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EUA baixa o tom sobre Tríplice Fronteira no último ‘Country Reports on Terrorism’

Crédito: Departamento de Estado

Pela primeira vez em mais de duas décadas, relatório não cita diretamente suspeitas de atuação de grupos ativistas no lado brasileiro da fronteira

Por Isabelle C. Somma de Castro* [Documentos]

Em 27 de fevereiro, o Departamento de Estado lançou o Country Reports on Terrorism (CRT) 2021, um relatório publicado anualmente desde 2006 que traz informações sobre ações terroristas, assim como medidas de contraterrorismo fora do território americanos. Esta a primeira vez que a Tríplice Fronteira (TF), dividida com Argentina e Paraguai, não é diretamente citada como envolvida em atividades como financiamento de terrorismo no verbete que trata sobre o Brasil. A comunidade árabe da região vem sendo relacionada a grupos ativistas do Oriente Médio, desde meados da década de 1990, mesmo sem a apresentação de evidências concretas, somente suspeitas e informações nunca confirmadas.

No verbete “Brazil” do CRT 2021, as únicas duas menções são indiretas. Elas relatam ações em andamento que impediriam o financiamento e ataques na TF. A principal delas é o Countering the Financing of Terrorism in South America, programa da American Bar Association que oferece apoio técnico a governos, ao setor financeiro e à sociedade civil no combate ao financiamento de grupos terroristas especificamente na TF. A iniciativa é subsidiada pelo Bureau de Contraterrorismo do Departamento de Estado dos EUA e abrange, ainda, Paraguai e Argentina.

A segunda menção informa que os três países que dividem a TF promovem esforços conjuntos, como trocas de informações e ações de combate a ameaças transnacionais, especialmente por meio do Comando Tripartite.

Em outras edições do CRT, havia reiteradas acusações de uma suposta atuação, no lado brasileiro da fronteira, dos grupos Hizbollah e Hamas, considerados terroristas pelo Departamento de Estado. Além de não repetir as alegações, o texto atual reforça a confiança do governo americano nos mecanismos de contraterrorismo brasileiros e de cooperação bilateral. O texto destaca que, desde as Olimpíadas de 2016, ambos os governos têm cooperado em ações de contraterrorismo. “A Polícia Federal, principal agência de contraterrorismo no Brasil, trabalhou de perto com outros órgãos de combate ao crime dos Estados Unidos e outros países para avaliar e atenuar potenciais ameaças terroristas”, diz o texto.

É possível que a mudança tenha sido provocada pela falta de efetividade das acusações das últimas três décadas contra a Tríplice Fronteira, que sempre careceram de evidências. A própria comunidade local tem-se mostrado aliada das forças de segurança, como confirmam policiais federais entrevistados por esta pesquisadora. O investimento do Estado brasileiro em mecanismos de segurança e operações de fiscalização na região, desde a década de 1990, tornou-a uma das mais vigiadas do Brasil. E, talvez por isso, não faça sentido criminalizar um território, mas observar os fluxos de recursos ilícitos e negócios onde ocorre lavagem de dinheiro. Estes, por sua vez, mostram-se cada vez mais pulverizados.

No verbete sobre o país, o relatório menciona a inclusão de um cidadão estrangeiro, cujo nome e nacionalidade não são revelados, na lista de pessoas sob sanção do governo americano por ter fornecido apoio ao grupo Al Qaeda. Ele chegou ao Brasil em 2015 e vive no estado de São Paulo. Também não é mencionado se há pedido de extradição e quais são as acusações específicas contra o suspeito. Outros dois cidadãos estrangeiros, também incluídos na lista de sancionados divulgada pela embaixada americana no Brasil, não são citados no verbete.

