A Segurança Pública de Trump 2.0 até aqui

Secretária de Segurança Interna, Kristi Noem, durante batida da ICE em busca de imigrantes em condição ilegal, na cidade de Nova York, em 28 jan. 2025 (Crédito: X/Wikimedia Commons)
Dossiê “100 Dias de Trump 2.0”
Por João Gaspar* [Informe OPEU] [100 dias] [Trump 2.0] [Segurança pública]
Os primeiros 100 dias do segundo mandato de Donald Trump passaram rápido, mas de forma alguma despercebidos: apenas de Ordens Executivas (OEs) foram baixadas mais de 100, assinadas, em sua maioria, durante interessantíssimas – para se dizer o mínimo – coletivas de imprensa, concedidas direto do gabinete do presidente na Casa Branca, sem filtros, sem cortes e sem papas na língua, ainda que, ao mesmo tempo, de todo concertadas.
E isso, junto de toda uma série de polêmicas postagens feitas nas redes sociais oficiais, do governo, e pessoais, dos seus altos servidores; de obscuros episódios de interferência interinstitucional e vazamento de informações sensíveis, devido, respectivamente, ao esmero e ao descuido de figurões da presente gestão; e, como se não bastasse, de quase inacreditáveis (até há bem pouco tempo) opiniões adotadas e parcerias firmadas pela presente administração na política internacional.
Temos, pois, um fenômeno político, cuja aparência é de um caos à primeira vista indelével, por conta de sua complexidade. Cuidadosamente desvelando-o em sua materialidade, porém, e acessando a sua essência, as coisas ficam mais claras – ainda que as contradições continuem sem solução, se é que precisam tê-la.
Pois bem. Vem-se dando, neste governo Trump 2.0, um movimento de abandono dos níveis mais ou menos significativos de pudor que até então tiveram as anteriores presidências no servir, às claras, a interesses de segmentos não raro conflitantes entre si da grande classe capitalista estadunidense, isso é, aos industriais, aos banqueiros, aos investidores etc., enfim, ao “puro” capital, real ou fictício que seja, dos EUA.
Nesse sentido, já nos debruçamos, brevemente, ao estudo acerca de como se vem expressando, sob uma nova modalidade – mais “livre” –, o longevo e perene relacionamento entre capital e poder público nos EUA. E fizemo-lo tanto de modo geral, buscando determinar quais as características que isso a que denominamos de “simbiose público-privada” bastante recentemente vem desenvolvendo, bem como particular, trazendo à baila e avaliando alguns episódios da trama política estadunidense dos últimos meses que corroboram nossas percepções.
Consulte, pois, os Informes OPEU “Reflexões sobre Trump, Musk e a simbiose público-privada nos EUA” e “A lisergia material de Trump 2.0” para conferir os resultados desse nosso esforço analítico.
No presente texto, buscaremos fazer um balanço das políticas implementadas em matéria de Segurança Pública nestes primeiros 100 dias da administração Trump 2.0, valendo-nos, para tanto, das OEs assinadas pelo presidente até o momento. Sempre teremos em mente, vale destacá-lo, essa mais ampla e descarada “associação” do poder público para com o grande capital dos EUA, tomando-a qual estrutura.
Nosso objetivo, aqui, é mostrar qual a percepção que Trump 2.0 tem acerca da criminalidade, da pena, da atividade policial em si etc., de um lado, e, de outro, expor quais foram as ações efetivamente levadas a cabo, até agora, pelo Governo Federal estadunidense em matéria de Segurança Pública a partir dessa percepção. Destacamos, nesse ínterim, que este Informe OPEU procura antes delimitar as linhas-mestras desta gestão no tocante à criminalidade e ao policiamento, do que avaliar/prever resultados concretos que tiveram ou possam vir a ter tal ou qual política, já que acreditamos ser bastante cedo para fazê-lo. Além disso, parece-nos mais útil, agora, que saibamos para onde os EUA estão caminhando, do que ponderar quais os efeitos específicos do que fora feito nestes primeiros três meses de governo.
Continuidades e novidades
Como veremos, pouca coisa há de nova, em Trump 2.0, em relação aos consensos securitários já estabelecidos na sociedade estadunidense desde há alguns anos. Por exemplo, a última conformação, datada dos anos 1990, do Pacto Securitário Burguês dos EUA, que materializa a figura do “inimigo interno” no imigrante irregular (mas não somente), no traficante, no “terrorista” e, em sua síntese, no narcotraficante – em detrimento do antigo comunista –, tendo todos cor e sotaque característicos, continua em vigor.
