Segurança e Defesa

A adesão da Finlândia à OTAN à luz da competição geopolítica russo-americana

Primeiro-ministro finlandês, Pekka Haavisto (à esq.); secretário-geral da OTAN, Jens, Stoltenberg (centro); secretário de Estado americano, Antony Blinken, na cerimônia de adesão da Finlândia à aliança militar transatlântica, na sede da organização, em Bruxelas, em 4 abr. 2023 (Crédito: OTAN)

Por Augusto W. M. Teixeira Júnior*

No dia 4 de abril de 2023, a Finlândia se juntou oficialmente à Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) como o 31º país-membro da Aliança. No futuro, esta data poderá ser vista mais como um marco na história da competição estratégica entre Estados Unidos e Rússia do que como um feito na história do país nórdico.

Como resultado da sua luta por independência política e acomodação de interesses com as potências vizinhas, a Finlândia desenvolveu uma sólida tradição de neutralidade. Eventos como a “guerra de continuação” e sua subsequente resolução tornaram a Finlândia em um clássico buffer state, ou Estado-tampão, cuja função de amortecimento permitiria funcionar como “algodão entre os cristais”.

Mesmo considerando-se que a Finlândia, apesar de neutra, exercia expressiva cooperação com a OTAN, os eventos de 24 de fevereiro de 2022 podem ser considerados como uma conjuntura crítica que ajuda a explicar a mudança de posição do país em relação ao equilíbrio de poder europeu. Para compreender como isto foi possível e como parte desses resultados é produto de dinâmicas sistêmicas da política entre grandes potências, faz-se necessário trazer um breve contexto histórico.

Contenção, contracontenção e uso da força militar na geopolítica europeia

O referido contexto histórico é aqui sintetizado em três eventos. Primeiro, o discurso de Putin na Conferência de Segurança de Munique em 2007 explicitou o entendimento de Moscou sobre uma nova ordem multipolar, na qual a Rússia deveria ser protagonista. Em direção oposta, a declaração final da Cúpula de Bucareste em 2008 acolheu as aspirações de adesão à OTAN manifestadas pela Ucrânia e pela Geórgia, mesmo ano em que se deu a guerra russo-georgiana, encerrando, factualmente, o processo de adesão desta última à aliança militar. Terceiro ato, a anexação da Crimeia representou, até aquele momento, o ápice da estratégia de contracontenção de Moscou, somada à eclosão da guerra civil ucraniana.

Conforme denotam os três eventos acima, a disputa pela reorganização do espaço geopolítico pós-soviético escalou de forma gradual, alicerçado em preferências historicamente enraizadas. Na perspectiva americana, ao sustentar a “política de portas abertas” da OTAN no contexto pós-Guerra Fria, conscientemente os Estados Unidos aceitaram os riscos de uma reação de Moscou como resposta a sua retração geopolítica na Europa.

Na perspectiva russa, os eventos de 2008 (Guerra da Geórgia), 2014 (Anexação da Crimeia e Guerra por Procuração na Ucrânia) e 2022 (Invasão da Ucrânia) sinalizam uma escalada no conflito geopolítico, em que o uso da força militar retorna como um instrumento político do Estado na região. Observe-se que este expediente já havia sido adotado pelos Estados Unidos e pela OTAN, quando da intervenção na Guerra do Kosovo em 1999. É curioso que a retórica russa, ao justificar a invasão na Ucrânia, espelhe-se no episódio do Kosovo, apoiando-se, em particular, em uma justificativa humanitária para defender o emprego da força.

もう一つの隣国ジョージアで「ロシア化反対」の大規模デモ(ニューズウィーク日本版) - Yahoo!ニュースGeórgia, Ucrânia e Crimeia no mapa político da região do mar Negro e do mar de Azov (Crédito: istockphoto)

Sob o prisma do antagonismo de vontades russo-americano, o uso da força constitui notável peso na gramática que informa a comunicação desses atores em oposição. E isto se dá para além da dissuasão nuclear, cada vez mais frequente, via proxies, do uso moderado da força indireta como instrumento de coerção. Estes apontamentos sobre o papel do instrumento militar nas relações russo-americanas têm evidente reflexo na competição geopolítica pela reorganização do espaço pós-soviético de norte a sul da fronteira entre Rússia e seus pares europeus. Em razão destes fatores a inclusão da Finlândia como 31º membro da OTAN ganha significados para além de uma decisão soberana de seu povo e governo.