Apesar de haver identificado somente supostos ex-membros da Al Qaeda no Brasil, o foco do CRT continua, no que se refere à associação da TF com o Hizbollah. Na abertura do capítulo Western Hemisphere (“Hemisfério Ocidental”, como os EUA se referem ao continente), que aborda países das Américas e Caribe, o relatório afirma que o grupo “continuou sua longa história de atividade no Hemisfério Ocidental, incluindo o levantamento de fundos por seus apoiadores e financiadores em lugares como a Tríplice Fronteira, onde Argentina, Brasil e Paraguai se encontram”. O mesmo ocorre no verbete Hizbollah, que está no capítulo sobre grupos terroristas.

O CRT 2021 informa que, em 2018, o Brasil prendeu um “financiador” do grupo e o extraditou para o Paraguai. O documento se refere ao comerciante libanês Assad Ahmad Barakat, preso no Brasil, onde reside, por falsidade ideológica. Ele foi extraditado em 2020, a pedido do país vizinho. Barakat foi condenado e recebeu pena de dois anos e meio de prisão no Paraguai. Como já havia cumprido a pena, enquanto aguardava a extradição na Superintendência Regional da Polícia Federal (PF), em Curitiba, acabou sendo deportado de volta para o Brasil.

Paraguai expulsa libanês suposto operador do Hezbollah para o BrasilCrédito: CNN Brasil

Outra questão que se destaca no verbete sobre o Brasil é a menção à “assistência técnica de um terceiro país para o controle de tecnologias sensíveis e investigação de documento de viagem falsos”. Há indicativos de que esse terceiro país seria Israel, pela aproximação e pelo interesse comum na área de segurança. Entre eles, estão as boas relações articuladas entre o governo de Jair Bolsonaro e o do primeiro-ministro Benjamim Netanyahu; os acordos de compra e treinamento feitos com a estatal Elbit, realizados durante o governo do presidente brasileiro; a tentativa de compra de vários softwares de vigilância e controle vendidos por Israel por parte do chamado “gabinete do ódio”; e o interesse israelense no monitoramento da região, devido ao seu embate com o Hizbollah, como demonstraram mensagens vazadas pela plataforma WikiLeaks.

Paraguai e Argentina

A TF continua presente nos verbetes “Paraguay” e “Argentina”, com acusações diretas. No verbete sobre a Argentina, o relatório traz acusações explícitas. “A TF é uma das principais rotas para a entrada na Argentina para falsificação, descaminho, lavagem de dinheiro por meio de comércio multibilionário, e outras operações de contrabando. Além disso, muitas organizações de lavagem de dinheiro na TF têm ligações suspeitas com o Hizbollah”. Tanto o Paraguai como a Argentina consideram o Hizbollah um grupo terrorista desde 2019. Na ocasião, o então presidente Jair Bolsonaro afirmou que faria o mesmo, o que não ocorreu.

Já em relação ao Paraguai, no CRT 2021, foi concedido maior destaque às ações do Exército do Povo Paraguaio (EPP), grupo que é considerado pelas autoridades locais uma organização criminosa. Em relação à TF, o texto faz acusações diretas, descrevendo o país como um lugar atrativo para o financiamento de terrorismo, ao mesmo tempo em que as autoridades são “ineficientes e frequentemente corruptas”. O Departamento de Estado destaca os desafios que o país tem enfrentado para implementar os mecanismos de controle de transações financeiras, principalmente pela ausência de cooperação entre as agências de segurança de fronteira e de aplicação da lei.

O fato de a narrativa continuar presente nos verbetes demonstra que o discurso de securitização da região se mantém mais forte no Paraguai e Argentina do que no Brasil. Uma hipótese para a persistência da narrativa é de que os governos locais são mais receptivos a esse tipo de alegação. Por um lado, a Argentina acusa o grupo libanês de envolvimento nos atentados cometidos contra alvos judaicos em Buenos Aires nos anos de 1990, caso da Associação Mutual Israelita Argentina (AMIA) e promove a alegação de que a operacionalização teria partido dos dois países vizinhos. O Paraguai, por outro, é mais ambíguo sobre a presença de grupos ativistas na região. Nos últimos anos, porém, tem-se engajado em tomar mais medidas de controle e de apoio a discursos e demandas americanas e israelenses. Já o Brasil, durante as administrações de Fernando Henrique Cardoso (1995-2003) e Lula (2003-2010), insistiu em refutar as alegações argentinas e americanas, exatamente pela falta de provas sobre a atuação de terroristas na região.