Saiba mais sobre o tema neste Informe OPEU de João Gaspar
Não obstante, de forma semelhante ao que vem acontecendo com o relacionamento entre capital e poder público, parece que Donald Trump, neste seu segundo mandato, não mais se esforça o mínimo que seja para moderar seu discurso no concernente aos seus desejos eugenistas-classistas e imperialistas. Intenta, de modo inescrupuloso, levar adiante um projeto de sociedade burguesa que seja continuamente “limpa” por meio da ação policial.
Entendemos que esse novo modus operandi possa nos dar uma pista das intenções primárias do presidente, quais sejam, manejar o consenso em seu país. E isso, em uma estratégia que só é viável hoje, devido, assim acreditamos, ao aprofundamento dos conflitos de classe no seio da sociedade estadunidense e ao tensionamento do grande consenso neoliberal global, a que comumente se refere por “globalização” – conjuntura instável que exige procedimentos “excepcionais” por parte dos grupos hegemônicos da sociedade para a manutenção do seu domínio sobre a mesma.
Nesse contexto, são bastante significativas para o presente estudo as Ordens Executivas nº 14157, de 20 jan. 2025; nº 14159, de 20 jan. 2025; e nº 14161, de 30 jan. 2025, pois elas nos indicam claramente qual a percepção que a gestão Trump 2.0 têm acerca da Segurança Pública, isso é, o que entende ela por “ameaças à Segurança Pública”, por “Segurança”, por “Pública”, como se devem combater tais ameaças à Segurança Pública etc. Destarte, tais OEs validam nossa observação inicial de que o consenso securitário estadunidense não sofreu alteração em sua essência, apenas em sua aparência. Fez-se mais “bruto”, mais “violento”, mais “total”, sem meias-palavras.
Vejamos: as OEs selecionadas mantêm a imigração irregular, o tráfico internacional de drogas e o terrorismo como um assunto de Segurança Pública, conforme o consenso securitário estabelecido na década de 1990 e reforçado após o 11 de Setembro com a criação do Departamento de Segurança Interna. Amplia-se, porém, seu suposto grau de ameaça à sociedade estadunidense e se incentiva a interoperabilidade entre as instâncias local, distrital, estadual e federal da Polícia, do Ministério Público e do Judiciário, para uma persecução penal mais efetiva no combate a tais ameaças.
Particularmente quanto às agências do Poder Executivo, é necessário não perder de vista o significado de tal “interoperabilidade”, qual seja, órgãos exógenos à comunidade de Inteligência – mesmo aqueles cuja função seja de assistência social –, por exemplo, obtendo e repassando informações sensíveis daqueles indivíduos vistos como perigosos para as corporações policiais levarem a cabo a repressão contra os mesmos de forma mais “acertada”. Ainda que não seja algo novo – Loïc Wacquant chamou isso de “panopticismo administratitvo”, em 1999 –, é uma prática que também vem se aprofundando.
Importante se note que, nos EUA, as polícias locais, distritais e estaduais – tanto os departamentos de polícia quanto os escritórios de xerife – têm muito mais competências do que as agências de cumprimento da lei federais, como o Escritório Federal de Investigações (FBI, na sigla em inglês), o Departamento de Investigações de Segurança Doméstica (HSI, na sigla em inglês), o Departamento de Fiscalização de Imigração e Aduanas (ICE, na sigla em inglês) e a Administração de Fiscalização de Drogas (DEA, na sigla em inglês), entre várias outras. Por conta disso, de certa forma, é natural – e, ademais, é precisamente esta a sua atribuição constitucional – que o Governo Federal centre sua atuação em matéria de Segurança Pública no combate a ilícitos transnacionais ou que tenham repercussão nacional.
Para além disso, no entanto, o que vem acontecendo sob Trump 2.0 é uma extrapolação/distorção interessada desta realidade, na medida em que crimes “comuns” passam a ser levianamente atribuídos aos imigrantes (não apenas aqueles em situação irregular), aos “traficantes” e àquelas pessoas nacionais de países subdesenvolvidos, institucionalmente débeis e impotentes, envoltos em conflitos internos e/ou regionais complexos etc., ou seja, aos “terroristas” (não havendo diferença entre sê-lo e poder sê-lo), para que se justifique um amplo manejo policial-penal da insegurança social.
Afinal, ao passo que a Insegurança Pública passa a ser de responsabilidade das comunidades marginalizadas dos EUA, negras, latinas e de imigrantes, sobretudo, é sobre elas que deve agir o Estado. Para isso, fará uso dos seus instrumentos repressivos, para garantir o domínio da Lei e da Ordem, inclusive valendo-se de ações coordenadas entre diferentes corporações policiais, conforme seja necessário.
