após o período agudo da doença. Como resultado, a composição do tipo de deficiência em adultos em idade produtiva também mudou a partir de 2020, com um salto em deficiências cognitivas e múltiplas (físicas, sensoriais, ou cognitivas). 

Trabalhadores com deficiência acima de 16 anos 

Fonte: Federal Reserve Bank of Saint Louis. 

O salto também é visto no número total de pessoas com deficiência (físicas, sensoriais, cognitivas ou múltiplas), que se mantinha em uma média entre 27 milhões e 30 milhões de pessoas até 2020, e chegou a 35 milhões no final do ano passado.  

Total de pessoas com deficiência acima de 16 anos 

Fonte: Federal Reserve Bank of Saint Louis. 

Composição de deficiências em trabalhadores com deficiência, de 16 a 64 anos 

Fonte: Federal Reserve Bank of Saint Louis. Legenda:  Laranja: deficiência sensorial / Verde: deficiência físicaAzul: deficiência cognitiva / Magenta: deficiências múltiplas 

A mesma tendência é vista na população geral entre 16 e 64 anos, com aumento significativo em deficiências cognitivas e múltiplas, ultrapassando deficiências físicas.  

Mudanças na composição de deficiências em pessoas com deficiência, de 16 a 64 anos 

Fonte: Federal Reserve Bank of Saint Louis. Legenda:  Laranja: deficiência sensorial / Verde: deficiência físicaAzul: deficiência cognitiva / Magenta: deficiências múltiplas 

Um outro bom proxy  (variante indireta, geralmente utilizada para relacionar dados não coletados diretamente) para compreender a importância de políticas de prevenção são os dados sobre a evolução de doenças infecciosas com o passar dos anos. O sarampo, doença altamente contagiosa pela via respiratória, é um bom exemplo. Em 2000, o sarampo havia sido considerado erradicado no país. De acordo com o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC, em inglês), porém, em 2019 foram confirmados 1.274 casos em 31 estados. Esse número, o maior desde 1992, já expõe as consequências de uma política de questionamento do saber científico e do aumento do discurso antivacinas, diminuindo a cobertura vacinal de crianças e adultos. Do total de casos, 71% foram reportados em pessoas não vacinadas. Comunidades com alta densidade populacional e baixos níveis de imunidade acumulam 88% de todos os casos. Cidadãos viajantes e turistas infectados entrando no país também são transmissores da doença: 44 casos foram importados de outros países.  

Em 2020, graças ao aumento do uso de máscaras e ao distanciamento social, foram reportados somente 13 casos isolados, marcando o menor índice desde o início do monitoramento, em 1985. No ano seguinte, com o início da flexibilização do distanciamento social, foram reportados 49 casos. Em 2022, com o fim dos mandatos de uso de máscara, o número de casos saltou para 121, mas voltou para 59 em 2023. Embora a redução de casos possa gerar otimismo, a cobertura vacinal de crianças contra o sarampo diminuiu de 95% para 92,7%. Embora pareça pequena, essa redução provocou grande impacto no controle de infecção da doença: em 2024, foram reportados 285 casos de sarampo e, somente nos três primeiros meses de 2025, a doença já acumula 607 casos. Entre 2023-24, praticamente todos os estados estavam abaixo da taxa de vacinação ideal para contenção da doença (95%).  

Taxa de vacinação contra sarampo por estado, 2023-2024 

Fonte: CDC. 

Em 2024, 40% dos casos precisaram de hospitalização para manejo de complicações decorrentes da doença, e mais da metade das internações foram para crianças abaixo de cinco anos. Além disso, 89% não foram vacinadas, e 7% haviam recebido apenas uma dose da vacina. O surto está presente, até agora, em 22 jurisdições. A maior parte dos casos é em crianças e adolescentes entre 5-19 anos (40%), seguidos de crianças menores de 5 anos (32%) e adultos acima de 20 anos (26%). Até o momento, 97% dos casos estão concentrados em pessoas não vacinadas ou com esquema vacinal desconhecido; 12% dos casos requisitaram hospitalizações; e duas mortes foram relatadas.  

Casos de sarampo por semana, por data de início dos sintomas 

Fonte: CDC. 

Até o momento, o surto continua se desenvolvendo de maneira crescente, com o estado do Texas no centro e casos registrados no Novo México, em Oklahoma e em Kansas. Em Ohio, foram identificados dez casos vinculados a um viajante internacional.  

Casos de sarampo por município, 2025 

Fonte: The New York Times. 

O esquema vacinal de duas doses contra o sarampo é 97% eficaz contra a doença, enquanto a cobertura imunológica desce para 93% com apenas uma dose. Similar à covid-19, cujas infecções de repetição podem levar a um tipo de Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (aids, na sigla em inglês), o sarampo tem um mecanismo que leva a uma “amnésia imunológica”, ou supressão imune. Esse mecanismo deixa o corpo incapaz de lutar contra patógenos já conhecidos pelo corpo – seja por infecções prévias, seja por vacinas –, tornando as pessoas mais susceptíveis a doenças. Essa supressão pode durar até três anos em adultos, enquanto crianças podem precisar de até cinco anos para desenvolver um sistema imune saudável novamente, sendo necessária a repetição do esquema vacinal completo dos pacientes.  