Consciente dos custos humanos da guerra e da invasão, a Finlândia se viu imprensada entre os riscos da neutralidade e aqueles de tomar partido em clara oposição ao seu vizinho. Nessa quadra histórica, a guerra russo-ucraniana consistiu em relevante catalisador na mudança de posição finlandesa. Diante do exposto, cabe a pergunta: como a adesão da Finlândia à OTAN beneficia a estratégia dos Estados Unidos para a região?

Adesão da Finlândia e o Flanco Norte da Aliança

Distinta de países como Ucrânia, ou Geórgia, a Finlândia tem um Estado desenvolvido, com um poder militar considerável para o contexto regional. Desde o início da década, documentos de defesa e segurança do país consideravam a deterioração das condições de segurança na região. Com a anexação da Crimeia e a emergência daquilo que a OTAN denominou de “ameaças híbridas”, a neutralidade finlandesa passou a ser mais questionada domesticamente. Tão relevante quanto, devido a um histórico de cooperação com a Aliança, sua estrutura militar e sistemas de armas terão menos obstáculos e custos em se juntar à estrutura de força da Aliança. Somado a isto, a cooperação militar histórica com Suécia e Noruega tende a trazer importantes benefícios no fortalecimento do flanco norte da Aliança.

A map of Europe highlighting current NATO members, Finland and Sweden, and RussiaMembros da Otan (em verde-claro), mais Finlândia (em verde-escuro) (Fonte: CFR)

Na dimensão geográfica e territorial, a adesão da Finlândia expande em mais de 1.000 quilômetros a fronteira entre Rússia e OTAN. Esse número esconde, no entanto, detalhes relevantes. Apesar da supracitada expansão fronteiriça, o terreno tende a ser fortemente afetado pelo frio, gelo e neve, com possíveis impactos na mobilidade de forças terrestres e na execução de manobras. Nesse ambiente operacional, artilharia de tubo, mísseis e foguetes se tornam ainda mais relevantes.

Embora a entrada da Finlândia exponha importantes cidades russas a uma maior proximidade com sistemas de armas da OTAN, como São Petersburgo, a Rússia aparenta ter realizado o deslocamento de sistemas missílicos para a fronteira finlandesa. Além da sensibilidade de um potencial centro de gravidade populacional, a entrada da Finlândia pode elevar a sensação de risco contra infraestruturas estratégicas russas como aquelas na região (oblast) de Murmansk, com provável efeito sobre o estreito de Kola e instalações militares.

Apesar de contar com uma força militar ativa de aproximadamente 19 mil integrantes, entre Exército, Marinha, Força Aérea, Gendarmeria e Paramilitares, as Forças Armadas do país têm elevada prontidão operacional. Ademais, a Finlândia conta com um contingente de reserva de cerca de 238 mil, cuja parte do efetivo realiza treinamentos anuais. Não obstante diminuto efetivo ativo, o país possui 100 tanques Leopard 2A6, 212 veículos de combate de infantaria, 613 veículos blindados de transporte de pessoal, 682 peças de artilharia e 107 aeronaves de combate.

Neste contexto, a adesão à Aliança poderá ser um incentivo para o seu processo de modernização e de aquisição de defesa, dado o histórico de compra de sistemas de armas americanos e europeus. Além disso, com a entrada do país na Aliança, abre-se para ele o acesso a recursos dessa organização, embora se torne, em contrapartida, a ponta de lança da OTAN no flanco norte.

Significados Geopolíticos da Adesão da Finlândia à OTAN

Embora os dados acima expressem as vantagens para os EUA e a OTAN da adesão de seu 31º membro, o significado deste evento é desnudado sob o prisma da geopolítica. Conforme mencionamos no início do presente Informe, os Estados Unidos se percebem em uma competição entre grandes potências de caráter geopolítico com a Rússia. Não obstante a OTAN ser uma organização formal, dotada de uma miríade de interesses nacionais, às vezes conflitantes (ex. disputa entre a priorização do flanco sul – imigração – versus o flanco leste – Rússia), a Organização é, essencialmente, a materialização de um esforço de contenção geoestratégica.

