Panorama EUA

A promoção da democracia pelos EUA e o alvorecer do governo Biden

Biden toma posse como presidente dos EUA, no Capitólio, em 20 jan. 2021, em Washington, D.C. (Erin Schaff/Pool via Reuters)

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Por Rúbia Marcussi Pontes*

Em 20 de janeiro de 2021, Joseph (Joe) Biden assumiu a presidência dos Estados Unidos. A cerimônia de posse ocorreu apenas duas semanas após a invasão do Capitólio, o Congresso dos EUA, quando o então ainda presidente Donald Trump, que não reconhecia a vitória eleitoral do democrata, incitou seus seguidores de uma maneira nunca antes vista no país. Natural, portanto, que esse momento fosse relembrado diversas vezes na cerimônia de posse, realizada em uma Washington fortemente guardada. Mas a tônica dos discursos foi, sem dúvida, a resiliência da democracia dos EUA, uma terra de oportunidades e de justiça, e a volta à “normalidade” com o governo Biden.

POSSE (da esq. para dir.): Senadores Amy Klobuchar (D-MN) e Roy Blunt (R-MO), casal presidencial Joe e Jill Biden, vice Kamala D. Harris e Doug Emhoff sobem as escadas do Capitólio para posse do democrata, 20 jan. 2021, em Washington, D.C. (Crédito: Melina Mara/The Washington Post via AP, Pool)

A senadora Amy Klobuchar (D-MN), que havia sido pré-candidata à Presidência nas primárias do Partido Democrata, fez o discurso de abertura da cerimônia de posse. Em suas palavras, “este evento é a culminação de 244 anos de democracia”, momento em que os líderes, eleitos pelo poder do povo, juram lealdade à Constituição e se tornam guardiões do país. Klobuchar indagou se as pessoas teriam-se acostumado com o “ritual da passagem da tocha da democracia”, deixando de apreciá-lo verdadeiramente. Sua resposta é “não”, as pessoas não se tornaram insensíveis a tal momento. E ele seria, talvez mais do que nunca, simbólico e necessário.

Assim, para a senadora, “este é o dia em que a democracia se levanta, sacode a poeira e faz o que a América sempre faz. Vai em frente como uma nação sob Deus, indivisível, com liberdade e justiça para todos”. Klobuchar seguiu com o tom otimista: “Celebramos um novo presidente, Joe Biden, que prometeu resgatar a alma dos EUA e cruzar o rio que nos divide. E celebramos nossa primeira vice-presidente mulher, negra e de origem asiática, Kamala Harris (…). Quando ela fizer o juramento hoje, meninas e meninos de todo país saberão que tudo é possível. E, ao final, todos saberão que isso são os Estados Unidos”.

Na sequência, o senador Roy Blunt (R-MO), presidente do comitê da cerimônia de posse, destacou como aquele era o momento de renovação do compromisso com a democracia nos EUA – uma democracia frágil, como exposto pelo episódio recente de ataque ao Capitólio, mas resiliente. Para o senador, aquela era a hora de unificação, com um novo governo e uma “democracia determinada, que continuará sendo essencial na busca por uma união mais perfeita e um futuro melhor para todos os americanos”.

Joe Biden Sworn In As 46th President Of The United States At U.S. Capitol Inauguration CeremonyUNIÃO: Presidente Joe Biden em seu discurso de posse, no Capitólio, 20 jan. 2021, em Washington, D.C. (Crédito: Jonathan Ernst-Pool/Getty Images)

Enfim, em seu discurso inaugural, Joe Biden seguiu ressaltando a importância daquele dia para a democracia dos EUA. “Este é o dia da democracia”, afirmou. “Hoje, nós celebramos o triunfo não de um candidato, mas de uma causa, a causa da democracia. As pessoas, a vontade das pessoas, foram ouvidas”. Ele também relembrou a violência que marcou aquele mesmo espaço há apenas duas semanas, indicando como a transferência pacífica de poder que acontecia naquele momento era, de fato, uma grande vitória para a democracia.

Biden afirmou ainda que os EUA são “uma grande nação, um bom povo”, que conseguiu chegar longe em épocas de paz e de guerra. “Mas nós ainda temos um longo caminho. Nós vamos prosseguir com celeridade e urgência, pois ainda temos muito o que fazer nesse inverno de perigo e de possibilidades significativas. Muito a reparar, restaurar, curar, construir e ganhar”.

