Brasil

Ordem, ou desordem? EUA, Rússia e o contexto internacional da crise brasileira

Fonte: Rob Dobi/JHM

Estudos e Analises n 19_Abril 2022_Ordem ou Desordem

Por Sebastião Velasco e Cruz*

Nós o sabemos, ou melhor, intuímos. Mas só os historiadores futuros – com seu aplicado labor de garimpo de dados e esforço persistente de interpretação – só os historiadores, repito, poderão revelar em toda sua extensão a verdade deste juízo sumário: estamos vivendo no Brasil um momento de inflexão, uma ruptura profunda que nos projeta em uma realidade nova, ainda indefinida, mas que será, certamente, muito diferente de tudo que podíamos imaginar com base nos esquemas perceptivos decantados, mais ou menos reflexivamente, de nossas leituras e de nossa experiência vivida.

A face obscenamente visível dessa mudança está estampada nas manchetes que nos agridem a cada dia. Ela se expressa na deposição de uma presidenta democraticamente eleita, ao cabo de um processo farsesco, onde a preocupação com a formalidade do procedimento foi superada apenas pela indiferença proclamada em relação à substância da denúncia que o motivou e das provas invocadas para apoiá-la. Ela se mostra também nas medidas adotadas pelo governo ilegítimo que se constituiu com o afastamento de Dilma Rousseff e em seus anunciados projetos. Ela revela sua índole perversa na violência policial desencadeada para silenciar os inconformados e na ação facciosa de agentes públicos, que se aproveitam abusivamente das posições institucionais ocupadas para mover gigantesca operação de guerra política – guerra de aniquilação – sob os tambores da mídia conservadora e os aplausos de parcelas da opinião pública por ela envenenadas.

Estamos vivendo uma mudança de época.

Mesmo carentes dos instrumentos e do material empírico dos historiadores, poderíamos ir além dessa assertiva propositalmente bombástica, buscando no passado próximo e distante da sociedade brasileira os elementos necessários para reconstituir os processos que culminaram na situação em que nos encontramos agora. Não tenho dúvida de que essa tarefa – todo um vasto programa coletivo de trabalho – vai nos ocupar por um longo tempo. Mas, agora, procurarei contribuir para o mesmo fim – a saber: o entendimento mais pleno da natureza da mudança em curso no Brasil – através de uma estratégia indireta, para usar o termo do famoso teórico inglês da guerra, Liddell Hart.

Basil Liddell Hart and the Art of Peace - Engelsberg IdeasBasil Henry Liddell Hart estudando uma situação tática, 1947 (Crédito: Popperfoto via Getty Images/Getty Images)

Assim, peço que esqueçam por um minuto o que se passa a nossa volta e embarquem comigo em uma viagem ao mundo, com estada mais prolongada na Rússia, um país tão distante e tão diferente, mas ainda assim tão semelhante ao nosso em vários aspectos.

Viagem ao mundo. Por isso, vamos começá-la com a leitura de duas passagens que falam, prima facie, não da Rússia, mas de seu outro significativo, os Estados Unidos.

Uma delas assevera:

“O Ocidente é uma ordem política relativamente estável e expansiva. Isso, não apenas porque os Estados Unidos são uma potência econômica e militar inigualável hoje, mas também porque são os únicos capazes de agir com ‘contenção estratégica’, reassegurando parceiros e facilitando a cooperação. Devido a seu sistema político interno […] e à variedade de instituições internacionais que criaram para gerir conflitos políticos, os Estados Unidos têm podido se manter no centro de uma grande ordem hegemônica em expansão. Sua capacidade para vencer lutas específicas com os outros Estados dentro do sistema pode ter altos e baixos, mas a ordem hegemônica maior permanece, com poucas perspectivas de declínio”[1].

A outra contém uma advertência inquietante:

“A Rússia é uma potência nuclear. É uma potência que não apenas tem a capacidade de violar a soberania dos nossos aliados e fazer coisas incompatíveis com nossos interesses nacionais, mas que está fazendo isso hoje. Então, se quisermos falar sobre uma nação que poderia representar uma ameaça existencial aos Estados Unidos, eu teria de apontar para a Rússia. E, se quisermos olhar para o seu comportamento, veremos que ele é nada menos do que alarmante”[2].

A primeira passagem é extraída de um artigo do conhecido teórico norte-americano das Relações Internacionais John Ikenberry, publicado em 1999. A segunda transcreve declaração de um general do Corpo de Fuzileiros Navais ao depor no Comitê de Serviços Armados do Senado dos Estados Unidos, em julho de 2015, na sessão que o confirmou no posto mais elevado na hierarquia militar de seu país.

