China e Rússia

Geopolítica da espionagem e vazamento de documentos: o caso dos EUA na Guerra da Ucrânia

Documento sigiloso em mesa no Salão Oval da Casa Branca, em 5 out. 2009 (Crédito: Casa Branca/Pete Souza)

Por Carla Morena e Yasmim Reis*

No início de abril, documentos confidenciais do Departamento da Defesa (DoD) e de organismos de Inteligência dos Estados Unidos vieram a público. A trajetória desses documentos é, sem dúvida, peculiar. Alguns deles começaram a circular em março no Discord, uma plataforma de comunicação on-line voltada para a interação social, que permite troca de mensagens, chamadas de voz e videoconferências. O grupo privado era composto por, aproximadamente, 24 membros, unidos por interesses comuns: armas, equipamentos militares e fé.

Os documentos, antes divulgados em um servidor privado, surgiram inesperadamente em um popular servidor do jogo de computador Minecraft, dedicado a um youtuber filipino. A partir desse momento, o percurso dos documentos se tornou incerto, já que eles também começaram a aparecer no Telegram, uma plataforma de comunicação semelhante ao WhatsApp; no 4chan, um fórum para postagens anônimas; e até mesmo no Twitter.

Segundo uma reportagem da emissora Deutsche Welle (DW), os documentos, conforme mencionado acima, tiveram origem no Departamento da Defesa e também envolvem agências de Inteligência dos Estados Unidos, como a CIA e a Agência Nacional de Inteligência Geoespacial (NGA, na sigla em inglês). Em outras palavras, os documentos confidenciais não apenas revelam os métodos, pelos quais os Estados Unidos coletam informações de Inteligência, mas também a visão do país sobre diversos eventos de importância geoestratégica.

Os EUA e a Guerra na Ucrânia

Chris Meagher - Assistant to the Secretary of Defense for Public Affairs -  United States Department of Defense | LinkedIn

Chris Meagher (Fonte: LinkedIn)

O jornal The Washington Post publicou um breve resumo do conteúdo encontrado nos papéis vazados. Entre as informações presentes nos mais de 300 documentos, um tema de grande relevância é a Guerra na Ucrânia. As informações foram desde mapas das regiões de Bakhmut e Kharkiv até detalhes sobre o envio de munição dos Estados Unidos para a Ucrânia.

Não é novidade que a guerra em curso não apenas atende aos interesses nacionais dos Estados Unidos do ponto de vista geoeconômico, por meio do lucro indireto obtido com a venda de armas e de Gás Natural Liquefeito (GNL) para a Europa, mas também do ponto de vista geopolítico, ao limitar, parcialmente, a expansão na Europa do projeto chinês Iniciativa do Cinturão e Rota (Belt and Road Initiative), que depende da cooperação russa. As informações contidas nos documentos sobre as forças de combate ucranianas, as estratégias russas e as ações do Grupo Wagner — uma organização paramilitar de origem russa — oferecem um panorama do atual cenário do conflito. A disseminação dos documentos em várias redes sociais levanta, contudo, questionamentos sobre a autenticidade do conteúdo, uma vez que as versões originais se perderam após a exclusão dos servidores onde foram inicialmente compartilhadas.

Chris Meagher, assistente do secretário de Defesa para Assuntos Públicos, disse em entrevista que “algumas dessas imagens parecem ter sido alteradas. Temos estado em contato direto com a Casa Branca e com parceiros sobre essa questão”. Mykhailo Podolyak, conselheiro do chefe do Gabinete do presidente da Ucrânia, postou em seu Telegram suspeitas de que o governo russo estaria por trás do vazamento dos documentos. Na visão de Podolyak, esses documentos teriam sido forjados para: (I) desviar atenção dos preparativos da próxima etapa da guerra; (II) criar suspeitas entre parceiros; (III) criar divisões em processos internos.

Essa não é, porém, uma análise consensual. Embora o presidente Joe Biden não tenha expressado preocupação com o vazamento, outras autoridades têm uma visão diferente, preferindo não minimizar o ocorrido. Mike Gallagher, representante (deputado) republicano de Wisconsin (R-WI) e membro do Comitê de Inteligência da Câmara, afirma que “o vazamento dessa quantidade de documentos parece ser um problema significativo de contrainteligência. Estamos lidando com informações que têm potencial para prejudicar nossa segurança nacional e os esforços da CIA na Europa e no mundo todo”.