Por fim, ele reafirmou seu compromisso com a unificação do país – desafio que requer a confrontação entre o ideal estadunidense, segundo o qual todos nascem iguais, com a dura realidade do racismo, das desigualdades e do medo. Um desafio que sua administração afirmou estar pronta para encarar, pois é somente por meio da unificação que os EUA poderão voltar a ser “a força motriz no mundo”. Nesse sentido, os desafios do 46º presidente dos EUA não serão poucos.

O tema da democracia ocupou um espaço importante ainda durante a campanha eleitoral de Biden, quando, por exemplo, ele afirmou que colocaria a democracia no centro de sua política externa, em um contexto de necessidade de renovação da própria democracia dos EUA e de suas alianças. Em sua campanha, propôs uma Cúpula Pela Democracia (Summit for Democracy) como uma oportunidade para “renovar o espírito e o propósito comum das nações do Mundo Livre”, buscando recuperar a liderança pelo exemplo por parte dos EUA.

Tais ideias, ressaltadas em seu discurso de posse e durante sua campanha eleitoral, remontam à promoção da democracia (democracy promotion), que é, historicamente, um elemento essencial da política externa dos EUA. Trata-se aqui de um país marcado pelas ideias de excepcionalismo e de Destino Manifesto, segundo as quais os EUA teriam o dever moral de expandir suas fronteiras e de levar desenvolvimento e democracia a todos os povos.

Longe de ser uma simples inspiração para a política externa, a promoção da democracia, definida como o conjunto de medidas empreendidas por um ator com os objetivos de estabelecer, fortalecer, ou defender, a democracia em um determinado país, pelos mais diversos meios, serviu aos interesses estratégicos dos EUA e passou a ser associada a outros valores e processos tidos como universais, como os direitos humanos e a promoção do livre-mercado. Tornou-se um elemento essencial da própria ordem hegemônica liberal liderada pelos EUA no século XX.

NOVO GOVERNO: Democracia volta com força aos discursos (Fonte: Adobe stock)

Promoção da democracia pelos EUA: perspectiva histórica

A promoção da democracia por esse ator se dá, principalmente, por meio da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID, na sigla em inglês), fundada em 1961. Sua atuação é complementada pelo Departamento de Estado e, mais especificamente, por seu Escritório para Democracia, Direitos Humanos e Trabalho (DRL, da sigla do inglês). Existem, ainda, outras instâncias, como o National Endowment for Democracy (NED), organização não-governamental fundada em 1983 e que recebe fundos do Departamento de Estado, cuja atuação ocorre mediante a concessão de fundos para organizações voltadas para a promoção dos direitos humanos e da democratização. Os esforços de promoção da democracia também são realizados via organizações multilaterais, com participação no Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), a Comunidade das Democracias, entre outras.

Um olhar mais cuidadoso revela, porém, que a promoção da democracia por tal ator não é um monólito. Existe, na verdade, uma diferenciação conceitual diversa, tanto em relação ao tipo de democracia promovido, quanto aos meios para atingi-la, ao longo do tempo, e de acordo com os interesses cambiantes da política externa dos EUA. Assim, como sugerido por Jeff Bridoux, no artigo “U.S. Foreign Policy and Democracy Promotion: In Search of Purpose”, de 2013, tais variações na promoção da democracia podem ser entendidas como momentos paradigmáticos, influenciados por pressões da política doméstica e do ambiente internacional.

O primeiro dos momentos paradigmáticos aconteceu no pós-Primeira Guerra Mundial, quando Woodrow Wilson buscou a promoção de regimes liberais democráticos na política internacional com base em seus Quatorze Pontos, desejando tornar o mundo “um lugar seguro para a democracia”. O internacionalismo liberal de Wilson colocava os valores democráticos no centro da ordem que se buscava construir, a qual prezaria pelo estabelecimento de instituições internacionais e pelo Estado de Direito (rule of law). Também serviu como justificativa para intervenções externas por parte dos EUA, principalmente no México, em 1914, e na República Dominicana, em 1916, relacionado à defesa da democracia no exterior e à segurança doméstica estadunidense.

A ordem internacional buscada por Wilson não se concretizou, porém, no contexto da Grande Depressão e da ascensão do nazifascismo. Foi mais adiante, no pós-Segunda Guerra Mundial, que a promoção da democracia por parte dos EUA ganhou novo fôlego, principalmente por meio do Plano Marshall e dos arranjos de Bretton Woods. Para Bridoux, na página 236 do mesmo artigo, “essa versão levou a sério a necessidade não somente de ‘liberalizar’ os sistemas políticos dos Estados, mas também de refletir e de mitigar as balanças de poder aparentes nas sociedades em questão para alcançar estabilidade econômica, identificada como crucial para a estabilidade social e política”.