Nenhuma delas pode ser tida como expressão de opinião unânime.

O artigo de Ikenberry é apenas mais uma de suas intervenções no debate aberto logo depois da guerra do Golfo sobre a natureza da ordem internacional emergente no Pós-Guerra Fria. Nessa controvérsia, Ikenberry fazia coro com o discurso oficial do governo americano, opondo-se à tese defendida por Kenneth Waltz e seus discípulos neorrealistas, para os quais forças vigorosas levariam o sistema internacional, ao longo de um lapso indeterminado de tempo, a assumir uma configuração multipolar.

Quanto à declaração do general Dunford Jr., o Departamento de Estado logo veio a público esclarecer que ela não refletia a visão do governo americano. Que não via a Rússia como uma ameaça, mas como um parceiro complexo (difícil), cuja cooperação precisaria ser garantida para que graves problemas coletivos, a começar pelo terrorismo, pudessem ser enfrentados com efetividade.

Joint Chiefs Nominee Warns of Threat of Russian Aggression - The New York TimesGeneral Joseph Dunford Jr. testemunha no Capitólio, em Washington, D.C., em 27 out. 2015 (Crédito: Zach Gibson/The New York Times)

A despeito dessas ressalvas, os dois pronunciamentos servem de pontos de apoio para nossa reflexão, porque traduzem dois estados diferentes do senso comum – em outras palavras, a opinião dominante – nos Estados Unidos e no mundo, em dois momentos distintos da história.

Pensemos um instante sobre o significado e as implicações deste contraste.

Fin de siècle. “Nova ordem internacional”: neoliberalismo, sim, mas também democracia representativa, direitos humanos, convertidos os três em cláusulas pétreas de uma constituição global em formação sob a égide do Leviatã liberal – expressão cunhada por Ikenberry para caracterizar a singularidade dos Estados Unidos e de seu papel na história.

Julho de 2015: tensões mundiais exacerbadas; desafios crescentes à hegemonia americana; afirmação de tendências à fragmentação – basta pensar nas correntes de opinião que levariam um ano depois ao Brexit e ao jogo contrapontual de golpe e contragolpe na Turquia, com os abalos que vem provocando em suas relações com os aliados ocidentais: guerra interminável na Síria, conflito armado com milhares de vítimas na Ucrânia, risco de enfrentamento entre tropas da Rússia e da OTAN, crispação nas relações internacionais reminiscente dos tempos da Guerra Fria.

O primeiro passo nesse exercício consistiria em fazer um inventário das ocorrências, cujo encadeamento poderia ter levado à mudança constatada. O problema é que o número delas é indefinido. Na impossibilidade de arrolá-las todas, limito-me aqui a registrar, telegraficamente, alguns eventos que me parecem ter importância crucial para o tema em foco.

1. O atentado terrorista de 11 de setembro de 2001, com seus desdobramentos – diretos e indiretos: a operação militar da OTAN no Afeganistão, contra a Al-Qaeda e o Talibã, seguida da mobilização política que culminou na invasão do Iraque, em março de 2003, sem o aval do Conselho de Segurança da ONU. Para além das fissuras na “comunidade internacional” – e mesmo na Aliança Atlântica – que pôs a nu, esse episódio é significativo, porque evidenciou os limites do poderio militar americano. Desde então, ficou claro que os avanços tecnológicos decantados no discurso da “Revolução nos Assuntos Militares” podiam ser decisivos na destruição de Estados inimigos, mas pouco ajudavam no controle de seus respectivos territórios e na criação, nesses espaços, de novas e efetivas estruturas de governo.

2. A segunda expansão da OTAN, em 2004, com a incorporação de antigas repúblicas soviéticas – os países do Báltico Estônia, Letônia e Lituânia –, além da Bulgária, da Romênia, da Eslováquia e da Eslovênia. A primeira expansão, ocorrida em 1999, com o ingresso da Polônia, da Hungria e da República Tcheca, já havia suscitado justificada inquietação. Com efeito, a Rússia – que abrira mão do sistema defensivo criado sob o manto do Pacto de Varsóvia e chegara a aventar a hipótese de sua própria integração na OTAN – tinha boas razões para se ressentir como avanço rumo às suas fronteiras de uma aliança militar aparentemente sem objeto, mas que o sinalizava implicitamente ao excluí-la.