Gallagher Urges USOPC Chair to Keep Olympians Safe | Congressman Mike  GallagherRep. Mike Gallagher (R-WI), em Washington, D.C., em 3 fev. 2022 (Crédito: Kaz Sasahara/Câmara de Representantes)

Conjecturas à parte sobre a veracidade das informações, é inegável que o vazamento representa uma falha significativa de Inteligência por parte dos Estados Unidos. Como destacam Filipe Figueiredo e Matias Pinto, mais importantes do que informações sobre baixas e movimentações no conflito são os detalhes referentes às fontes que forneceram tais informações. Sejam elas provenientes de SIGINT (interceptação de sinais de comunicação), ou HUMINT (informações obtidas por meio de seres humanos), tanto a Rússia quanto o mundo agora têm conhecimento das vulnerabilidades em seu próprio sistema de Inteligência.

Tentáculos de vigilância norte-americanos: um ponto de inflexão na defesa pela democracia

Não se restringindo à Rússia, parte dos documentos apenas relembra o que Edward Snowden expôs em 2013: os Estados Unidos são uma superpotência que não mede esforços no que diz respeito à espionagem de países hostis, ou aliados. Aqui, vale frisar que esse é um recurso que grandes potências têm se apropriado como mecanismo de proteção preventiva, portanto, não é uma ferramenta exclusiva do dos EUA. A diferença se concentra na capacidade de recursos de que cada nação dispõe. Nesse sentido, sublinha-se que a espionagem é um componente presente na estrutura do poder militar norte-americano, dado que pode ser caracterizado como uma função da Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos (NSA, na sigla em inglês).

Espionagem: componente presente na estrutura do poder militar americano, como uma função da NSA (Crédito: @kjpargeter/Freepik)

A espionagem como ferramenta de Inteligência e da política de segurança e defesa norte-americana data de tempos remotos. Entretanto, a ideia de uma “geopolítica da espionagem” se tornou mais evidente durante o governo Barack Obama (2009-2017), em razão do impacto do caso Snowden no âmbito internacional. Esse caso se refere a informações confidenciais do governo norte-americano tornadas públicas em 2013, por meio da divulgação de Edward Snowden. Dessa forma, identifica-se que a divulgação de documentos confidenciais se acentuou nos últimos anos, ganhando maior ênfase na Segurança Nacional dos Estados Unidos. Um caso similar aconteceu no presente ano, diante dos dois principais desafios que os Estados Unidos enfrentam: a Guerra na Ucrânia e a competição estratégica com a China.

Além disso, nota-se que o problema da vigilância tem persistido como uma questão estrutural dentro do sistema de Inteligência norte-americano, já que a divulgação dos documentos, nos dois casos aqui comparados, veio de funcionários da própria NSA.

Anteriormente ao período da Guerra Fria, os Estados Unidos consolidaram programas de vigilância entre as comunicações no âmbito global. Alianças foram formuladas estrategicamente pelos Estados Unidos, a fim de estruturar um sistema que possibilitasse sua atuação global por meio do acesso de informações coletadas com base no sistema de monitoramento. Nessa perspectiva,

Desde 1948, o acordo UK-US é o cerne dos programas de vigilância das comunicações mundiais. Nesse tratado, os Estados Unidos são chamados de “primeira parte” (first party), sendo a NSA especificamente reconhecida como “parte principal” (dominant party). Reino Unido, Canadá, Austrália e Nova Zelândia representam as “partes secundárias” (second parties). Todos esses países – além de se comprometerem a garantir o monitoramento das comunicações e, em determinada região, compartilhar infraestrutura com os Estados Unidos e realizar operações conjuntas com eles – podem acessar as informações coletadas em conformidade com os procedimentos estabelecidos por Washington.

Dessa forma, observa-se que os Estados Unidos tentam estabelecer “tentáculos” com o objetivo de manutenção de seu protagonismo na política internacional. Conforme citado anteriormente, não foi diferente do que aconteceu no caso da Guerra na Ucrânia. Em outras palavras, os Estados Unidos se fazem presentes nos conflitos, tanto dos seus aliados, ou não, como forma de manutenção da sua hegemonia, com base em sua estratégia de segurança. A título de exemplo desse argumento, pode-se considerar o caso da Invasão ao Iraque em 2003.

A segunda guerra fria - Geopolítica e dimensão estratégica dos Estados  Unidos – Das rebeliões na Eurásia à África do Norte e Oriente Médio by Luiz  Alberto Moniz Bandeira | GoodreadsO Iraque não era uma ameaça direta ao governo norte-americano, ou a seus aliados, sendo a estratégia dos EUA no Iraque a preconização de sua segurança energética, que é um dos pilares da segurança nacional. De acordo com Moniz Bandeira, em seu livro A Segunda Guerra Fria: geopolítica e dimensão estratégica dos Estados Unidos (Editora Civilização Brasileira, 2013, p. 139), “o Iraque não ameaçava os Estados Unidos nem qualquer país do Ocidente. Ameaça, sim, as companhias de petróleo americanas e britânicas, dado que Saddam Hussein havia firmado contratos com a grande empresa russa”.