A racionalidade dos preconceitos burgueses
Destaque-se que essas OEs comentadas acima apenas oficializam, enquanto política pública, noções “preconceituosas” extremadas, com viés de classe, já reconhecidas como típicas do Partido Republicano-Trumpista desde outros carnavais, e, indiretamente que o seja, referendadas, em 2024, pela maioria dos eleitores estadunidenses (recorde-se que Donald Trump venceu as últimas eleições no voto popular e no Colégio Eleitoral).
Reflitamos: acaso não disse Trump – em um comentário absolutamente equivocado, claro –, quando debatendo com Kamala Harris em 10 set. 2024, que imigrantes haitianos residentes na cidade de Springfield, em Ohio, estavam comendo animais de estimação da população local? E não o disse como parte da sua “crítica” à suposta leniência do seu antecessor Joe Biden quanto ao “problema” da imigração? Pois bem.
Sublinhe-se que pouco importa, nesse contexto, a regularidade da imigração, ou se o imigrante está de fato envolvido com atividades criminosas. Tampouco importa se existem mexicanos ou bolivianos que não têm qualquer relação com o narcotráfico, ou árabes que jamais se envolveram com qualquer tipo de organização terrorista. É necessário que se construam tipos securitários puros bastante específicos e apriorísticos, dentro de um consenso neoliberal multissetorial, para que se venha a servir adequadamente à classe capitalista dos EUA, isto é, ao seu projeto de sociedade, desde a Segurança Pública – e apenas para isso.
Em outras palavras, o que vale é a função ideológica exercida por tais “preconceitos” em prol da burguesia estadunidense, os quais servirão ao mesmo tempo de fundamento do reforço da atividade persecutória do Estado, dando-lhe justificativa, como de demarcação dos alvos de toda a repressão policial. E isso, porque indicam, colocando-o dessa forma ou não, quais são os grupos mais desajustados ou indesejados da sociedade e, assim, mais perigosos à ordem burguesa que se intenta nela impor e manter.
O consenso e a coerção nas políticas securitárias de Trump 2.0
Enquanto fundamento, tais “preconceitos” têm por objetivo fazer a população “de bem” dos EUA apoiar, ainda que não o saiba ou entenda, a implementação de um projeto societário burguês. Desse modo, apresentam-se certos elementos quais ameaças não apenas à Segurança Pública – já bastante significativa, por si –, mas também às oportunidades de emprego e de moradia para a população nativa, aos padrões ético-morais e aos valores tradicionais da sociedade, à cultura local, aos negócios estadunidenses etc.
Lembremo-nos, a essa altura, de que grande parte dos votos que Donald Trump recebeu em 2024 se deveu aos apoios que este recebeu da classe trabalhadora e do alto empresariado dos EUA. O primeiro destes, havendo sido logrado, devido, exatamente, ao discurso “materialista” adotado pelo presidente, de um lado, e por conta das difíceis condições materiais de vida da população naquele momento, de outro, pelo que os trabalhadores enxergaram em Trump uma possibilidade concreta de melhora da sua qualidade de vida. Já o segundo deles, logrou-o Trump simplesmente associando-se – se é que já não o fazia, então – ao grande capital nacional, e engajando-se profundamente em suas pautas, buscando atender aos seus múltiplos desejos.
Posse de Trump, em 20 jan. 2025, contou com a presença e o apoio de fundadores e CEOs das Big Techs (Fonte: Comitê Conjunto do Congresso sobre Cerimônias Inaugurais/X/Wikimedia Commons)
Mas o apoio, claro, deve ser continuamente mantido para que o governo se sustente, ou seja, tem-se que gerenciar o consenso que se trabalhou por estabelecer, ao redor de si. E eis, precisamente, a função precípua desses construtos securitários, enfim: servir a esta gerência do consenso, conforme descrevemos acima, tanto mobilizando o “povo estadunidense” no apoio da administração federal, mostrando que se vem trabalhando, lutando contra tudo e todos quanto seja necessário, para lhe dar condições de vida melhores; como mobilizando a burguesia dos EUA no apoio à presente Presidência, mostrando que se vem trabalhando por lhe permitir maiores retornos financeiros e por efetivar o projeto societário por ela desenvolvido, superando quaisquer empecilhos de ordem material ou moral que eventualmente se encontrem.
Quanto à demarcação dos alvos, como já dissemos, tais “preconceitos” apontarão para aqueles segmentos mais socioeconomicamente fragilizados da sociedade dos EUA, no âmbito da atual conformação do Pacto Securitário Burguês estadunidense, associando-os, em absoluto, a uma série de condutas ilícitas, como homicídio, furto e roubo, tráfico de drogas, estupro etc., e, também, a problemáticas que calam fundo nas pessoas daquele país, como desemprego, concorrência desleal, desvio da arrecadação pública para servir a estrangeiros etc.