3. Também em 2004, no fim do ano, a assim chamada “Revolução Laranja”, na Ucrânia. Nesse país de formação tão recente – sua história como ente político independente data de 24 de julho de 1991, quando se desprendeu da moribunda União Soviética – e tão diverso – étnica, cultural, linguística e historicamente –, a questão da identidade nacional ocupou desde sempre um lugar central. Com um sistema político frágil, que abrigava dois campos, com respostas antagônicas para o problema da unidade nacional e regionalmente bem demarcados, as denúncias de fraude em eleições presidenciais alimentaram um amplo movimento de desobediência civil que contou com apoio aberto de governos e grupos políticos ocidentais (Europa e Estados Unidos). A anulação do pleito, que dera vitória ao candidato apoiado pela Rússia, e a consagração da candidatura oposicionista na segunda votação poderiam levar a uma crise na relação entre os dois países. Não foi assim. De lado a lado, prevaleceu, em seguida, uma posição acomodatícia. Mas a experiência do conflito, plena de ensinamentos, restou no repertório de todos os envolvidos.

Orange, green or black: The colors of revolutions | Culture | Arts, music and lifestyle reporting from Germany | DW | 16.08.2019Multidão nas ruas durante a ‘Revolução Laranja’, na Ucrânia, em 2004

4. A intervenção militar na Geórgia: um dos três eventos que distinguem o ano de 2008 como um ponto de inflexão na história mundial do Pós-Guerra Fria – os outros dois são a crise financeira global desencadeada pela falência do banco Lehman Brothers e o colapso das negociações comerciais da rodada de Doha da OMC. Provocada pelo ataque de tropas do Exército georgiano à província separatista da Ossétia do Sul, a ação incisiva do Exército russo tomou de surpresa os círculos dirigentes em todo mundo e provocou reações iradas nos Estados Unidos. Sintomaticamente, a decisão do governo georgiano de empregar a força no trato com a província separatista ocorreu pouco meses depois do convite dirigido à Geórgia pelos Estados Unidos e pela Polônia para que ingressasse na OTAN, que não foi oficializado em virtude da discordância manifesta da França e da Alemanha.

5. A “Primavera Árabe”, em 2011, mais especificamente, a decisão do governo Obama de transformar o voto do Conselho de Segurança da ONU, que aprovou a criação de uma zona de exclusão aérea na Líbia, em autorização para o bombardeio indiscriminado de alvos civis e militares nesse país, no contexto de uma operação de mudança de regime.

Fixemos esta data, 2011. Até esse momento, a Rússia se comportava – e era tratada – como um Estado mais ou menos “normal”, de alguma forma integrado no arcabouço institucional erigido, sob a inspiração e a liderança dos Estados Unidos, antes e depois do fim da Guerra Fria. O acesso da Rússia a duas instituições centrais da ordem internacional vigente ilustra bem essa afirmativa: o G8, que a Rússia passa a integrar formalmente em 1997, cuja presidência assumiria em 2006; e a OMC, na qual ingressa em agosto de 2012, depois de longas negociações iniciadas em 1995, no governo Yelstin e no primeiro ano de vida da organização.

Membro cooperativo da “comunidade internacional”. Podemos apontar quatro indicadores em apoio a essa caracterização:

1) o voto russo no Conselho de Segurança da ONU, aprovando a Resolução 1929, de 9 de junho de 2010, que estabelecia nova rodada de sanções contra o Irã (o Brasil e a Turquia opuseram-se à medida);

2) a decisão do governo Medvedev, em 2010, de descumprir obrigação contratual, suspendendo entrega de equipamento sofisticado (mísseis terra ar S-300) essencial à defesa aérea iraniana em caso de ataque israelense;

3) a abstenção no Conselho de Segurança da ONU – juntamente com Brasil, China, Índia e Alemanha – no voto sobre a Resolução 1973, de 17 de março de 2011, que previa o estabelecimento de uma zona de exclusão aérea na Líbia.

Ainda que não determinante, o fato de essa decisão ter sido usada como cobertura legal para uma operação de mudança de regime, envolvendo pesado bombardeio ao país, influenciaria o comportamento da Rússia em outro caso de crise grave na região. Refiro-me, naturalmente, à guerra civil na Síria, onde a posição russa foi um obstáculo à intervenção militar direta, defendida por muitos nos Estados Unidos e em alguns países europeus. A propósito, a crise síria proporcionaria, a seguir, mais uma ilustração do papel construtivo desempenhado pela diplomacia russa, corroborando as pretensões do país de ser reconhecido como ator relevante na gestão dos assuntos internacionais. Assim,

4) A mediação pessoal de Putin no acordo que resultou, em setembro de 2013, na destruição do arsenal químico detido pelo governo sírio, tirando dos Estados Unidos o motivo alegado para um ataque militar ao país, o que poupou o presidente Obama de uma decisão penosa que ele relutava em tomar, mas que talvez lhe fosse imposta pelas pressões intensas do “partido belicista”.

