Sociedade

Temos que pagar pelo conhecimento? O desafio da dívida estudantil nos EUA

(Arquivo) ‘Somos estudantes, não consumidores’, diz faixa de protesto no Cooper Union, em Nova York, em 8 dez. 2012 (Crédito: Michael Fleshman/Flickr)

Endividamento universitário: um fardo crescente nos EUA

Por Leonardo Martins de Assis* [Informe OPEU]

De acordo com uma pesquisa conduzida pela Georgetown University, pelo menos 36% das oportunidades de emprego nos Estados Unidos não exigem um diploma universitário. Paradoxalmente, no entanto, um número cada vez maior de pessoas está se endividando para concluir o ensino superior em um país que abriga algumas das universidades mais caras do mundo. Os números da dívida estudantil nos Estados Unidos são alarmantes, rivalizando com a magnitude do Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil. Enquanto o PIB brasileiro em 2021 foi de aproximadamente US$ 1,7 trilhão, a dívida total relacionada à educação nos Estados Unidos atingiu US$ 1,6 trilhão. Esse cenário é agravado pelo fato de, nas últimas quatro décadas, as dívidas estudantis terem triplicado, crescendo a taxas muito acima da inflação.

A origem desse desafio remonta à expansão do sistema educacional nos EUA, que, a partir da década de 1950, aumentou o número de matrículas, mas sofreu com os cortes no financiamento público para o setor. Gustavo Fischman, professor de Políticas Públicas e Educação Comparativa da Universidade do Arizona, observa que essa expansão ocorreu em paralelo ao crescimento do setor privado e da comercialização da educação, criando um ambiente propício para o aumento dos custos de matrícula, a queda na eficiência e o aumento do financiamento estudantil. Essa combinação se revela desastrosa.

Além disso, Sam Abrams, renomado pesquisador em educação, ressalta que, devido à mobilidade geográfica das famílias, as universidades se tornaram centros comunitários que proporcionam um senso de pertencimento. Esse fenômeno contribui para a valorização das chamadas Ivy Leagues e explica, em parte, por que pessoas de classes sociais mais baixas estão dispostas a assumir dívidas substanciais para acessar o ensino superior.

Dados do Departamento de Educação revelam que, até dezembro de 2019, aproximadamente 44 milhões de pessoas tinham empréstimos estudantis, totalizando US$ 1,64 trilhão. A maioria desses devedores já havia concluído seus estudos, o que indica a persistência do problema. A maior parte da dívida é de natureza federal, totalizando US$ 1,5 trilhão, com uma média de quase US$ 30 mil de dívida por estudante.

Como a dívida estudantil nos EUA afeta a vida financeira, emocional e as desigualdades raciais e de gênero?

Primeiramente, é fundamental destacar como o endividamento estudantil afeta a vida das pessoas. Para muitos graduados, a dívida estudantil se torna um fardo esmagador que impacta suas decisões financeiras ao longo da vida. Isso inclui a capacidade de comprar uma casa, planejar o futuro financeiro e alcançar objetivos, como economizar para a aposentadoria, por exemplo. A média de US$ 28.950 de dívida por aluno representa uma carga considerável, tornando-se uma barreira para o alcance da estabilidade financeira.

O estresse emocional associado à dívida estudantil é outra dimensão preocupante. Os indivíduos enfrentam ansiedade constante, devido à pressão para pagar empréstimos e o medo de consequências negativas, como a inadimplência. Esse estresse pode afetar negativamente a saúde mental e emocional dos devedores, criando um ciclo de dificuldades emocionais que pode ser debilitante, paralisante e até incapacitante.

Além disso, a dívida estudantil tem contribuído para o aprofundamento da desigualdade social e econômica nos Estados Unidos. Os dados revelam que as comunidades negras são desproporcionalmente afetadas. A disparidade racial na dívida estudantil está intrinsecamente ligada à já existente lacuna de riqueza racial. Enquanto os lares brancos têm sete vezes mais riqueza do que os lares negros, essa desigualdade se perpetua e amplifica quando se trata de dívida estudantil.

A razão para essa disparidade é multifacetada. Estudantes negros frequentemente começam a faculdade com menos recursos socioeconômicos, incluindo menos riqueza parental e recursos financeiros limitados. Isso os obriga a assumir mais dívidas para cobrir mensalidades e despesas de subsistência, a fim de compensar a diferença de riqueza em relação aos colegas brancos. Segundo o mesmo relatório, em torno de 86% dos estudantes negros contraem dívidas estudantis, em comparação com apenas 68% dos estudantes brancos. Além disso, os estudantes negros, em média, acumulam dívidas mais elevadas, com uma média de US$ 39.500, em comparação com os US$ 29.900 dos estudantes brancos.

As mulheres também enfrentam desafios significativos em relação à dívida estudantil. Nos EUA, quase dois terços da dívida estudantil, cerca de US$ 929 bilhões, são devidos por mulheres. A pesquisa da Associação Americana de Mulheres Universitárias revelou que mulheres formadas com diplomas de bacharel acumulam, em média, US$ 2.700 a mais em dívidas estudantis do que seus colegas masculinos. Essa disparidade se acentua ao longo do tempo, uma vez que as mulheres levam, em média, dois anos a mais para quitar suas dívidas, com juros acumulando durante esse período.

