Internacional

Primeira Cúpula pela Democracia expõe hiato entre expectativa e realidade

Cúpula pela Democracia foi realizada virtualmente, em 9 e 10 dez. 2021 (Crédito: Leah Millis/Reuters)

Por Otávio Dias de Souza Ferreira*

Quando Joe Biden Jr. anunciou a ideia de promoção de uma Cúpula para a Democracia (Summit for Democracy), em meio às elevadas temperaturas da campanha eleitoral contra Donald Trump, houve grande entusiasmo das forças progressistas em todo mundo e constrangimento para lideranças de tendências autoritárias. A novidade faria frente aos esforços de alianças de lideranças de extrema direita, em iniciativas como “The Movement”, e ao alinhamento desses atores no âmbito da Organização das Nações Unidas, para tentar conter as tendências de erosão dos regimes democráticos e de ataques às liberdades civis. As prioridades seriam o combate à corrupção, a defesa contra o autoritarismo e o avanço dos direitos humanos. O evento aconteceu entre 8 e 10 de dezembro de 2021, sob o olhar atento e curioso do campo político internacional.

“Mundo Livre”

Depois da ácida campanha em 2016 e dos anos da presidência de Donald Trump, daquilo que representou enquanto ruptura com valores democráticos, culminando com o fatídico episódio da invasão do Capitólio, em 6 de janeiro de 2021, o programa de governo de Biden previu ações para “reforçar a fundação democrática” dos Estados Unidos, com a ambição renovada de inspirar a ação democrática para o mundo. Elegeu para a tal Cúpula pela Democracia a missão de renovar uma proposta de democracia a ser compartilhada pelas nações do “Mundo Livre”. A ideia é coerente com o relançamento da Carta do Atlântico, em junho de 2021, por Joe Biden e Boris Johnson, revisitando a iniciativa de Winston Churchill e Franklin Delano Roosevelt, quando, no fim da Segunda Guerra Mundial, pretendia-se defender um “mundo livre” da tirania do Nazismo.

Biden, Johnson, sign new Atlantic Charter | WNWOPresidente Joe Biden conversa com o premiê britânico, Boris Johnson, durante encontro bilateral por ocasião da cúpula do G7, na Cornuália, em 10 jun. 2021 (Crédito: Toby Melville/Pool via AP)

A distribuição dos convites desapontou as melhores expectativas em torno do evento. Os critérios não se ativeram ao nível de liberdades políticas e civis dos países  (casos, por exemplo, de República Democrática do Congo, Angola, Iraque, Malásia e Zâmbia, considerados autoritários), nem tampouco ao fato de serem comandados atualmente por líderes autoritários (casos, por exemplo, de Brasil, Polônia e Filipinas). Oito países sul-americanos não foram convidados. A exclusão da Bolívia e o convite a Juan Guaidó para representar a Venezuela pareceram resultar de apreciação ideológica, mais do que de qualquer outro critério.

China e Rússia também não foram incluídas no rol do “Mundo Livre”, embora países de seus entornos e alvos de suas ambições de domínio, tenham-no sido. O convite à representação de Taiwan foi provocação deliberada contra o gigante da Ásia. Prevaleceu, na escolha dos convidados, o cálculo dos interesses geopolíticos dos Estados Unidos em áreas de influência. De certa forma, algumas nuances das disputas estratégicas por territórios de influência que remetem aos tempos da Guerra Fria acabaram fomentadas.

A Cúpula restou desenhada de um modo mais tímido e parcialmente distinto das ideias originais e das expectativas mais progressistas. Ficou a ver navios, por exemplo, quem esperava destaque para assuntos como a defesa do meio ambiente. Invariavelmente, este é um tema que se relaciona com desafios democráticos e com qualquer pretensão de se afirmar um “Mundo Livre”, por seu potencial impacto nas gerações futuras e em populações de regiões para além do Estado-nação.

Durante três dias (Dia Zero, Dia Um e Dia Dois), uma extensa programação foi cumprida, contando com a participação de atores plurais, entre declarações de chefes de Estado de mais de mais de 100 países, lideranças de organizações multilaterais, CEOs, ativistas de direitos humanos, jornalistas, políticos e poucos acadêmicos. As questões que receberam destaque foram as responsabilidades do setor privado em relação à democracia, o combate à corrupção, a inclusão dos jovens e das mulheres na política, a liberdade de imprensa, a mídia independente, o uso das tecnologias de comunicação a favor da democracia e a defesa ante abusos autoritários por meio das tecnologias digitais.

