Os primeiros 100 dias de Trump 2.0: caos deliberado, incerteza e perseguições

Fonte: U.S. Chamber of Commerce
Dossiê “100 Dias de Trump 2.0”
Por Tatiana Teixeira* [Informe OPEU] [100 dias] [Trump 2.0]
A partir de hoje e ao longo desta semana, o Observatório Político dos Estados Unidos (OPEU) publica textos do dossiê “100 Dias de Trump 2.0”, que se completam neste 29 de abril. Trata-se de nossa segunda iniciativa sobre esta efeméride. Na primeira ocasião, publicamos um amplo e detalhado Estudos e Análises de Conjuntura sobre o início do governo democrata de Joe Biden e Kamala Harris. Divulgado em junho de 2021, o dossiê “Governo Biden: um primeiro balanço” resultou de uma parceria do OPEU com o Núcleo de Estudos e Análises Internacionais (NEAI), com o Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais (Ippri/Unesp), com o Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas e com o Instituto de Relações Internacionais e Defesa (IRID/UFRJ). Recomendo a leitura.
Iniciada com o presidente Franklin Delano Roosevelt, a prática de fazer um balanço dos primeiros 100 dias de gestão foi integrada à tradição política estadunidense pelos governantes e se tornou um marco usado pela imprensa e por analistas para verificar a avaliação do conjunto de medidas implementado pelo novo Executivo. Apesar dos antagonismos partidários e ideológicos de sempre, costumava haver, neste período, alguma condescendência em relação ao presidente recém-eleito. Enquanto seus correligionários já partiam de boas expectativas e otimismo, aqueles que nele não votaram se apegavam a uma desconfiança assertiva ponderada, digamos assim, torcendo pelo melhor (ou pelo menos pior). Com o aumento do rancor mútuo entre democratas e republicanos nos últimos anos – e especialmente na eleição presidencial de 2024 –, essa tolerância com o partido rival no poder é cada vez menor.
(Arquivo) Presidente FDR, durante pronunciamento à nação, em 28 jun. 1934 (Crédito: Harris & Ewing/Wikimedia Commons/Library of Congress)
Tendência de queda
A classificação média do primeiro trimestre para todos os presidentes eleitos de 1952 a 2020 é de 60%. Como informa o Gallup,
John F. Kennedy e Dwight Eisenhower tiveram as classificações médias mais altas no primeiro trimestre, com ambos registrando acima de 70%, enquanto Jimmy Carter, Barack Obama e Ronald Reagan tiveram médias entre 60% e 69%. George W. Bush, George H.W. Bush, Joe Biden e Bill Clinton tiveram classificações médias semelhantes de 55% a 58% em seus primeiros trimestres. Trump é o único presidente a ter índices médios de aprovação abaixo de 50% durante o primeiro trimestre de seu mandato.
Na comparação deste mesmo recorte temporal com seus antecessores, o presidente Donald Trump não se sai bem na foto. À exceção de sua fiel base MAGA (Make America Great Again), Trump registrou perda de capital político e pessoal entre republicanos de variados matizes, democratas e independentes. Em sua conturbada lua de mel com o eleitorado em geral, viu a aprovação de seu desempenho despencar, assim como a confiança em sua capacidade e em sua liderança para lidar com as questões econômicas (inflação, emprego, crescimento do país) – um ponto que o favoreceu enormemente nas eleições de 2024, em relação à oponente democrata, Kamala Harris. Como mostra a enquete da Fox News, 82% dos entrevistados estão extremamente ou muito preocupados com inflação, ou ainda, conforme The Washington Post/ABC News/Ipsos, apenas 39% aprovam suas decisões na economia, e 61% desaprovam.
Trump é o presidente com pior avaliação dos 100 Dias desde FDR (1933-1945), como mostram diferentes pesquisas feitas em abril. De acordo com o Pew Center, 40% dos entrevistados aprovam seu governo, enquanto 59% desaprovam. Os percentuais são similares nas sondagens divulgadas por outros institutos, como Fox News/Beacon Research e Shaw & Company Research (44% contra 59%); Gallup (44% contra 53%); The Economist/YouGov (41% contra 54%); e The Washington Post/ABC News/Ipsos (39% contra 55%).