Com tudo isso posto, avança este segundo governo Trump, finalmente, para o controle dos indivíduos pertencentes ao estrato “perigoso” da sociedade estadunidense. Nesse sentido, vem ele orientando sejam implementadas políticas “linha-dura” para o combate às ameaças à Segurança Pública do país por parte das suas diversas agências policiais e dos seus vários órgãos judiciários, locais, distritais, estaduais e federais.
Corroborando-o, tomemos à mão a Ordem Executiva nº 14164, de 20 jan. 2025, na qual a administração federal é muito clara: a procuradora-geral dos EUA, Pam Bondi, deve avaliar a “qualidade” e quantidade das prisões federais; o tamanho do efetivo operacional federal das diversas agências policiais do Estado; os estoques de químicos para injeção letal de cada unidade prisional federal e estadual etc., para uma firme repressão ao “crime” – sendo que a pena de morte deve ser buscada sempre que possível pela promotoria, principalmente em episódios de mortes de policiais e de crimes capitais cometidos, vejamos só, por estrangeiros “ilegalmente” presentes nos EUA.
Não se dá ao acaso, dessa forma, ademais, a cooperação entre a atual administração federal estadunidense e o gabinete “tolerância negativa” de Nayib Bukele, de El Salvador, em prol de um bom manejo policial-penal dos montantes de pessoas indesejadas que ainda – mas, se tudo correr bem para Trump, não por muito mais tempo – vivem nos EUA.
A ideia prenunciada pelas OEs até aqui baixadas, como vemos, é a de que os EUA ou vão trancafiar ou vão matar todos aqueles que não se encaixam – e que nem podem fazê-lo, necessariamente, por serem que são – no projeto societário burguês que a passos largos avança naquele país, já sem qualquer pudor.
Seguimos acompanhando – bastante atentos.
Deixamos para um próximo Informe OPEU o tema da desinstrumentalização política e (re)meritocratização das agências policiais do Governo Federal, processos estes derivados das Ordens Executivas nº 14147, de 20 jan. 2025, e nº 14185, de 27 jan. 2025, respectivamente. Antecipamos, apenas, que sua função não vai para além de contribuir para o manejo do consenso estabelecido em torno aos republicanos, nos EUA.
Conheça outros textos do autor para o OPEU
Informe “Doutrina de Tolerância Zero e o manejo penal da insegurança social”, em 24 abr. 2025
Informe “Teoria das Janelas Quebradas e o consenso securitário neoliberal”, em 22 abr. 2025
Informe “Ingerência externa: exceção ou regra?”, em 19 abr. 2025
Informe “A cooperação policial entre Brasil e EUA no marco do Imperialismo”, em 14 abr. 2025
Informe “Segurança Pública na Dependência”, em 10 abr. 2025
Informe “A lisergia material de Trump 2.0”, em coautoria com Morgana Trintin, em 7 mar. 2025
Informe “Atuação da USAID em matéria de Segurança Pública no Brasil (1950 – 1970)”, em 24 fev. 2025
Informe “Reflexões sobre Trump, Musk e a simbiose público-privada nos EUA”, em 11 fev. 2025
Informe “AIPAC x SQUAD: o ‘lobby’ israelense para impedir candidaturas progressistas nos Estados Unidos”, em coautoria com Camila Vidal, em 8 jan. 2025
Informe “O que significa Marco Rubio como secretário de Estado para a política externa dos EUA?”, em 15 nov. 2024
Informe “O evangelho d’O Sonho Americano, pela Rede Globo”, em 13 nov. 2024
* João Gaspar é graduando em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Santa Catarina, bolsista do Instituto de Estudos Latino-Americanos (IELA-UFSC) e colaborador do projeto “O poder das ideias e a manutenção hegemônica através do consenso: Estados Unidos e América Latina”. Contato: joaogkg@hotmail.com.
** Revisão e edição: Tatiana Teixeira. Recebido em 25 abr. 2025. Este e os próximos Informes desta série derivam de uma pesquisa que vem sendo conduzida no âmbito do projeto “O poder das ideias e a manutenção hegemônica através do consenso: Estados Unidos e América Latina”, sob orientação da professora Dra. Camila Feix Vidal. Este conteúdo não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
*** Sobre o OPEU, ou para contribuir com artigos, entrar em contato com a editora do OPEU, Tatiana Teixeira, no e-mail: tatianat19@hotmail.com. Sobre as nossas newsletters, para atendimento à imprensa, ou outros assuntos, entrar em contato com Tatiana Carlotti, no e-mail: tcarlotti@gmail.com.
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