Syrian president Assad backs Putin on Ukraine - Syrian presidency | ReutersO presidente sírio, Bashar al-Assad (à esq.), e seu homólogo russo, Vladimir Putin, no Kremlin, em Moscou, em 13 set. 2021 (Crédito: Sputnik/Mikhail Klimentyev/Kremlin via Reuters)

Apesar dos sinais evidentes de tensão – que se tornam mais acentuados a partir da eleição de Putin, em março de 2012 –, até meados de 2013, a Rússia continuava sendo considerada uma voz legítima na assim chamada “comunidade das nações”.

O que provocou a mudança de qualidade nas relações entre a Rússia, de um lado, e os Estados Unidos com seus aliados europeus, de outro, foi a crise política – rapidamente internacionalizada – na Ucrânia, cujo desfecho todos nós conhecemos: a derrubada do presidente Yanukovych, em março de 2014, logo seguida do plebiscito na Crimeia, cujo resultado foi selado dias depois pelo Tratado de Integração da área na Federação Russa.

Não foi o fim do conflito, muito pelo contrário. A partir daí, movimentos separatistas pipocaram na região oriental da Ucrânia, com apoio de homens e armas vindos da Rússia. De outro lado, assistimos a uma escalada de sanções econômicas por parte dos Estados Unidos e seus aliados europeus, com uma postura cada vez mais agressiva da OTAN, acendendo luzes amarelas, indicadoras de risco potencial de guerra na região.

Guerra clássica, interestatal, digo, porque, a essa altura, a Ucrânia estava mergulhada em um conflito bélico que, em poucos meses, fez milhares de vítimas e gerou levas de refugiados à procura de segurança em zonas não conflagradas do país. Isso a despeito do acordo de cessar-fogo, mediado pela França, a Alemanha e a Rússia, celebrado em Minsk, em setembro de 2014. Os combates só se arrefeceriam cinco meses depois, no segundo acordo de Minsk. A precariedade da trégua ficava patente, porém, no choque frontal entre as pretensões permanentemente reafirmadas dos dois lados em luta.

Era essa a situação quando o general Dunford Jr. fez sua polêmica declaração no Comitê de Serviços Armados do Senado dos Estados Unidos. Podemos imaginar o que diria se já pudesse incluir também em sua contabilidade os bombardeios russos na Síria, os últimos dos quais a partir de bases aéreas situadas em território iraniano.

Podemos fazer mais facilmente esses exercícios e lermos alguns documentos da OTAN, ou de centros de estudos estratégicos europeus e americanos. Veremos, então, que seus autores acompanham com extrema preocupação os avanços tecnológicos, organizacionais e doutrinários das Forças Armadas russas, e concluem que, em caso de conflito armado, em muitos teatros a aliança ocidental se veria em posição de clara inferioridade.

O esgarçamento dos laços entre a Rússia e a aliança Ocidental não resulta, porém, de processos contingentes. Subjacente aos múltiplos pontos de tensão que marcaram esse relacionamento desde o início (quer dizer, desde a dissolução da União Soviética) está o problema prático insolúvel do que fazer com um Estado tão complexo, tão desequilibrado e com a história da Rússia. Como integrá-lo com segurança na ordem capitalista mundial subitamente expandida com o final da Guerra Fria?

Convenhamos, a menos que se acredite em milagres, não se pode responsabilizar os dirigentes russos pela dificuldade. No decurso do tempo, eles tentaram de tudo: a) segurança cooperativa para fazer face a ameaças que pesavam sobre a humanidade, com Gorbachev; b) adesão incondicional aos valores e ao receituário Ocidental, com Yelstin e Kozyrev – seu ministro das Relações Exteriores –, a um preço que, mesmo com muito esforço, mal conseguimos imaginar: colapso econômico que fez o PIB russo encolher mais da metade em cinco anos; c) política ativa e autônoma, buscando contrabalançar o poder norte-americano e reafirmar a condição da Rússia como grande potência, com o primeiro-ministro Primakov; d) cooperação pragmática com o primeiro Putin – que abre acessos às forças da OTAN na luta contra a Al-Qaeda e o Talibã no Afeganistão e pleiteia ingresso do país na OMC; e) cooperação franca, que não exclui o uso de palavras duras como na fala de Putin na conferência de Munique de Segurança, em fevereiro de 2007, quando denunciou as ilusões da unipolaridade, traduzidas na política de expansão da OTAN e na instalação de um sistema de defesa antimísseis na Europa.

