China e Rússia

A estratégia do governo Biden para as Cadeias Globais de Valor

Crédito da ilustração: Global Times

Por Isabella Frangi Bassani*

Em 8 de junho de 2021, o governo dos Estados Unidos divulgou os resultados da revisão de 100 dias a respeito das cadeias de suprimentos de quatro produtos considerados essenciais: semicondutores, ingredientes farmacêuticos ativos, baterias de alta capacidade e minerais críticos, incluindo elementos terras raras. O relatório é o primeiro passo da estratégia elaborada na Ordem Executiva 14017, assinada em fevereiro de 2021 pelo presidente Joe Biden, que visa a identificar potenciais vulnerabilidades e riscos nas cadeias de suprimentos de bens e setores essenciais à economia norte-americana, bem como propor recomendações. O segundo passo consiste na revisão, dentro de um ano, das cadeias de suprimentos de seis importantes setores da economia do país: defesa nacional, saúde pública, tecnologia da informação e comunicação, energia, transporte e agricultura.

Naquela ocasião, Biden afirmou existir consenso bipartidário, no que se refere à preocupação com a segurança e a resiliência das cadeias de suprimentos norte-americanas. Ainda, caracterizou como inaceitável a escassez de Equipamentos de Proteção Individual (EPI) para profissionais de saúde no início da pandemia. Muito embora não tenha citado nomes, deixou claro que os Estados Unidos não devem depender de outros países, especialmente daqueles que não compartilham os mesmos interesses e valores, para atender as demandas de sua população durante períodos de emergência nacional. Por fim, mencionou a atual crise de semicondutores – que tem afetado a indústria automobilística e de eletrônicos – e a necessidade de garantir que cadeias de suprimentos não se tornem instrumentos de barganha contra os Estados Unidos.

U.S. President Joe Biden holds a semiconductor chip as he speaks at the White House on Feb. 24 prior to signing an executive order aimed at addressing a global semiconductor chip shortage. | REUTERS

Presidente Joe Biden segura um chip semicondutor, durante entrevista coletiva na Casa Branca, em Washington, D.C., em 24 fev. 2021, antes de assinar a ordem executiva para enfrentar a crise global de semicondutores (Crédito: Jonathan Ernst/Reuters)

Uma resposta norte-americana à China

Muito embora o documento não faça referência explicita à China, seria um tanto quanto ingênuo presumir que as relações comerciais sino-americanas nada tem a ver com as motivações por detrás de sua formulação. Não é por acaso que as avaliações focam em produtos e setores, cuja produção depende – ou corre o risco – de depender da China; ou ainda, é estratégica na disputa entre os dois países pela supremacia tecnológica. Entre 2016 e 2019, por exemplo, cerca de 80% das importações de terras raras – insumos insubstituíveis no setor de tecnologia de ponta – para os Estados Unidos eram de origem chinesa. No campo da saúde, de acordo com dados da FDA (Food and Drug Administration, ou Administração de Alimentos e Medicamentos, em português), em agosto de 2019, os Estados Unidos detinham apenas 28% das instalações de fabricação de ingredientes farmacêuticos ativos. As demais fabricantes que fornecem ao mercado americano estavam situadas no exterior, sendo 13% delas chinesas, mais do que o dobro se comparado com o ano de 2010.

No caso dos semicondutores – chips utilizados em smartphones, computadores, automóveis, centros de dados, hardware de telecomunicações etc. –, as empresas americanas são responsáveis por 48% das vendas mundiais, mas as fábricas localizadas nos Estados Unidos representam apenas 12% da produção mundial. O Leste Asiático concentra 75% da fabricação de chips do mundo. A China, por sua vez, projeta se tornar líder do setor até 2030, podendo alcançar uma participação de 35% a 55% no mercado global. Considerando que a demanda chinesa equivale a aproximadamente 50% do consumo mundial de semicondutores, tal objetivo certamente foi recebido como uma ameaça pelos seus concorrentes.

Vale lembrar que, durante o mandato de Donald Trump, os semicondutores já eram motivo de preocupação em meio à guerra comercial entre Estados Unidos e China. Em 2018, após identificar uma série de supostas irregularidades nas práticas comerciais chinesas, as quais incluíam fortes subsídios governamentais, transferência forçada e roubo de propriedade intelectual, o governo estadunidense impôs uma tarifa de 25% sobre a importação de semicondutores da China, o que foi prontamente sucedido por retaliações contra as exportações de produtos americanos. Em 2019, sob alegações de riscos à segurança nacional, o Departamento de Comércio dos Estados Unidos incluiu a Huawei, companhia chinesa altamente dependente da indústria de semicondutores, na Lista de Entidades. Trata-se de um catálogo de empresas estrangeiras proibidas de adquirir produtos, ou serviços, fornecidos por empresas norte-americanas sem a autorização do governo.

Nas últimas semanas do governo Trump, a SMIC, maior fabricante de chips da China, cuja produção necessita de tecnologia americana, também foi adicionada à lista. A ação defensiva dos Estados Unidos não passou ilesa de críticas e questionamentos, em parte provenientes do setor privado, que obtinha 22% de sua receita total com as vendas para a Huawei e outras fabricantes chinesas. No final das contas, os semicondutores representam mais uma lembrança da interdependência econômica e tecnológica entre os dois países.