Além disso, as mulheres formadas com diplomas de bacharel ganham em média cerca de US$ 35.000, apenas 81% do que seus colegas masculinos ganham. Isso resulta em dificuldades financeiras, especialmente considerando-se que, um ano após a faculdade, as mulheres têm uma média de mais de US$ 31.000 em dívidas estudantis, o que se traduz em um pagamento mensal de US$ 307. Isso se torna ainda mais desafiador, pois as mulheres gastam, em média, mais de US$ 1.300 mensais em habitação e despesas de carro, além de US$ 520 em despesas com cuidados infantis.

Quais são as limitações das medidas de Biden para aliviar a dívida estudantil nos EUA?

O presidente Joe Biden tem enfrentado o desafio da dívida estudantil com uma série de medidas direcionadas, já que seus planos iniciais de cancelar amplamente até US$ 20.000 em dívidas estudantis foram barrados pela Suprema Corte dos Estados Unidos. O governo Biden prometeu encontrar um novo caminho para o alívio dentro dos limites legais estabelecidos pelo tribunal, enquanto utiliza programas existentes para aliviar as dívidas de dezenas de milhares de americanos elegíveis.

Uma das medidas anunciadas em 4 de outubro foi o cancelamento da dívida de 125.000 mutuários, no valor total de US$ 9 bilhões, por meio de três programas existentes. Isso representa, no entanto, apenas uma fração dos mutuários elegíveis sob o plano inicial de Biden e uma pequena parcela da dívida total de estudantes do país, que é de US$ 1,7 trilhão.

Além disso, o governo introduziu um novo plano de pagamento chamado Saving on a Valuable Education (SAVE), que promete reduzir as mensalidades e automaticamente inscrever certos mutuários elegíveis que ficaram para trás nos pagamentos, evitando a inadimplência. Já atraiu mais de 4 milhões de pessoas.

Outra ação importante foi o Departamento de Educação revisar um curso de ação para alívio em massa por meio de um processo de regulamentação sob a Lei de Educação Superior, que envolverá audiências públicas, meses de negociações com partes interessadas e potenciais processos judiciais.

P20230607AS-0910 | President Joe Biden signs a veto for H.J.… | Flickr(Arquivo) Presidente Biden assina um veto à HJ Res. 45, resolução que desaprovaria a norma do Departamento de Educação relativa a “Isenções e Modificações de Empréstimos Federais para Estudantes”, em 7 jun. 2023, no Salão Oval da Casa Branca, em Washington, D.C. (Crédito: Casa Branca/Adam Schultz)

No entanto, apesar desses esforços, a crise da dívida estudantil persiste, e as medidas de alívio até agora adotadas representam apenas uma pequena parcela das dívidas. Defensores do cancelamento de dívidas argumentam que mais precisa ser feito e de forma mais rápida. A dívida estudantil está sufocando milhões de americanos, impedindo-os de alcançar seus sonhos e dificultando seu futuro financeiro.

O que mais pode ser feito para aliviar a dívida estudantil nos EUA?

Ficou claro que a dívida estudantil é um fardo para muitos graduados, afetando sua capacidade de comprar uma casa e de planejar um futuro financeiro, além de causar estresse emocional significativo. Essa crise também contribui, conforme exposto, para a desigualdade social e econômica nos Estados Unidos, com estudantes negros enfrentando uma carga desproporcional de dívidas, devido à disparidade na riqueza racial.

As medidas adotadas até o momento, como o cancelamento limitado de dívidas e a introdução de novos planos de pagamento, são passos na direção certa, mas permanecem insuficientes diante da enormidade do problema. É fundamental reconhecer que a educação superior de qualidade deve ser acessível a todos os americanos, sem a ameaça de dívidas esmagadoras.

Os próximos passos devem incluir uma abordagem mais abrangente para resolver a crise da dívida estudantil. Isso pode envolver o cancelamento significativo de dívidas, especialmente para aqueles que estão sobrecarregados financeiramente, e um compromisso sério com a educação pública acessível. A história demonstra que soluções audaciosas são necessárias para enfrentar desafios sistêmicos, e a crise da dívida estudantil é um desses desafios.

Além disso, é importante que o governo aborde as questões estruturais subjacentes que permitiram que essa crise se desenvolvesse, incluindo o aumento descontrolado das mensalidades universitárias e a influência financeira no sistema educacional. Os interesses financeiros que se beneficiaram da dívida estudantil em grande escala devem ser responsabilizados.

Em última análise, a crise da dívida estudantil é uma questão de justiça social e econômica que exige uma resposta significativa e de longo prazo. Os Estados Unidos precisam se comprometer a fornecer uma educação de qualidade para todos os seus cidadãos, independentemente de sua origem socioeconômica, e aliviar o fardo das dívidas que têm impedido tantos de alcançar seus sonhos. Só então a sociedade como um todo poderá prosperar, com oportunidades verdadeiramente iguais para todos os seus membros.

 

* Leonardo Martins de Assis é graduando do curso de Relações Internacionais da Unesp e pesquisadores do Latino Observatory, sob coordenação e orientação de Marcos Cordeiro Pires e Thaís Lacerda. Contato: lm.assis@unesp.br.

** Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Contato: tatianat19@hotmail.com. Primeira versão recebida em 18 out. 2023. Este Informe OPEU não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

*** Para mais informações e outras solicitações, favor entrar em contato com a assessora de Imprensa do OPEU e do INCT-INEU, editora das Newsletters OPEU e Diálogos INEU e editora de conteúdo audiovisual: Tatiana Carlotti, tcarlotti@gmail.com.

 

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