Resultado de imagem para встреча сталина рузвельта и черчилляVENCEDORES DA 2ª GM (da esq. para dir.): O então premiê britânico, Winston Churchill; o presidente dos EUA, Franklin D. Roosevelt; e o líder soviético, Joseph Stalin, no Palácio Livadia, em Ialta, Rússia (hoje Crimeia), em 4 fev. 1945 (Crédito: AP)

Nesse período, os EUA estiveram diretamente envolvidos em projetos de democratização, principalmente na Alemanha e no Japão, reafirmando que a consolidação da democracia global refletia os valores dos EUA. Mas a política de contenção da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), no contexto da Guerra Fria, iniciou um período de preferência pelo combate ao comunismo às custas da promoção da democracia.

Nesse sentido, ganha destaque o apoio – militar, econômico e diplomático – estadunidense a regimes autoritários, desde que estes fossem anticomunistas, nas administrações de Lyndon Johnson (1963-1969), Richard Nixon (1969-1974) e Gerald Ford (1974-1977). Isso foi especialmente significativo nas relações com a América Latina, com os casos da Guatemala, em 1954, e da República Dominicana, em 1965, entre diversos outros exemplos nas décadas posteriores. Houve, neste intervalo, um abismo entre a retórica e as ações.

Sob Jimmy Carter (1977-1981), a promoção da democracia voltou a ser atrelada à agenda de direitos humanos, especialmente no trato da América Latina. Mas o terceiro momento paradigmático ocorreu durante os anos de Ronald Reagan (1981-1989), com a democracia liberal, em seu aspecto formal, e a economia de livre-mercado sendo usadas como mecanismos para derrotar o comunismo e, segundo a lógica vigente, garantir a transição e o desenvolvimento democráticos. Esse período foi marcado pela chamada “terceira onda” democrática, em que pelo menos 30 países realizaram essa transição.

O quarto momento paradigmático ocorreu com o fim da Guerra Fria e a derrota do comunismo. Bridoux afirma, à página 237 de seu artigo, que, então, “a promoção da democracia pelos EUA mudou para um paradigma de dominação consensual baseado na inquestionável dominação da democracia liberal como sistema político e o capitalismo como modo de produção global”. A ideia central era que democracias poderiam ser instauradas, de forma universal, se os métodos corretos fossem empregados. Isso poderia ser realizado, partindo-se de projetos específicos, focados em atores estatais específicos, que seriam mais efetivos para a organização institucional da transição democrática.

Na prática, o modelo se concentrou em: i) mudanças do sistema político estatal (eleições e sistemas partidários); ii) construção de estruturas governamentais e responsividade (accountability); e iii) aumento da capacidade de controle do Estado pela sociedade civil. É nesse momento que os orçamentos para promoção da democracia se expandem significativamente, incorporando grande parte da ajuda externa dos EUA, direcionados para práticas diversas, como apoio eleitoral e boa governança. Foi nesse contexto que a administração de George H. W. Bush (1989-1993) assistiu à democratização na Polônia e na Hungria, bem como apoiou transições democráticas na África e nos Estados que faziam parte da URSS.

William (Bill) Clinton (1993-2001) expandiu a promoção da democracia, colocando-a como o conceito organizador de suas proposições para política externa durante sua campanha presidencial, em 1992. A ideia de um “alargamento democrático” enquanto conceito organizador da política internacional dos EUA não se tornou, contudo, uma realidade com sua eleição: um ajuste foi realizado, e o foco passou a ser a promoção do livre-mercado. Assim, o quarto paradigma esteve mais associado à promoção da dimensão eleitoral das democracias e à ideia de livres-mercados, com a retórica de que o avanço das democracias favorecia os interesses e a segurança dos EUA.

Vale notar que, em 1994, foi estabelecido o Escritório para Iniciativas de Transição (OTI, da sigla do inglês), dentro da USAID, concentrando ainda mais os esforços de promoção da democracia da agência. E os montantes destinados à promoção da democracia se multiplicaram, passando de US$ 100 milhões nos anos Reagan para US$ 700 milhões sob Clinton, com atuação em pelo menos 100 países. Seus esforços foram voltados, principalmente, para países em transição na América Latina e no Leste Europeu.

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ATAQUE À LIBERDADE: O então presidente George W. Bush discursa para os socorristas, em meio aos escombros do World Trade Center, em 14 set. 2011 (Crédito: Win McNamee/Reuters)

É notável, entretanto, a desigualdade da atuação estadunidense no período. Clinton apoiou diversas transições democráticas em curso na América Latina, seguindo a tradição da administração de Bush pai, mas o discurso de promoção de democracia foi especialmente posto de lado em negociações com a China, com a dissociação do tema de direitos humanos do tema do comércio, ainda em 1994, mas também nos anos seguintes.