Russian President Boris Yeltsin gestures while speaking with his... News Photo - Getty ImagesO então presidente russo, Boris Yeltsin (à esq.), e seu chanceler, Andrei Kozyrev, no aeroporto de Vnukovo, antes de embarcarem para Paris, em 20 out. 1995 (Crédito: Sergei Karpukhin/Pool/AFP)

História de morte anunciada. A postura da Rússia varia num espectro amplo, o que permanece fixo, sempre igual a si mesmo, é o pressuposto da política americana, logo “Ocidental”: a Rússia não é confiável; pode ser bem tratada, receber afagos mais ou menos generosos, mas decisões fundamentais não podem ser com ela compartilhadas.

Isso não se deve à má vontade dos dirigentes ocidentais, seus esquemas de percepção, suas ideias, sua “imagem do outro”, como pretenderia um construtivismo ingênuo. A dificuldade básica está ancorada em um dado duro da realidade: a ordem Pós-Guerra Fria assenta-se no pressuposto do monopólio normativo (poder de gerar, interpretar e reinterpretar normas) e coercitivo do condomínio ocidental, preservada naturalmente a autoridade de seu síndico, os Estados Unidos. É esta a letra do hino entoado por Ikenberry e assemelhados. Ora, ao contrário do que aconteceu no final da “guerra quente”, em 1945, a “vitória do Ocidente”, com a dissolução da União Soviética, não correspondeu a uma derrota militar do Estado vencido, que preservou seu aparato militar, com o arsenal nuclear respectivo.

Não posso me estender sobre o tema, mas a leitura da passagem abaixo, extraída do texto de uma palestra proferida por expert que exerceu função importante no governo Clinton, dará ao leitor uma boa ideia do que estou sugerindo.

“Se Yelstin e seus colegas líderes pós-soviéticos tivessem desencadeado um vale-tudo irridentista no espaço pós-soviético, que se estende por 11 fusos horários, com dezenas de milhares de armas nucleares de permeio, teria havido uma catástrofe ameaçadora para todo mundo”[3].

Evitar esse resultado era indispensável à integração das entidades estatais recém-criadas nas estruturas de segurança pan-europeias. Por esse motivo, os Estados Unidos e seus aliados contribuíram para manter o antigo arsenal nuclear soviético sob o controle concentrado do Estado sucessor, precisamente, a Rússia. Mas o custo diferido dessa decisão em algum momento seria sentido.

No presente, o desafio que a China começa a levantar no plano econômico e financeiro, com o Banco de Infraestrutura Asiático, o projeto One Belt, One Road, a internacionalização do Yuan e outras iniciativas, a Rússia o faz no plano ideológico e militar, com o poderio nuclear e convencional que detém e a disposição espantosa que demonstra de utilizá-lo.

Essa constatação está no cerne da reflexão sobre a necessária inflexão da grande estratégia norte-americana, exposta recentemente por Zbigniew Brzezinski, um dos principais autores intelectuais da política de expansão da OTAN e isolamento da Rússia que vigorou até o momento. Vale a pena escutá-lo:

“Embora nenhum Estado venha, provavelmente, a eliminar a superioridade econômico-financeira da América no futuro próximo, os novos sistemas de armas poderiam […] dotar alguns países dos meios para se lançar em um toma lá dá cá suicida com os Estados Unidos, ou mesmo para prevalecer no confronto. Sem entrar em detalhes especulativos, a aquisição inesperada, por algum Estado, da capacidade de inferiorizar a América militarmente significaria o fim do papel global da América. O resultado seria, muito provavelmente, o caos global. E é por isso que cabe aos Estados Unidos elaborar uma política, na qual pelo menos um dos dois Estados potencialmente ameaçadores se torne um parceiro na busca da estabilidade regional e global e contenha, assim, o Estado menos previsível – mas, potencialmente, o rival mais propenso a ir longe demais. Atualmente, o mais inclinado a isso é a Rússia, mas no longo prazo pode ser China”[4].

Coerentemente com essa avaliação, o ex-conselheiro de Segurança Nacional do governo Carter sugere que os Estados Unidos contribuam para a integração da Rússia no espaço europeu, deixando para trás a ideia de uma aliança com a China, que a condenaria ao papel de um país dependente, exportador de matérias-primas.