Fonte: WikiMedia/Creative Commons

A TF chegou a figurar em uma lista de safe havens (“refúgio seguro”) para terroristas dos CRTs incluídos nas edições de 2009 e 2013 (referentes aos anos de 2008 a 2012). Em reiteradas edições, o documento trazia a informação de que os EUA permaneciam preocupados com o “levantamento de fundos” na região por parte de grupos como o Hizbollah e Hamas, mediante atividades ilegais. Ao mesmo tempo em que trazia essas acusações, o Departamento de Estado admitia que não havia “nenhuma informação corroborada” sobre a presença de militantes na região. Na edição de 2014, referente ao ano de 2013, quando a TF foi excluída da lista de refúgios seguros para terroristas, não se apresentou qualquer explicação. A lista inclui, em geral, países como Afeganistão e Somália.

Extremismo étnico e racial

O relatório CRT 2021 deveria ter sido lançado até abril 2022, mas é comum que haja alguns meses de tolerância. Por isso, o atraso de quase um ano sugere que as atividades de contraterrorismo internacional estão perdendo espaço no Departamento de Estado, enquanto o doméstico, principalmente após a invasão do Capitólio em 6 de janeiro de 2021, está entre as prioridades da administração democrata mesmo quando ocorrem no exterior.

Um exemplo disso é o destaque ao agora chamado Racionally or Ethnically Motivated Violent Extremism (REMVE) na edição de 2021. Na edição anterior, o termo usado foi somente White Identity Terrorism (WIT), que passou a ser uma das modalidades incluídas no escopo do REMVE. A lista deste ano inclui dez grupos que atuam em países como Reino Unido, Canadá, Austrália e França. O Brasil foi citado como sendo um dos países onde foi registrada a atuação de grupos do gênero, “o que demonstra o aumento do alcance e da influência global dos adeptos do REMVE”. O caso que inspirou o comentário foi a prisão de quatro neonazistas em Santa Catarina.

Após mais de duas décadas dos ataques de 11 de setembro de 2001, as ameaças terroristas se mostram mais “ideologicamente diversas e geograficamente difusas do que antes”. Além dos desafios internos, são citadas questões como a competição estratégica (especialmente com a China), ameaças de cibersegurança (que têm um relatório próprio, a National Cybersecurity Strategy) e a mudança climática. Por isso, o coordenador em exercício de Contraterrorismo, Timothy A. Betts, , afirma na abertura do documento que “os EUA estão entrando em uma nova era de contraterrorismo, cada vez mais enraizada em diplomacia, capacitação de parceiros e prevenção”. Essa perspectiva se mostra necessária na atual conjuntura americana, que precisa de mais aliados, não somente a fim de coibir ameaças externas, mas também para conter a ascensão chinesa em diversas outras frentes, assim como da extrema direita mundo afora.

 

Isabelle C. Somma de Castro é pesquisadora do Núcleo de Pesquisas em Relações Internacionais (Nupri-USP). Faz parte do Grupo de Pesquisa Tríplice Fronteira e Relações Internacionais (GTF/Unila) e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU). Foi Pós-Doc no Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo e Visiting Scholar no Arnold A. Saltzman Institute of War and Peace Studies, Universidade de Columbia, ambas com bolsa Fapesp. É organizadora, juntamente com Micael Alvino da Silva, do livro Além dos limites: a Tríplice Fronteira nas relações internacionais contemporâneas (Editora Alameda, 2021). Contato: isasomma@hotmail.com.

** Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. 1ª versão recebida em 8 mar. 2023. Este informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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