Poder, autonomia e dependência na cadeia de suprimentos dos EUA

Apesar de se diferenciar de Trump por adotar uma abordagem mais proativa, a nova administração mantém a postura incisiva frente aos anseios chineses. A Huawei e SMIC, por exemplo, permanecem na Lista de Entidades. A Ordem Executiva 14017, por sua vez, dá continuidade a um dos principais motes da campanha presidencial de Biden, Made in America, e reforça a intenção do governo – já anunciada nas Ordens Executivas 14001 e 14005 – de revitalizar a capacidade da indústria doméstica e reduzir a dependência comercial em relação à China e outros concorrentes, que ficou ainda mais evidente com a eclosão da pandemia da covid-19.

Workers in dustproof clothing conduct operations at an Semiconductor Manufacturing International Corporation (SMIC) plant in Beijing. Photo: Imagine China
Funcionários de fábrica da Semiconductor Manufacturing International Corporation (SMIC), em Pequim (Crédito: Imagine China)

Dado o nível elevado de integração da economia global, semelhante ao que encontramos entre os órgãos e sistemas responsáveis pelo funcionamento do corpo humano, as decisões precisam ser tomadas com cautela para que não acarretem efeitos indesejados, como os que se sucederam no caso Rusal. As sanções impostas à gigante russa do alumínio United Company Rusal, em retaliação à interferência de Moscou nas eleições norte-americanas de 2016, desestabilizaram a produção de bens ao redor do mundo, a ponto de o governo americano precisar abrandar as penalidades inicialmente estabelecidas. A análise minuciosa das cadeias de suprimentos, portanto, fornecerá informações confiáveis aos Estados Unidos, visando à antecipação de potenciais crises, à promoção de reformas e à elaboração de estratégias a fim de diversificar a produção de bens essenciais e fortalecer sua competitividade, principalmente diante das ameaças de natureza biológica, cibernética, climática, econômica e geopolítica.

Uma visão mais ampla dos riscos envolvidos não resolverá de imediato, porém, os problemas atinentes às cadeias de suprimentos, que há décadas preocupam os Estados Unidos. O próprio presidente Joe Biden, em recente visita ao estado de Ohio, reconheceu que a economia global não pode ser reiniciada como se fosse um interruptor de luz. A consolidação das cadeias globais de valor é resultado de um longo processo de globalização, que se iniciou de forma tímida em meados de 1870, com o advento da industrialização e do desenvolvimento de novos meios de transporte, até alcançar picos significativos no período pós-Segunda Guerra Mundial, sob a liderança dos Estados Unidos. A partir de 1980, os avanços tecnológicos, sobretudo, no setor de transportes e de telecomunicações, bem como a inclusão das economias do Terceiro Mundo nesse processo de integração, permitiram a atuação das empresas em escala global.

Diversas companhias sediadas nos Estados Unidos e na Europa deslocaram parte de suas atividades para países com normas pouco rígidas, impostos ou salários mais baixos, o que acabou acarretando a concentração geográfica das cadeias de suprimentos, especialmente na China. Assim, os produtos são montados em um determinado país, a partir de componentes provenientes de outros países e, em seguida, vendidos ao redor do mundo. Foi com base nesse modelo operacional – que privilegiava custos menores de produção em detrimento de investimentos em qualidade e sustentabilidade – que a economia global se configurou.

Muito embora tenha apresentado sinais de esgotamento, antes mesmo da pandemia, a globalização não parece ser um processo passível de reversão. E, a julgar pelas recomendações recém-divulgadas no relatório da revisão de 100 dias, não é esse o objetivo dos Estados Unidos. Ao que tudo indica, há dois caminhos mais amplos a serem trilhados: o fortalecimento da indústria nacional e do incremento em inovação, a partir da atuação mais ativa do Estado por meio de incentivos e investimentos – o que contrapõe a política econômica tradicionalmente adotada pelos Estados Unidos; e a reglobalização, que implicará a reorganização dos fluxos globais e a redução, pelo menos parcial, da concentração das cadeias de suprimentos na China.

Diante do reconhecimento de que os Estados Unidos não serão autossuficientes em todos os aspectos, é preferível que haja maior dependência em relação às nações aliadas, se comparado aos seus concorrentes. Para isso, a indicação é clara no sentido de resgatar antigas alianças, bem como estabelecer novas, de modo a criar uma verdadeira frente de tecno-democracias, capazes de apresentar respostas conjuntas aos desafios impostos pela ascensão chinesa. A postura de Joe Biden durante a Cúpula do G7, realizada três dias após a publicação da revisão de 100 dias, demonstra que este plano já está em curso e que os Estados Unidos pretendem levar adiante seu processo de diversificação.

 

* Isabella Frangi Bassani é mestranda em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP – Unicamp – PUC-SP). Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), com período de mobilidade na Universidade de St. Gallen, Suíça, e na Universidade de Tecnologia de Sydney, Austrália. Sua agenda de pesquisa inclui comércio internacional, política internacional, regimes e instituições internacionais.

** Artigo publicado originalmente no site do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais (NEAI/Ippri-Unesp), em 26 jun. 2021. Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, do INCT-INEU.

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