Três ressalvas. 1) Esse ponto de vista não é consensual na comunidade de segurança norte-americana e é francamente repelido pelos representantes dela que assessoram a candidata (democrata à Presidência) Hillary Clinton. 2) Brzezinski não esclarece o atrativo que poderia levar a Rússia a adotar a linha de conduta preconizada por ele. 3) É evidente o caráter interessado do juízo que faz sobre o estreitamento das relações políticas e econômicas da Rússia com o gigante chinês.

Mas, como parte de uma operação política que é, o argumento do geopolítico americano chama a atenção para um aspecto decisivo do tema que estamos a tratar.

Com efeito, o fato de ser contestado não quer dizer que os monopólios antes referidos serão derrubados, e que estejamos hoje, portanto, na antessala de uma nova ordem mundial. No que diz respeito à Rússia, o poderio militar se ergue sobre uma base econômica frágil, muito vulnerável, e sobre um sistema social repleto de focos perigosos de conflito.

Naturalmente, não está escrito que continuará sendo assim eternamente. Como para nós, no Brasil, para a Rússia a questão do desenvolvimento se coloca, mais uma vez, de forma dramática. Como avançar na modernização econômica e no adensamento de seu tecido produtivo? Seguir numa estratégia de inserção na ordem capitalista globalizada sob a batuta dos Estados Unidos e das instituições internacionais que eles lideram, quando as tensões políticas se agravam, e a Rússia passa a ser alvo de sanções econômicas de forte potencial destrutivo? Ou buscar um modelo de desenvolvimento distinto, que reduza o grau de exposição do país e amplie sua autonomia internacional?

Nos últimos anos, essas questões passaram a galvanizar o debate econômico na Rússia, sintetizadas que estão na fórmula “soberania econômica” de uso corrente nesse país em tempos recentes. Antecipada pela ideia-irmã de “democracia soberana”, a noção de soberania econômica tem como referente a imagem de uma economia, cujos centros de decisão estão internalizados; uma economia suficientemente sólida para resistir às flutuações da conjuntura internacional e, dessa forma, sustentar o exercício de uma política externa assertiva, que tenta evitar conflitos, mas não recua diante deles, se necessários à defesa de seus fins últimos. Já insinuada em medidas adotadas no início do presente mandato de Vladimir Putin, a estratégia da “economia soberana” foi assumida explicitamente no contexto criado pela crise da Ucrânia. Ela prevê a redução da vulnerabilidade do país, através de programas voltados para a proteção e estímulo à produção agrícola (segurança alimentar) e a diversos setores industriais, com destaque para a biotecnologia, a indústria farmacêutica e a produção de máquinas. Ela inclui ainda a adoção de mecanismos de controle dos movimentos de capital e uma diversificação dos laços externos da economia russa, intensificando suas conexões com os mercados asiáticos.

Salientar este último aspecto é importante porque, muito mais do que para nós, no Brasil, a pergunta sobre como se vincular com a China ocupa na equação estratégica russa um lugar central. E não apenas no terreno econômico, por certo.

A reorientação estratégica acima esboçada esbarra em inúmeros obstáculos, externos e internos. Será bem-sucedida? A Rússia e a China lograrão aparar suas diferenças e aprofundar uma aliança capaz de dotar o sistema internacional de uma configuração multipolar?

Deixo as perguntas no ar, de propósito. Não temos e não buscamos uma bola de cristal, porque ela não existe. Tudo de que precisamos são lentes suficientemente fortes para nos habilitar a ver de forma abrangente o que se passa no mundo em que vivemos e ferramentas para identificar as relações significativas que os processos e as ocorrências observados nele mantêm com os desafios que enfrentamos em nossa realidade imediata.

A essa altura, creio, elas já podem ser vislumbradas. O Brasil não é uma potência militar, como a Rússia, e está situado num subcontinente insular, mantido há quase um século na condição de “zona de paz”, e não em uma região nevrálgica do espaço geopolítico. Mas tem o quinto maior território, a quinta maior população e a sétima maior economia do mundo. No equilíbrio frágil que marca, no presente, as relações internacionais, a pretensão de autonomia exibida por um país com tais atributos, situado na área de influência direta dos Estados Unidos, torna-se um incômodo a ser evitado antes que se converta em ameaça.

A esse respeito, vale a pena ouvir, de novo, um geopolítico influente como Spykman. Dizia ele:

“… os países fora da zona de nossa predominância imediata, os Estados maiores da América do Sul, devem tentar contrabalançar nossa força por meio de uma ação comum e do uso de pesos externos ao hemisfério. Eles se alegram com a competição por seus favores entre Tio Sam e os Estados europeus e tentam jogar um contra os outros”.