Geopolítica e Economia

Manteve-se a promessa de foco naqueles três temas referidos desde a campanha eleitoral vitoriosa. As escolhas da defesa contra o autoritarismo e da promoção dos direitos humanos são irrefutáveis em um momento histórico de retrocessos na agenda humanista do Pós-Segunda Guerra Mundial. Merece consideração, porém, o fato de se ter incluído o combate à corrupção ao lado dessas duas prioridades da Cúpula. Espera-se, em uma democracia saudável, a transparência, a accountability, a garantia do Estado de direito, o respeito às liberdades individuais e instituições de controle independentes, limitadas segundo a lei e outros órgãos de controle. O combate à corrupção não é prerrogativa exclusiva de democracias. A corrupção pode ser enfrentada até com maior efetividade e severidade em regimes autoritários, sem respeito ao devido processo legal e liberdades individuais, geralmente de forma seletiva, contra desafetos e opositores das lideranças.

A escolha desse terceiro tema se relaciona com estratégias de influência internacional política. Esta dinâmica se dá por meio da intervenção nas instituições de controle de países aliados, na esteira de acusações como a do Projeto Bridges, supostamente articulado pelo Departamento de Estado dos EUA junto a países do continente, assim como da lógica de legislações de aplicação extraterritorial, como a Foreign Corruption Practice Act e a severidade com que empresas estrangeiras podem se punidas por atos praticados além do território estadunidense. A inclusão do tema atende, especialmente, a interesses econômicos e comerciais de suas empresas e a interesses geopolíticos em determinadas regiões.

Who's In and Who's Out From Biden's Democracy Summit - Carnegie Endowment for International Peace

Convidados da cúpula de Biden por região: Hemisfério Ocidental (27), Europa (39), Oriente Médio e Norte da África (2), África (17), Ásia Central/Sul (4) e Pacífico e Leste Asiático (21)

Foi pertinente a crítica de Thomas Pepinsky, da Brookings Institution, que lamentou que o evento não tenha se concentrado apenas nos direitos humanos, perdendo força ao se curvar em demasiado às agendas da economia e da geopolítica. Eis que os contornos do evento fizeram lembrar bem mais o Fórum Econômico de Davos que o Fórum Social Mundial.

Academia e inovação

A quantidade de CEOs convidados foi similar à de ativistas de direitos humanos e de jornalistas, porém muito superior à presença de intelectuais e de representantes da Academia. Califórnia, Nova Iorque e Boston, entre outros centros de referência em pesquisa, contam com dezenas de especialistas em estudos teóricos e empíricos sobre democracia que muito teriam a contribuir para a qualidade e a densidade do evento. Embora estes tempos de ataques frontais e ostensivos à ciência tornem sua presença ainda mais urgente e imperiosa, esta não foi a leitura dos organizadores, talvez mobilizados por outras prioridades.

Debates sobre inovações democráticas foram protagonizados por CEOs de empresas de tecnologia e políticos de países como Finlândia e Dinamarca, tendo como pano de fundo o uso de novas tecnologias para fins de transparência, acesso e trocas de informação com maior qualidade e celeridade, ao passo que parcelas da população mundial ainda padecem da falta de acesso à Internet e de instrução educacional básica. Novas experiências democráticas – no aprofundamento da participação, de novas formas de representação, associativismo e deliberação –, muitas das quais tiveram a América do Sul da última década como referência internacional, foram solenemente ignoradas.

Prestígio institucional

O evento foi prestigiado pela cúpula do governo estadunidense. O presidente dos Estados Unidos discursou no início do “Dia Um” e ao final do “Dia Dois”, e outras autoridades do primeiro escalão participaram ativamente da programação, no papel de anfitriões. O secretário de Estado, Antony Blinken, foi um deles. Falou sobre mídia independente na primeira manhã, ao receber os jornalistas Prêmios Nobel da Paz, Maria Ressa e Dmitry Muratov, e a secretária-geral da Anistia Internacional, Agnès Callamard. Em seguida, mediou uma mesa com lideranças jovens de diferentes países sobre a inclusão da juventude na política, até retornar, na manhã seguinte, ao lado do presidente Biden.

Youth around the world advocate for democracy | ShareAmericaSecretário de Estado, Antony Blinken, participa de painel virtual com jovens lideranças democráticas, durante a Cúpula para a Democracia, em Washington D.C., em 8 dez. 2021 (Crédito: Freddie Everett/Departamento de Estado)

Nas duas aparições na Cúpula, Joe Biden Jr. mostrou entusiasmo pelo evento, garantindo que a iniciativa será reeditada futuramente, em 2022. Asseverou que a defesa da democracia é o desafio do nosso tempo e que, agora, experimentaremos um ponto de inflexão histórico em face de retrocessos de direitos e da erosão das democracias. Divulgou iniciativas legais de seu governo nessa área, como a Freedom to Vote Act e a John Lewis Voting Rights Act, normas que prometem combater práticas discriminatórias e promover igualdade no processo eleitoral. Enfatizou esforços contra a corrupção transnacional e a diplomacia e anunciou programas de assistência, inclusive financeira, no exterior, para reforçar a resiliência da democracia, fomentar a mídia livre e independente e o engajamento de mulheres. No encerramento, valorizou, em especial, conexões, trocas de experiência, diálogo e renovação de compromissos propiciados pelo evento.

