América Latina

As disputas entre Estados Unidos e China e América Latina

Crédito: VOA

Por Marcos Cordeiro Pires, para NECAT* [Republicação]

A competição entre Estados Unidos e China é o principal acontecimento das Relações Internacionais do século XXI. Ela se desenrola nos campos político, comercial, financeiro, tecnológico e militar, particularmente após o lançamento da iniciativa “Pivô para a Ásia”, durante o governo de Barack Obama, em 2011, quando o governo de Washington passou a priorizar a região do Indo-Pacífico como o principal palco da competição estratégica deste século. Desde então, a rivalidade entre ambos os países está se intensificando, principalmente por conta das ações realizadas pelos Estados Unidos.

Nas últimas décadas, a presença chinesa se ampliou em diversas partes do mundo por conta da força centrípeta de seu comércio internacional, pelos grandes avanços nos setores de alta tecnologia, pela internacionalização de suas empresas e também pelos investimentos produtivos associados à Iniciativa Belt and Road (BRI). Em contrapartida, o governo dos Estados Unidos, buscando conter o desenvolvimento chinês, organizou uma série de estratégias como a elevação de tarifas alfandegárias (que num primeiro momento alvejaram os setores de alta tecnologia priorizados pela iniciativa “Made in China 2025”), imposição de sanções e embargos às empresas chinesas de alta tecnologia, além de anunciar políticas industriais domésticas para viabilizar o desacoplamento econômico de empresas estadunidenses das cadeias produtivas da Ásia.

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Logo da iniciativa ‘Made in China’ (Fonte: Site oficial)

Esta situação assume especial relevância na América Latina e Caribe (ALC), tradicional área de influência dos Estados Unidos e sua periferia imediata, e onde a presença da China tem crescido fortemente nos últimos 20 anos. O país asiático se converteu num importante parceiro comercial da América Latina e Caribe, sendo o principal sócio comercial do Brasil, Argentina, Chile e Peru. Também firmou tratados de livre-comércio com o Chile, Costa Rica, Peru e Equador. Atualmente, 21 países da ALC firmaram Memorandos de Entendimento (MoU) de adesão à Iniciativa Belt and Road. Sob esta rubrica, obras de infraestrutura como ferrovias, portos, rodovias e hidrelétricas se espalharam pelo subcontinente.

Diante do aumento da interação da China com a ALC, os Estados Unidos estão pressionando os governos da região para se afastarem da China, tal como se constatou com o tema da presença da Huawei na estrutura de telecomunicações de 5G ou, mais recentemente, nas pressões para que a Argentina não construa uma central nuclear com financiamento e tecnologias chinesas. Ao mesmo tempo, o governo de Joe Biden acena com a criação de oportunidades econômicas por meio da “Parceria das Américas para a Prosperidade Econômica”, investimentos no âmbito da estratégia de “nearshoring” (deslocamento de cadeias da Ásia para sua vizinhança) e pela oferta de financiamentos por meio da Development Finance Corporation (DFC), especificamente para rivalizar com a China no financiamento do setor de infraestrutura.

Esta rivalidade entre Estados Unidos e China cria uma situação constrangedora para os países da ALC. Apesar da longa dependência política, econômica, militar e cultural com relação aos Estados Unidos, a região também criou uma forte dependência econômica com a China, o que torna a desacoplagem com o governo de Pequim extremamente indesejável e custosa, pois os EUA não podem bancar alternativas viáveis em termos de comércio, investimentos e tecnologia no nível atual oferecido pelo governo e as empresas chinesas.

O exemplo brasileiro é bastante significativo. De acordo com dados do COMEXSTAT, as exportações totais de soja renderam 46,5 bilhões de dólares em 2022. A China respondeu por mais de 31,8 bilhões de dólares, ou seja, mais de 68% do total, uma alta de 17% sobre 2021. Em seguida vem o petróleo, cujo montante foi de 42,5 bilhões de dólares, dos quais 16,5 bilhões de dólares vieram da China. O terceiro produto mais exportado pelo país foi o minério de ferro e, mais uma vez, os chineses foram responsáveis por 63% das receitas totais de 28,9 bilhões de dólares. Também em 2022, mais da metade da exportação de carne bovina do Brasil foi direcionada à China, com a receita de aproximadamente 8 bilhões de dólares, de um total de aproximadamente 13 bilhões de dólares. A China também é um mercado muito importante as exportações de celulose, milho, algodão e carne suína.

Note-se que, nos setores em que o Brasil mais exporta para a China, os estadunidenses também são fortes competidores no mercado internacional. Em caso de o Brasil tomar lado dos Estados Unidos frente ao acirramento das rivalidades, os exportadores locais não teriam como escoar a produção dos setores em que o país tem maior competitividade internacional. Nessa eventualidade, nem os EUA ou qualquer outro país do mundo teriam condições de suplantar a demanda chinesa.