“… as nações do extremo-sul gozam de um senso de relativa independência dos Estados Unidos. Os Estados A.B.C. (Argentina, Brasil, Chile) representam uma região no hemisfério, onde nossa hegemonia, em caso de desafio, só pode ser reafirmada ao custo da guerra[5].

Essas palavras foram escritas mais de 70 anos atrás. Desde então, o mundo deu muitas voltas, mas a configuração analisada por Spykman não se alterou tanto assim. Substituídos os “Estados europeus” pelo Estado asiático que já se transformou em principal parceiro comercial do Brasil, da Argentina e de vários outros países sul-americanos – falo, naturalmente, da China – e convertida a hipótese da guerra por aquela da desestabilização política como etapa inicial de uma estratégia de mudança de regime, suas proposições guardam uma inquietante atualidade.

The geopolitics of China's rise in Latin America(Na primeira fileira, da esq. para dir.) A então presidente do Chile, Michele Bachelet; o agora ex-presidente do Equador Rafael Correa; o ainda presidente da China, Xi Jinping; e a então presidente do Brasil, Dilma Rousseff, entre outros líderes latino-americanos em cúpula em Brasília, em 17 jul. 2014 (Crédito: Reuters/Sergio Moraes)

Esse comentário me remete ao começo desta conferência e me fornece o fecho para ela. Entre os muitos efeitos já sentidos do golpe no Brasil, conta-se o giro imposto a sua política externa. Não preciso me estender sobre isso. Basta que cada um abra o jornal e procure ver o que tem feito e dito o desastrado ministro das Relações Exteriores do governo ilegítimo, José Serra.

Mas o golpe no Brasil não começou com a abertura do processo de impeachment, nem terminou no dia em que o Senado cassou o mandato de Dilma Rousseff. O golpe é um processo, que vem de longe, está em curso – vide a violência policial contra manifestantes e a perseguição ao Lula – e só se completará quando o programa que o anima vier a ser realizado. Não é certo que ele será.

Esse programa prevê uma transformação profunda na matriz sociopolítica do Brasil e em sua forma de inserção no mundo, cujo suposto é a destruição dos fundamentos econômicos em que ambas se apoiavam, com as forças sociais a eles associadas. O ataque devastador movido contra a Petrobrás, a grande engenharia nacional de projetos e o conjunto de segmentos empresariais abrangidos nesse imenso complexo é um aspecto decisivo do referido processo.

Como já disse, a partida não está decidida. Mas, seja qual for seu resultado – com a consagração desse programa nefasto e do bloco político que o encarna, ou com sua derrota –, o Brasil já não é e não voltará a ser o mesmo.

Estamos vivendo, de fato, uma mudança de época. Ela não vem de fora. Seus agentes nasceram e se criaram na terra, e os recursos institucionais que mobilizam – basta pensar na autonomia e no poder, sem paralelo no mundo, atribuído ao Ministério Público no Brasil – são frutos de processos internos e de decisões tomadas aqui, a maioria delas, tragicamente, por aqueles que viriam a ser vitimados, a seguir, pelo emprego abusivo dos meios assim produzidos.

Mas não podemos entender a mudança, se não levarmos em conta esse dado essencial: vivemos um momento de fluidez nas relações de poder econômico e político em escala planetária, e o Brasil é palco de um dos grandes embates que marcam esta época na história mundial.

Publicado originalmente na Carta Maior, em 20 set. 2016.

P.S.

“Fazer previsões é uma atividade arriscada, principalmente quando se referem ao futuro”.

A frase é boa, mas não de todo verdadeira. Em que pese o ceticismo do filósofo, fazemos previsões, a todo momento, sobre os mais variados aspectos da realidade. E não nos enganamos com elas. Sabemos que o dia se alternará com a noite; que a Lua descreverá um movimento determinado – amanhã, como hoje –, e que, em dado momento, assumirá tal ou qual forma. Isso, desde tempos imemoriais. Depois – muito depois –, a ciência nos ensinou o porquê desses comportamentos e nos permitiu fazer antecipações sobre processos bem mais complicados. Desde então, conhecimento e previsão passaram a andar de mãos dadas, a tal ponto que muitos acreditaram (alguns ainda acreditam) que explicar e prever são duas faces da mesma moeda.

O modelo da Física clássica funcionou durante muito tempo como um ideal inspirador, com resultados fabulosos. Mas seu alcance é limitado. Ele não se aplica, por exemplo, ao estudo dos fenômenos meteorológicos. Com a ajuda de aparelhos poderosos, podemos prever o tempo com a antecipação de alguns dias, mas não muito mais. E, mesmo assim, com reservas.