A administração de George W. Bush (2001-2009) foi, por sua vez, marcada por um forte comprometimento retórico e prático em relação à promoção da democracia no pós-11 de Setembro, com a chamada Freedom Agenda, em que a promoção da democracia apareceu tanto como um fim em si mesma quanto um meio para outros fins.

Nesse sentido, Bridoux considera que a promoção da democracia agressiva observada nos anos seguintes foi uma continuidade da prática de Clinton no sentido de uma agenda de promoção global da democracia. O autor afirma, porém, que houve, de fato, um alargamento na atuação com a invasão do Afeganistão e do Iraque e com a associação de promoção da democracia com a Doutrina Bush, em um contexto de securitização da ajuda externa dos EUA de uma forma geral.

Quando a administração de Barack Obama (2009-2017) teve início, a promoção da democracia pelos EUA se encontrava em uma encruzilhada e mais questionada do que nunca, levando-se em consideração os desdobramentos da Guerra Global ao Terror (GWOT, na sigla em inglês) e as violações de direitos humanos cometidas pelos EUA nesse contexto. A própria ideia de que a democracia poderia ser exportada era questionada.

Assim, o governo Obama optou por um recuo parcial em relação à promoção da democracia nos primeiros meses de seu mandato. No relatório “Whither to, Obama? U.S. Democracy Promotion after the Cold War”, de 2010, Annika Poppe destaca o contraste com a administração Bush (filho), quando o tema da democracia foi central. Obama, por exemplo, sequer mencionou o termo “democracia” em seu discurso de posse. A secretária de Estado Hillary Clinton também afirmou, ainda em janeiro de 2009, que os três pilares da política externa sob Obama seriam “os três D’s”: defesa, diplomacia e desenvolvimento, deixando a democracia de fora.

Com o passar do tempo, a administração Obama passou a afinar o discurso sobre a promoção da democracia, atrelando-a aos esforços voltados para a promoção de desenvolvimento econômico global e direitos humanos. Nessa estratégia, a democratização deveria ser uma tarefa dos nacionais. Mas é importante ressaltar que não houve uma diferença significativa, em termos orçamentários, entre W. Bush e Obama, com proposta de US$ 2,81 bilhões na seção de “governing justly and democratically”, em proposta orçamentária enviada ao Congresso em 2010.

No relatório “Democracy Policy under Obama”, publicado em 2012 pelo think tank Carnegie Endowment for International Peace, Thomas Carothers aponta como a promoção da democracia não esteve imbricada na grande narrativa de política externa dos EUA como aconteceu nos anos de Reagan, Clinton e Bush, por exemplo. Isso seria um reflexo do novo contexto internacional, em que os inúmeros desafios e a multipolaridade fizeram os EUA se concentrarem na proteção de seus interesses econômicos e securitários. Assim, a promoção da democracia passou a estar localizada no espectro da agenda de desenvolvimento global.

Vale mencionar que, nas últimas décadas, a literatura sobre os processos de democratização começou a discutir o possível esgotamento, ou crise, da “terceira onda” de democratização. Nesse sentido, Larry Diamond, em seu texto “The Impact of the Economic Crisis: Why Democracies Survive”, de 2011, ressalta que o número de democracias praticamente estagnou em torno de 120-116, entre 2009-2010, respectivamente, e que a quantidade de rupturas democráticas tem aumentado conforme a passagem do tempo – movimento que não se deu somente por meio de golpes. Ele também ocorre a partir da deterioração incremental da democracia, o que faria que 1 a cada 5 democracias da “terceira onda” não pudesse mais ser assim considerada.

Em tal contexto geral de provável esgotamento da “terceira onda” e de crescentes questionamentos em relação à atuação dos EUA, pode-se notar que a atividade das agências sofreu modificações, voltando-se, principalmente, para temas de boa governança. A USAID, por exemplo, colocou uma nova ênfase na avaliação de programas, buscando identificar quais esforços na promoção da democracia eram mais eficazes.

Importante ressaltar que a atuação – e a promoção da democracia – por parte dos EUA não foram interrompidas. Como colocado por Luiza Mateo, no artigo “The Changing Nature and Architecture of U.S. Democracy Assistance” (2020, p. 9), “Obama não escapou de novas contradições, já que sua política externa também foi marcada por turbulência no Oriente Médio, após a Primavera Árabe, que teve uma resposta hesitante de Washington, e o apoio para intervenção externa na Líbia (empreendida por forças da OTAN, em 2011), justificada sob a premissa da responsabilidade de proteger”. Isso, além das alianças estabelecidas com Estados árabes para a luta contra o Estado Islâmico e uma aproximação com Estados tidos como não democráticos, como China, Irã e Cuba, levou alguns autores a chamarem a abordagem de Obama de “liberal seletiva”, no que tangia à promoção da democracia.