Como sabemos, as pesquisas de opinião são um retrato de uma conjuntura. Elas nos dão pistas de um momento específico, mas há muitas variáveis (crises internas e externas, como 11/9 e a pandemia da covid-19, humor nacional, melhora na economia, entre outras) que podem afetar esses resultados. O que será digno de atenção nossa (e de preocupação ou alívio no caso do governo da situação) é a prevalência de uma tendência para cima, ou para baixo. No caso de Trump, pelo menos por enquanto, pesquisas realizadas por vários institutos indicam uma inclinação contínua de queda e de perda de confiança desde a eleição de novembro de 2024. Além disso, várias das suas principais políticas, como corte de gastos do governo, tarifaço e medidas econômicas, são vistas mais de forma negativa do que positiva. De novo, estes números não determinam como o governo vai-se desenvolver, ou como terminará, mas são um começo historicamente ruim.
Recorde de ordens executivas
Conforme levantamento do site Ballotpedia, até 24 de abril, o presidente havia assinado 216 ações executivas, sendo 139 ordens executivas (OEs), 37 memorandos e 40 proclamações. Do total de OEs, enumera o Ballotpedia, 35 foram relacionadas com política externa, 23 com o governo federal, 19 com revogações de OEs, 19 com comércio e tarifas, 15 com clima/meio ambiente e energia, 12 com educação, 9 com saúde, 8 com policiamento e justiça criminal, 7 com imigração, 6 com tecnologia e 35 com “outros”. Em uma breve explicação, ordens executivas são diretrizes do presidente para os funcionários do Poder Executivo, exigindo que eles tomem ou interrompam alguma ação relacionada com a política ou com a administração. São numeradas e publicadas no Federal Register (equivalente ao nosso Diário Oficial). Podem ser revertidas pelo próximo presidente. Memorandos e avisos presidenciais também incluem instruções a funcionários do Executivo, mas não são numerados nem têm as mesmas exigências de publicação. Vêm sendo usados como uma OE, mas sem atender aos requisitos legais de uma ordem executiva. Já as proclamações se referem, em geral, a indivíduos ou eventos cerimoniais, como feriados e comemorações. Podem ter grande valor simbólico.
Trump é o presidente com um número recorde de ordens executivas emitidas, 139, desde o primeiro ano de Harry Truman, também com 139, em 1945. Apesar de ter maioria em ambas as Casas do Congresso, ainda não viu aprovada nenhuma legislação significativa, preferindo governar por decretos. Além de buscar desfazer a agenda da gestão anterior e de implementar inúmeros aspectos do ultraconservador Projeto 2025, as medidas assinadas por Trump também têm cunho pessoal, misturando desavenças políticas particulares com objetivos políticos e ideológicos do governo. Isso não é incomum de acontecer. A diferença é que, agora, tem-se uma perseguição incisiva e ostensiva a qualquer pessoa ou instituição que seja contrária às suas políticas, ou que tenha, por exemplo, rejeitado a narrativa de fraude eleitoral em 2020, com um amplo uso da máquina para se vingar dos desafetos. A retribution, como a imprensa estadunidense vem chamando, vai desde revogar autorizações de segurança (security clearances) a proibir a entrada em prédios públicos, passando por determinar que agências do governo levem os inimigos do presidente aos tribunais.
Trump, antes de assinatura de uma OE no Salão Oval, na Casa Branca, em Washington, D.C., em 10 fev. 2025 (Fonte: Flickr da Casa Branca)
Suas OEs vêm sendo implementadas no limite de ação de sua autoridade legal executiva (ou mesmo além da brecha constitucional, a depender do observador), o que deflagrou uma onda de processos na Justiça. Entre essas medidas (em vigor ou suspensas por determinação judicial), estão fim da concessão de cidadania por nascimento, desmonte de programas e agências oficiais, declaração de emergência nacional na fronteira sul do país (divisa com o México), desmantelamento dos programas DEI (Diversidade, Equidade e Inclusão), proibição de pessoas trans nas Forças Armadas e em competições esportivas femininas, reconhecimento de apenas dois gêneros (feminino e masculino), demissões em massa no funcionalismo público e saída de organizações e acordos internacionais.
Choque e pavor
Aqui e ali, nas notícias, análises e vídeos pesquisados para escrever esta apresentação, alguns pontos se destacam por sua recorrência ou por sua gravidade.