Assista à cerimônia de adesão da Finlândia à Otan, na sede da organização, em Bruxelas, em 4 abr. 2023

No espírito que lhe deu vida em 1949, a supracitada organização consiste em um mecanismo de balanceamento duro, institucionalizado, nucleado em ao menos três pilares básicos: a expectativa de cumprimento da promessa de segurança coletiva, a dissuasão nuclear e convencional e a tendência de expansão da organização.

Apesar de ser interpretada apenas como uma decisão soberana da Finlândia, a adesão do país à OTAN responde a percepções e a cálculos geopolíticos e estratégicos sobre um contexto de segurança em franca deterioração. A invasão russa à Ucrânia, enquanto oficialmente justificada por Moscou como uma tentativa de interromper a expansão da OTAN para Leste, foi um catalisador para a mudança de postura estratégica da Finlândia. O desafio futuro consiste em compreender três perguntas: 1) como a Finlândia (e posteriormente a Suécia) será inserida na lógica de especialização funcional (estratégica, tática e logística) da Aliança; 2) qual espaço para a neutralidade de países como Áustria e Suíça na Europa; e 3) e como a Rússia reagirá a esta nova onda de expansão da OTAN.

Como conclusão desta breve reflexão, deve-se voltar os olhos para o que este evento significa para a Ucrânia. Se, para os Estados Unidos, a adesão finlandesa à OTAN é um duplo acerto na estratégia de expansão e de minar as condições de competição geopolítica e econômica da Rússia; para a Rússia, a adesão a essa expansão da OTAN consiste na concretização de uma situação clássica do dilema de segurança. Nesse sentido, a guerra da Ucrânia pode ter sua relevância significantemente aumentada para Moscou, como um dos últimos bastiões em que o país pode pleitear construir uma zona de amortecimento entre a OTAN e a porção ocidental do território russo.

Representativo dessa linha de interpretação é a leitura de que a guerra russo-ucraniana é, na verdade, uma luta contra o Ocidente (EUA-OTAN) pela sobrevivência da Rússia. Assim, cabe talvez considerar em que medida é sensato deixar seu inimigo encurralado, ao ponto em que o emprego de armas nucleares se torne uma opção factível entre as opções disponíveis ao Kremlin.

Como consequência destes realinhamentos geopolíticos e militares, a Ucrânia poderá arcar com os custos, diretos e indiretos, do êxito estratégico estadunidense em ampliar sua zona de contenção no Rimland. Apesar de não ser um membro formal da OTAN, a Ucrânia cumpre importante papel na estratégia dos EUA e da Aliança, sendo para a Rússia, talvez, o “Álamo”, no que tange a sua retração geopolítica. Em um jogo cada vez mais quente entre Estados Unidos e Rússia, fatores como “medo”, “honra” e “interesse” não podem ser desconsiderados, quando um dos lados perdedores é nuclearmente armado e tem na força é um componente fulcral do prestígio político e de sobrevivência.

 

* Augusto W. M. Teixeira Júnior é doutor em Ciência Política (UFPE), com estágio de Pós-Doutoral em Ciências Militares (ECEME). Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política e Relações Internacionais (PPGCPRI – UFPB). Pesquisador do INCT-INEU. Coordenador do Grupo de Pesquisa em Estudos Estratégicos e Segurança Internacional (GEESI/UFPB). Autor de Geopolítica: do pensamento clássico aos conflitos contemporâneos (Intersaberes, 2017) e coorganizador de Introdução aos Estudos Estratégicos (Intersaberes, 2020). Bolsista Produtividade em Pesquisa do CNPq. Pesquisador do projeto “Mísseis e Foguetes na Defesa Nacional”, PROCAD-DEFESA 2019. Contato: augustoteixeirajr@gmail.com e @augustotjunior (Twitter).

** Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Recebido em 5 abr. 2023. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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