Com efeito, na construção da narrativa norte-americana sobre o Iraque, houve a tentativa de justificativa da Guerra por meio do acionamento de significados de que se tratava de um país inimigo da segurança nacional norte-americana. Nessa perspectiva, a China hoje é vista da mesma maneira pelos Estados Unidos, que a colocam como uma potência inimiga no sistema internacional. Visto isso, os recentes casos dos balões chineses identificados pelos Estados Unidos e do vazamento dos documentos confidenciais sobre a Guerra na Ucrânia levantam a questão da problemática que a geopolítica da espionagem produz para o sistema internacional.

Posição chinesa na competição estratégica diante dos EUA: o retorno da espionagem como ferramenta diplomática

A disputa geopolítica-tecnológica-comercial entre Estados Unidos e China é o elemento delineador da política internacional do século XXI. Destaca-se ainda que a relação sino-americana teve, durante o governo Richard Nixon (1969-1973), a “Diplomacia Triangular” conduzida por Henry Kissinger como a principal estratégia norte-americana. Diante disso, os Estados Unidos iniciaram um processo de reaproximação com a China.

‘A viagem que mudou o mundo’, webinar promovido pelo National Committee on U.S.-China Relations, na presença de Kissinger, em 8 jul. 2021

Observa-se, porém, que a retórica em relação à China foi constituída por meio do imaginário do “dragão oriental” e da “nação milenar”. Assim, nota-se uma narrativa de certo modo controversa em sua construção. Apesar disso, as relações foram desenvolvidas de maneira amistosa. Essa amistosidade se rompeu com o avanço econômico chinês no cenário internacional. Assim, o governo Trump (2017-2021) foi um catalisador para o acirramento das relações sino-americanas, contribuindo para a construção do cenário de competição estratégica existente nos dias de hoje.

Sem diferir da estratégia de espionagem norte-americana, a China passou a utilizar esse mecanismo como forma de defesa. O episódio recente que evidenciou uma ameaça aos Estados Unidos foi o suposto “balão espião chinês” que sobrevoou o território estadunidense. Complementarmente, é válido ressaltar que a estratégia do uso da observância tem sido utilizada desde o século XIX, a exemplo da Guerra Civil Americana (1861-1865) e da Guerra Franco-Prussiana (1870-1871).

O caso do balão espião preocupou a Segurança Nacional e a Defesa norte-americanas. Não bastasse o retorno da preocupação com essa temática perante o cenário competitivo entre as duas potências, documentos confidenciais da inteligência dos Estados Unidos vazaram, o que repercutiu internamente na China.

Nesse sentido, o porta-voz do governo chinês alegou que os Estados Unidos estão profundamente ligados à crise na Ucrânia. Para mais, os documentos revelados sinalizaram algumas interpretações de possíveis atuações da China no atual contexto internacional: (I) o envio de armas da China para a Rússia; (II) o apoio da China na construção de infraestruturas navais na Nicarágua; (III) a preocupação com o novo navio de guerra chinês e a possibilidade de mapeamento militar e estratégico pela China.

Em síntese, o vazamento dos documentos de Inteligência evidenciou que os Estados Unidos permanecem com táticas tão antigas quanto sua fundação. Além disso, transparece a não ocultação da busca da manutenção do seu poderio hegemônico diante dos novos desafios que o século apresenta em relação à estabilidade na balança de poder em sua disputa com a China.

 

* Carla Morena é mestranda no Programa de Pós-Graduação em Ciências Militares (PPGCM) pelo Instituto Meira Mattos da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército Brasileiro (IMM-ECEME), pesquisadora colaboradora do OPEU e jovem  pesquisadora voluntária na área de Segurança Internacional e Regional no Módulo Jean Monnet do Instituto Brasil-União Europeia (FECAP). Contato: carlamorena.gsilva@gmail.com.

* Yasmim Reis é mestranda no Programa de Pós-Graduação em Segurança Internacional e Defesa da Escola Superior de Guerra (PPGSID/ESG), bolsista CAPES, pesquisadora colaboradora no OPEU e Vice-líder e assistente de pesquisa voluntária no Laboratório de Simulações e Cenários na linha de pesquisa de Biodefesa e Segurança Alimentar (LSC/EGN). Contato: reisabril@gmail.com.

** Primeira revisão: Simone Gondim, jornalista formada pela Universidade Federal Fluminense (UFF), com mais de 20 anos de experiência profissional, entre redações, assessoria de imprensa e produção de conteúdo para Internet e redes sociais. Contato: simone.gondim.jornalista@gmail.com. Segunda revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 9 abr. 2023. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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