Apesar de esta hipótese fazer parte de cenários prospectivos, vivemos uma situação muito distinta da Guerra Fria entre Estados Unidos e União Soviética em que o Brasil e a América Latina tomaram parte da aliança ocidental. É preciso considerar que a opção política estava em conformidade com as opções econômicas. Durante o período de 1945 a 1991, as economias da URSS e dos demais países do bloco socialista estavam praticamente apartadas da economia capitalista. Havia poucos pontos de intersecção entre o Ocidente e o Oriente Europeu. Naquele momento, os Estados Unidos se tornaram os principais provedores de empréstimos, de mercados e de tecnologias aos países do bloco capitalista, incluindo as nações latino-americanas. O alinhamento, para além de ser uma opção ideológica por parte das elites locais, era baseado em interesses econômicos concretos. Atualmente, por conta da globalização econômica e a consequente transferência de extensas cadeias produtivas para a Ásia, a China se tornou um parceiro econômico e comercial incontornável, tanto para os Estados Unidos quanto para o Brasil e demais países da região.

Diante dessa complexidade, seria o caso de se perguntar como a América Latina, e o Brasil, em particular, poderiam se posicionar em meio a este ambiente competitivo que traz de volta a bipolaridade da época da Guerra Fria. Haveria espaço para a América Latina se manter não alinhada frente à competição entre Estados Unidos e China? Os Estados Unidos estariam dispostos (ou teriam condições) de oferecer à América Latina os mesmos ativos hoje oferecidos pela China, como mercados e investimentos?

Antes de tudo, é importante destacar que a contenção da China se tornou o único consenso possível entre os partidos Democrata e Republicano. Frente a isso, a diplomacia dos Estados Unidos tem se esforçado por afastar a China do chamado “Hemisfério Ocidental” e de outros países sob sua influência, como a Europa, a Austrália, a Índia e o Japão. Nesse aspecto, o governo de Joe Biden não recuou um milímetro na política iniciada por Donald Trump de pressionar o governo de Pequim. Pelo contrário, ele aprofundou as sanções às empresas e autoridades chinesas, além de criar regramentos para impedir que outros países forneçam equipamentos e conhecimentos necessários para a produção de semicondutores de última geração. Chama atenção a notícia de que a empresa taiwanesa TCSM, a maior produtora do mundo de semicondutores avançados, está construindo uma nova planta em Phoenix, Arizona, com investimentos da ordem de 40 bilhões de dólares, uma forma de garantir o suprimento de microchips ao país mesmo na eventualidade de um conflito no Estreito de Taiwan.

President Trump's Trip to Asia | President Donald J. Trump p… | Flickr(Arquivo) O então presidente dos EUA, Donald Trump, e seu homólogo chinês, Xi Jinping, na cúpula da APEC, em Da Nang, Vietnã, em 11 nov. 2017 (Crédito: Casa Branca)

Especificamente no que tange à América Latina, durante o governo Trump, os EUA restabeleceram a chamada Doutrina Monroe, que supostamente havia sido abandonada em 2013 pelo governo Obama. Em 1º de fevereiro de 2018, o então secretário de Estado de Trump, Rex Tillerson, evocava os princípios da Doutrina Monroe para advertir a América Latina sobre a influência da China em um discurso na Universidade do Texas, argumentando que “a América Latina não precisa de novas potências imperiais que buscam apenas beneficiar seu próprio povo”. Em setembro de 2018, durante discurso na seção de abertura da Assembleia Geral da ONU, em Nova York, Donald Trump retomava os princípios da Doutrina Monroe como política formal dos EUA e rejeitou a suposta interferência de nações estrangeiras no hemisfério ocidental e nos assuntos internos de seu país. Era uma alusão direta à China e à Rússia.

Do ponto de vista militar, é interessante notar a veemência com a qual os chefes militares do USSOUTHCOM, como o almirante Craig Faller, que deixou o comando em 2021, e a general Laura Richardson, que está à frente das tropas desde então, criticam a presença da China na região, especificamente por conta dos investimentos em infraestrutura, ao temer o uso militar de obras civis.

Devemos observar atentamente a pressão exercida por Washington sobre a Argentina, especificamente para bloquear sua parceria com a China para a construção do terceiro reator da Usina Nuclear de Atucha. Entre abril e maio deste ano, o subsecretário de Energia, o chefe da Agência de Energia Atômica, a comandante do SOUTHCOM e o subsecretário de Estado visitaram a Argentina. No contexto em que a Argentina enfrenta dificuldades para renegociar sua dívida junto ao FMI, o poder de coerção dos Estados Unidos pode ser acionado, forçando o governo de Buenos Aires a rever suas escolhas. É digno de nota que o governo de Washington tem poder de veto nas decisões da Instituição, e a renegociação da dívida poderia ser a cenoura que oculta o porrete. O caso da Argentina é significativo, pois elucida as dificuldades que podem ser enfrentadas pelos países da região no que tange à rivalidade entre as grandes potências.