ONU e novo pacto social

O secretário-geral da ONU, António Guterres, foi protagonista na manhã do “Dia Dois”. Iniciou sua fala com um depoimento pessoal sobre a experiência de 30 anos de vida sob a ditadura de Salazar, em Portugal, e depois, sua participação na edificação da democracia em seu país, desde a vitória final da Revolução dos Cravos. Evocou os valores do Iluminismo, que constituiriam a pedra angular da democracia, agora “à deriva”, segundo ele, com muitas pessoas vivendo em uma Era Pós-Iluminismo, sabotando a ciência, a razão e a confiança nas instituições democráticas. Também advogou a “renovação do contrato social” (argumento que será retomado na declaração do presidente do Peru) e, para isso, preconizou a afirmação dos conteúdos do relatório “Nossa Agenda Comum”, o avanço dos instrumentos da revolução digital para a participação e contra a alienação e o isolamento, além da promoção de um mundo mais justo. Guterres evocou a experiência da ONU como uma prova da capacidade de união das nações em torno do diálogo, ainda que com sistemas políticos diferentes.

Autoritários acanhados

Em meio às declarações de mais de 100 chefes de Estado de nações com variadas condições de liberdade para suas populações, merece atenção a participação de ao menos três lideranças notabilizadas por atos e declarações de cunho autoritário.

As declarações de Jair Bolsonaro na Cúpula pela Democracia foram tão moderadas que poderiam ter sido escritas e proferidas por seu antecessor – e assessor especial para crises – Michel Temer. A defesa reiterada dos direitos humanos, de princípios democráticos e dos fundamentos da Constituição de 1988 não condiz com a trajetória do atual presidente, nem com a maioria de seus discursos, medidas e políticas até então propostas e/ou adotadas e, certamente, envergonhou seus apoiadores mais radicais.

Acusado, entre outros fatos, de manipulação inconstitucional da maioria do Tribunal Constitucional de seu país e de repressão reiterada às minorias, o presidente da Polônia, Andrzej Duda, lembrou da juventude em um país autoritário e da luta de sua geração para se alcançar a democracia, ao custo, inclusive, do derramamento de sangue. Colocou-se como bastião da defesa da democracia no Leste Europeu, resistindo firmemente na fronteira em face da vizinha autoritária Belarus e sob pressão do Kremlin de Vladimir Putin.

O presidente filipino, Rodrigo Duterte, acusado, entre outros, de legalizar execuções sumárias por parte da polícia de seu país e de perseguir jornalistas, também se apresentou com fala deveras comedida, enfatizando os esforços, em casa, no combate à pobreza. Segundo ele, as Filipinas são, hoje, uma democracia aberta, com liberdades de expressão e de imprensa garantidas.

Vale pontuar que nenhum destes três países teve representantes oficiais convidados para as mesas e os painéis temáticos do evento. No caso das Filipinas, ressalta-se que duas participantes do evento denunciaram as arbitrariedades do governo. A jovem liderança Lynrose Jane Genon, do programa Young Women Leaders for Peace, garantiu ao secretário Antony Blinken que os espaços democráticos em seu país estão-se reduzindo e que jornalistas e a mídia social estão sob constantes e duros ataques do governo. A jornalista Maria Ressa contou que foi vítima de dez ordens de prisão nos últimos dois anos por exercer seu trabalho. Para representar a gravidade da situação que estariam enfrentando, ela propôs a imagem de uma bomba atômica explodindo sobre o ecossistema de informações de seu país.

Saldo positivo

Biden perdeu oportunidade de se opor de maneira mais vigorosa aos esforços de seu antecessor Donald Trump e de expoentes da extrema direita no cenário internacional. Ainda assim, a Cúpula pela Democracia teve méritos e merece prestígio enquanto esforço que valorizou e difundiu princípios democráticos, liberdades civis e direitos humanos, no momento em que a política e o pluralismo são aviltados. Permitiu a articulação de experiências entre os diversos atores presentes, inaugurou um espaço de reflexão sobre desafios colocados para as forças democráticas e, talvez o mais importante, constrangeu referências autoritárias a se comprometerem, publicamente, com pautas que nunca lhes foram caras. Foi uma primeira iniciativa, com promessa de continuidade já em 2022. Apresenta potencial para amadurecer e produzir desdobramentos positivos. Vale, portanto, acompanhar os próximos episódios.

 

* Otávio Dias de Souza Ferreira é doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP), pesquisador no projeto Covid-19 no sistema prisional brasileiro, do IDDD, e professor colaborador da FLACSO-Brasil. Contato: euotavio@gmail.com.

** Recebido em 13 dez. 2021. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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