No município de Gaines, no Texas, uma grande comunidade cristã antivacina é responsável pela baixa adesão ao esquema vacinal contra o sarampo. Embora a cobertura ideal seja acima de 95%, apenas 82% das crianças receberam o esquema vacinal completo nessa localidade. Ainda que as escolas públicas exijam a vacinação para a matrícula das crianças, é possível solicitar isenção por “razões de consciência”, o que inclui crenças religiosas. No distrito escolar de Loop Independent, apenas 46% das crianças matriculadas no jardim de infância tinham o esquema vacinal em 2023. No Novo México, estado também muito afetado pelo surto de sarampo, 94% das crianças e adolescentes do distrito de Lea apresentam o esquema de vacinação completo; entretanto, apenas 63% dos adultos receberam somente uma dose da vacina, e 55%, as duas doses. Como consequência, adultos somam mais da metade de todos os casos no estado. 

Outro bom proxy é a incidência de tuberculose, doença respiratória altamente infecciosa e considerada uma das mais letais, até a irrupção da covid-19. Nas últimas décadas do século XIX, a doença matou 1 em cada 7 pessoas nos EUA e no continente europeu. Antes da pandemia, os níveis de tuberculose estavam em seu patamar mais baixo desde 1992; em 2020, por conta do uso disseminado de máscaras e do distanciamento social, houve um declínio de 19,4% no número total de casos, e de 20,2%, na taxa de incidência.  

Casos e incidência de tuberculose por país de origem, 2010-2024 

A stacked column chart of TB disease cases overlaid with rates by birth origin in the United States from 2010 to 2024.Fonte: CDC. 

Com o dano cumulativo no sistema imunológico da população, entretanto, o atual número de casos é o maior em mais de 12 anos. Em 2024, mais de 10.300 casos foram registrados, com um aumento em 34 estados e em todos os grupos de idade. Um dos maiores surtos foi na cidade do Kansas, com um aumento de 148% no número de casos entre 2023-2024. O Departamento de Saúde estadual considera o atual surto como o maior registrado na história dos EUA 

Fica claro que o desmonte da saúde pública nos EUA, uma agenda política republicana prometida no Projeto 2025, é uma ameaça à sociedade estadunidense. A Associação Americana de Saúde Pública (APHA, em inglês) denunciou os riscos do Projeto 2025 para a saúde da população, incluindo riscos de desaparecimento de projetos de acesso igualitário ao sistema de saúde. Os grandes pontos de preocupação incluem saúde reprodutiva, acesso da população LGBTQIA+ a cuidados, coleta de dados, censo e pesquisas, autoridade e autonomia do CDC, difusão de sentimento antivacina, mudanças climáticas, entre outros. Os efeitos já estão sendo sentidos pelo país, e a população estadunidense sofre, a cada dia, as consequências desse projeto político ultraconservador.  

 

Conheça alguns dos textos da autora publicados no OPEU

Informe OPEU‘Quadridemia’ e o colapso da saúde pública”, 6 fev. 2025

Informe OPEUProjeto 2025 e acesso ao aborto pós-vitória republicana”, 17 nov. 2024

OPEU Entrevista “Metri: ‘EUA não será indiferente às iniciativas de desdolarização e defenderá sua moeda’”, 7 jul. 2023

OPEU Entrevista “Rúbia: ‘segurança nacional doméstica é usada para legitimar políticas para conter China’”, 30 jun. 2023

Informe OPEU “Demissões em massa assolam indústrias de tecnologia nos EUA, mas justificativa é frágil”, 6 abr. 2023

OPEU Entrevista “Marcos Pires ao OPEU: ‘Em tese, China teria este papel de liderar a reorganização monetária’”, 6 dez. 2022

Resenha OPEU “Símbolos, mitos e narrativas mobilizados na formação e consolidação da potência”, 15 de maio de 2022

Informe OPEU “MIT e Fed Boston trabalham na criação de moeda digital vinculada ao Banco Central dos EUA”, 3 de maio de 2022

 

* Ingrid Marra é mestra em Global Political Economy and Development (GPED) pela Universität Kassel, graduada em Relações Internacionais pela UFRJ (IRID-UFRJ) e pesquisadora colaboradora do Observatório Político dos Estados Unidos (OPEU) na área de Economia e Finanças, no período de 2021-2024, e em Política Doméstica, a partir de 2024. Áreas de interesse: hierarquia monetária internacional e criptomoedas, análise de discurso, pós-desenvolvimento e saúde. Linkedin.   

* Revisão e edição: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 12 abr. 2025. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU. 

*** Sobre o OPEU, ou para contribuir com artigos, entrar em contato com a editora do OPEU, Tatiana Teixeira, no e-mailtatianat19@hotmail.com. Sobre as nossas newsletters, para atendimento à imprensa, ou outros assuntos, entrar em contato com Tatiana Carlotti, no e-mailtcarlotti@gmail.com. 

 

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