Dentro desse quadro, seria factível perguntar se o governo dos Estados Unidos poderia bancar a proposta de financiamento chinês para o projeto de Atucha 3 que está orçado em 8 bilhões de dólares, ou se ainda existem fundos disponibilizados pelo governo de Washington para investir em portos, hidrelétricas, autoestradas, aeroportos, ferrovias etc. em países em desenvolvimento.

Para responder à pergunta, vale a pena considerar a criação de uma agência de financiamento ao desenvolvimento. Em 2018, por iniciativa bipartidária, o Congresso dos Estados Unidos aprovou o BUILD Act, a lei que criou um fundo de investimentos que pudesse competir com os financiamentos chineses nos países em desenvolvimento. Um ano depois foi estruturada a U.S. International Development Finance Corporation (DFC), que reorganizou as atividades da Overseas Private Investment Corporation (OPIC) e da United States Agency for International Development (USAID), para financiar projetos de investimentos, inclusive com a participação direta da agência nos projetos por ela apoiados.

Entretanto, quando se visita o site da DFC, podemos constatar que o aporte de recursos aos investimentos em infraestrutura no Hemisfério Ocidental é pouco significativo se comparado com o volume de investimentos chineses na região, como a construção de linhas de transmissão no Brasil, ferrovias na Argentina, pontes no Panamá, porto em El Salvador, hidrelétricas no Equador, ou plantas de energia solar  no Brasil. Veja-se abaixo o fac-símile da página web da DFC, acessada em 2 de julho de 2023:

Uma pesquisa mais cuidadosa na lista de projetos ativos, desde 2019, ano da criação da DFC, mostra que os maiores aportes de recursos foram destinados para bancos comerciais da região, como o Banamex, o Itaú Unibanco, ou BTG, além de um empréstimo para a reestruturação da dívida pública de Belize. Não se encontra nada que rivalize o montante de recursos já mencionado para a construção e Atucha 3, ou de outros projetos da Iniciativa Belt and Road na região.

Não se pode esperar uma mudança súbita na capacidade de os Estados Unidos fazerem frente aos ativos hoje aportados pela China. A atual conformação política que polariza democratas e republicanos tende a paralisar o processo decisório do país, seja para avançar na agenda interna, seja para reestruturar sua atuação externa para além da coação política e militar. Criou-se uma trincheira partidária em torno do orçamento, parecendo ser muito distante a construção de um acordo no Congresso para elevar a ajuda internacional e o volume de recursos para concorrer com a Iniciativa Belt and Road. A criação de um novo Plano Marshall parece estar muito distante do horizonte político do país.

Concluindo nossa reflexão, poderíamos tentar responder às perguntas que formulamos anteriormente. Em primeiro lugar, o interesse do Brasil e dos países da América Latina passa por evitar a tomada de posição nas disputas hegemônicas. Se há, de um lado, uma forte vinculação política, econômica e militar com Estados Unidos, de outro está a sobrevivência dos setores mais dinâmicos da economia vinculados à exportação alimentos, energia e minerais para a China.

Por conta disso, o Brasil e os países da América Latina e Caribe devem ter clareza de que seus interesses não se vinculam aos interesses imediatos dos Estados Unidos. Precisam construir uma dinâmica interna para salvaguardar seus interesses, não se indispor com o seu principal cliente e se posicionar de forma autônoma para aproveitar as oportunidades criadas pelo ambiente internacional.

A adoção de uma posição mais autônoma dos países da região passa necessariamente por uma maior integração política e econômica regional, tanto para dar maior robustez aos interesses da América Latina, como também para potencializar sua presença em nível mundial, não apenas frente a China e Estados Unidos, mas também com a Europa, Rússia, Índia, África e ASEAN. Nesse sentido, a liderança do Brasil é essencial.

 

Marcos Cordeiro Pires é doutor em História Econômica (USP). Livre-Docente em Economia Política Internacional (Unesp). Professor do curso de Relações Internacionais (Unesp-Marília). Coordenador do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais da Unesp (IEEI). Membro do INCT-INEU. Docente dos Programas de Pós-Graduação em Ciências Sociais (Marília) e de Relações Internacionais “San Tiago Dantas” (Unesp-PUC-SP-Unicamp). Também é coordenador do Latino Observatory, junto com a pesquisadora Thais Caroline Lacerda. Contato: marcos.cordeiro@unesp.br.

** Publicado originalmente no site do Núcleo de Estudos de Economia Catarinense (NECAT), em 5 jul. 2023. Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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