O governo Trump começou com uma dinâmica de caos deliberado e proposital – conforme ilustrado por Steve Bannon e sua muzzle velocity, ou a técnica de choque e pavor (shock and awe), nome de operação homônima na Guerra do Iraque para atordoar o inimigo. E atordoados ficaram os Estados Unidos e o mundo. Nunca na Presidência moderna do país havia se visto tamanha rapidez, velocidade, aleatoriedade, perplexidade, ambiguidades e dúvidas, a um só tempo, em um mesmo governo. Desde o dia 1, foram medidas, anúncios, declarações, idas e vindas em políticas em praticamente todas as áreas, aparentemente de modo errático, sem respiro, sem descanso.
Pôs-se em curso a destruição de uma estrutura de governo construída no New Deal (FDR) e ampliada com os programas da Great Society (Lyndon Johnson), a revisão ou o fim de políticas há muito estabelecidas (no plano doméstico e no plano internacional), o excesso de autoridade de um Executivo que invade/ameaça/ignora os demais Poderes (Legislativo e Judiciário) e se aproveita da inação dos congressistas, deportações sem o devido processo legal, investidas contra educação (com gigantescos cortes em pesquisa, banimento de livros e cerceamento de universidades), censura direta e indireta e perseguição à imprensa, detenção e deportação de estudantes estrangeiros, reversão dos avanços na agenda ambiental feitos nos últimos anos. Essa sequência não é exaustiva.
Até que o tarifaço veio, derrubou as bolsas, fez despencar a confiança do empresariado. Alertas de recessão no horizonte, desemprego em alta, inflação e juros subindo, queda do PIB. O caos fugiu do controle de seus criadores, e Trump piscou.
Ao contrário de Trump 1.0, que contou com mais burocratas e profissionais de carreira na linha de frente do governo, desta vez, os altos escalões foram preenchidos mais pelo critério da lealdade política do que por capacidade técnica ou experiência em alguma área – o que potencializa a incerteza.
Palavras e expressões que não se ouviam de modo recorrente desde o também republicano George W. Bush (2001-2009) voltaram a circular, como “presidência imperial”, “unilateralismo” e “isolacionismo”, e outras, incomumente relacionadas a um presidente estadunidense dentro de casa (por políticos, pela imprensa, pela academia e pela população), como “ditador”, “autoritário”, ou “neofascismo”, surgiram com força nos debates, pesquisas de opinião e jornais para se referir a Trump e a seu governo.
Trump celebra seus 100 dias de governo neste dia 29, com um grande comício no condado de Macomb, no Michigan. A escolha não é aleatória. Trata-se de um dos sete estados-pêndulo que migraram para o republicano em 2024. Parecem longe, mas as eleições de meio de mandato (midterms) já estão dobrando a esquina.
***
Neste dossiê, traremos áreas e temas que vão de imigração, economia e finanças a sociedade e política externa, passando pelo papel dos EUA no mundo. Com isso, esperamos dar aos nossos leitores e leitoras um bom panorama do que aconteceu até agora e, quem sabe, provocar insights sobre o que virá.
Conheça alguns dos textos da autora publicados no OPEU
Informe “Oscar 2025 diz ‘não’ a Trump e sua agenda”, 4 mar. 2025
Informe “Posse presidencial: um ritual de sacralização do ordinário marcado por opulência e poder”, 21 jan. 2025
Informe “Criador das ‘13 Keys’, Nostradamus das eleições nos EUA prevê vitória de Kamala Harris”, 7 set. 2024
Informe “Impacto da saída de RFK Jr. é pequeno, mas pode ser chave em eleição apertada”, 30 ago. 2024
Informe “Think tanks, lobbies e política nos EUA”, 6 jun. 2024
Informe “Colégio Eleitoral nos EUA: um sistema obsoleto que resiste à mudança dos tempos e da sociedade”, 28 de maio de 2024
Informe “Lula e Biden: uma relação com ganhos e (novos) limites para Brasil e EUA”, 11 fev. 2023
Informe “A carta de Biden”, 21 mar. 2021
Informe “O legado do senador republicano Mitch McConnell”, 30 out. 2020
Informe “Think tanks e política nas eleições de 2020 nos EUA”, 15 dez. 2019
Informe “A bilionária e feroz propaganda eleitoral nos EUA”, 17 nov. 2019
Informe “Think tanks americanos e a desigualdade de gênero”, 29 out. 2019
* Tatiana Teixeira é editora-chefe do Observatório Político dos Estados Unidos (OPEU) e pesquisadora do INCT-INEU. Contato: professoratatianateixeira@outlook.com.
** Revisão e edição: Tatiana Teixeira. Este conteúdo não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
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