Aplica-se menos ainda à política. Aqui, a incerteza não deriva apenas da complexidade dos processos observados, mas do fato de eles serem movidos pelo conflito entre seres conscientes, que calculam, planejam e avaliam suas condutas, reformulando-as – por vezes radicalmente – para melhor responder à ação de seus adversários.

Podemos, sim, fazer projeções em política, e não haveria como conceber a política sem elas. Mas não devemos nos enganar: quando entramos nesse terreno, assumimos riscos enormes.

Redigido, quase seis anos atrás, como texto básico de uma conferência não realizada por motivos de força maior, o artigo ora republicado evita fazer previsões, pelas razões indicadas. Mesmo assim, o quadro que ele descreve delimita um conjunto determinado de futuros possíveis, onde a tensão crescente entre Estados Unidos e Rússia, e a convergência entre esta e a China se insinuam como elementos centrais do cenário provável.

Ele compreendia a possibilidade da guerra, mas nada em seu desenho permitia antecipar o drama que estamos a viver nos dias que correm. Ainda há poucos meses, o governo Biden fazia gestos em direção à Rússia que sugeriam a disposição de seguir as recomendações do ex-conselheiro de Segurança Nacional de Carter, buscando um modus vivendi com a Rússia que a afastasse da China, definida como competidor estratégico de longo prazo. A pergunta sobre como entender o endurecimento da posição americana no final de 2021, quando seus órgãos de Inteligência alertavam para a iminência de um ataque militar russo de grande escala à Ucrânia será respondida futuramente pela pesquisa histórica. O que temos hoje é a comprovação, mais uma, da verdade frequentemente olvidada de que a história se move pelas ações intencionais dos agentes, mas seu curso não é ditado por estas. Como no passado, o conflito armado na Ucrânia desatou um processo que foge ao controle dos protagonistas e empurra o mundo para um estado de coisas novo e ameaçador, cujos contornos os atores buscam adivinhar no momento mesmo em que os traçam com seu obrar.

Muito distante do epicentro da crise, o Brasil não é estranho ao rearranjo em andamento na política mundial. Pelo contrário. Escrito imediatamente depois de votado o impeachment da presidente Dilma Rousseff, a hipótese que informava o texto era a de que a ofensiva contra seu governo só ganhava pleno sentido quando inserida no quadro da disputa de poder em escala global.

Agora, ao cabo de seis anos de estagnação econômica e crise social, mal saídos de uma pandemia que – pela incúria criminosa do governo de turno – custou a vida de perto de 700 mil brasileiros, preparamo-nos para uma eleição que porá em jogo os destinos da democracia no Brasil e nosso futuro como nação. Neste momento dramático, as conexões entre o processo político interno e os grandes movimentos da política mundial se tornam mais fortes, embora não menos complexas.

Se este artigo ajudar à compreensão desse vínculo, sua republicação estará justificada.

 

* Sebastião Velasco e Cruz é coordenador do INCT-INEU, coordenador do OPEU, professor Titular da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professor do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP).

 

[1] IKENBERRY, John. “Institutions, Strategic Restraint, and the Persistence of American Postwar Order”, International Security, vol 23, n. 3, 1998-1999, pp. 43-78 (p. 47).

[2] LAMOTHE, Dan. “Who’s an existential threat to the U.S.? In Washington, it depends who’s talking”, The Washington Post, 13/07/2015.

[3] TALBOTT, Strobe. “Putinism: The Backstory”. The Sixt Annual Ernst May Memorial Lecture, in BURNS, Nicholas; PRICE, Johnathon (eds.). The Crisis with Russia, The Aspen Institute, 2014. p. 25.

[4] BRZEZINSKI, Zbigniew. “Toward a Global Realignment”, National Interest, Vol.11, n. 6, 17/4/2016.

[5] SPYKMAN, Nicholas J. America’s Strategy in World Politics, New Brunswick, 2007 (primeira edição em 1942), p. 64.

 

Assine nossa Newsletter e receba o conteúdo do OPEU por e-mail.

Siga o OPEU no Instagram, Twitter, Flipboard, Linkedin e Facebook e acompanhe nossas postagens diárias.

Comente, compartilhe, envie sugestões, faça parte da nossa comunidade.

Somos um observatório de pesquisa sobre os EUA, com conteúdo semanal e gratuito, sem fins lucrativos.

Realização:
Apoio:

Conheça o projeto OPEU

O OPEU é um portal de notícias e um banco de dados dedicado ao acompanhamento da política doméstica e internacional dos EUA.

Ler mais