Inflexão democrática sob Trump e o governo Biden

Bridoux (2013) condensa a atuação de todos os governos do pós-Guerra Fria em um único paradigma. Como discutido, houve, no entanto, um crescente questionamento acerca da atuação estadunidense para promoção da democracia, principalmente depois do governo de George W. Bush, mas também sob Obama, em um contexto maior de crise democrática em diversos Estados e de aparente esgotamento da “terceira onda” de democratização.

Assim, resta aventar se foi realizada uma inflexão sob o governo de Donald Trump, líder que demonstrou, em inúmeras ocasiões, pouco apreço pelos valores democráticos e que sugeriu cortes orçamentários significativos para a promoção da democracia. Segundo Mateo, as consequências para a ajuda externa, de forma geral, e para a promoção da democracia só não foram maiores, devido à institucionalização e à resiliência da burocracia especializada, principalmente na USAID e no Departamento de Estado, além da atuação bipartidária no Congresso, de forma a rejeitar as propostas de cortes do Executivo.

INVASÃO AO CAPITÓLIO: Ataque à democracia na America First de Trump, 6 jan. 2021, Washington, D.C. (Crédito: Julio Cortez/AP)

Apesar desses esforços de contenção, a administração Trump marca uma inegável ruptura com a tradição de defesa de valores e princípios democráticos defendidos tanto por presidentes republicanos quanto democratas, o que poderia indicar uma inflexão profunda em um governo que baseou sua atuação na política de America First e criou um vácuo na liderança da promoção da democracia com o desengajamento estadunidense.

Isso está diretamente relacionado com a aguda polarização na política e na sociedade estadunidenses, em um contexto de erosão da própria democracia daquele país. Nesse sentido, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, à página 19 de seu best-seller Como as democracias morrem (Editora Zahar, 2018), apontam que a vitória de Trump, em 2016, “foi viabilizada não apenas pela insatisfação das pessoas, mas também pelo fracasso do Partido Republicano em impedir que um demagogo extremista em suas próprias fileiras conquistasse a indicação [à Presidência]”.

Para além, os autores afirmam que as democracias e as constituições tendem a ser mais persistentes em locais em que as normas democráticas não escritas são respeitadas, o que teria acontecido na maior parte do século XX, sustentando a democracia dos EUA. Tais normais seriam a i) tolerância mútua, ou seja, o entendimento de que contrapartes são rivais no jogo político, mas não inimigas, e a ii) contenção, ou seja, o entendimento de que os representantes devem ser cuidados no uso de suas prerrogativas institucionais. Tolerância e comedimento não foram, porém, normas respeitadas em grande parte da administração Trump, um líder autoritário, e não mais serviram como grades de proteção à democracia dos EUA.

Existem, portanto, sérias questões tanto em relação ao estado das instituições democráticas dos EUA, quanto à sua atuação para promoção da democracia internacionalmente, em um aparente “refluxo democrático” que teria alcançado seu ápice com a invasão do Capitólio. Os desdobramentos dessa ação ainda serão observados no alvorecer do governo Biden.

Джо Байден

DEMOCRACIA: Biden no último debate presidencial, na Belmont University, em Nashville, em 22 out. 2020. No telão, ao fundo, a Constituição (Crédito: Brendan Smialowski, AFP/Getty Images)

Nesse sentido, os desafios do 46º presidente dos EUA, que prometeu unificar a nação e renovar a democracia estadunidense e a liderança pelo exemplo no “Mundo Livre”, são muitos. Como apontam Adler e Wertheim, a própria premissa da Cúpula Pela Democracia, proposta por Biden em sua campanha, está baseada na antiga divisão entre as nações do chamado “Mundo Livre” e as demais, em um contínuo reforço da ideia de “nós” e “eles”, “nós” e “os outros” – divisão tão característica na política externa dos EUA. A Cúpula pode, de fato, ser um fórum para coordenação em iniciativas como supervisão eleitoral, mas reiteraria um mundo em campos hostis logo no início de uma administração que prometeu unificar sua própria nação.

 

* Rúbia Marcussi Pontes é doutoranda e mestra em Ciência Política pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência Política (PPGCP-IFCH), da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Pesquisadora do INCT-INEU e bolsista CAPES. Contato: rubiamarcussi@gmail.com.

** Recebido em 25 jan. 2021. Este Panorama EUA não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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