Política Doméstica

Vidas negras: quem se importa?

‘Não consigo respirar’, disse George Floyd, enquanto era sufocado por um policial (Crédito: Francesco Prandoni/Getty Images)

Qualquer reforma ambiciosa da estrutura policial e do sistema de justiça dos EUA esbarra no conservadorismo da sociedade americana

Por Rafael R. Ioris*

O dia 25 de maio passado marcou o primeiro aniversário do assassinato de George Floyd pela polícia da cidade de Minneapolis, em meio a um debate profundo na sociedade norte-americana. Graças ao vídeo de celular feito, há cerca de um ano, por uma moça que presenciou o policial branco Derek Chauvin sufocando o pescoço do afro-americano Floyd por quase dez minutos, o movimento Vidas Negras Importam (Black Lives Matter, em inglês) reacendeu as manifestações de rua em meio à pandemia da covid-19, levando milhões de pessoas a se mobilizarem por uma reforma no sistema policial, que despropocionalmente prende, maltrata e mata pessoas negras nos EUA. A comoção do vídeo foi, de fato, tão intensa que, em abril desse ano, Chauvin foi condenado pelo crime, algo raro no sistema judicial do país que, em geral, tende a absolver policiais mesmo em crimes praticados em serviço.

Embora vitoriosas na obtenção da condenação de um dos assassinos de Floyd (outros três policiais presentes na cena do crime aguardam julgamento) e em pressionar o atual presidente Joe Biden – político de perfil moderado e mesmo conservador no que refere à questão do tratamento policial e judiciário das minorias raciais – a assumir o compromisso eleitoral de buscar reformar os departamentos de polícia (algo que, de fato, ele não pode fazer muito, já que são todos órgãos de autoridade local), as mobilizações contra o racismo estrutural e a violência policial a ele associada expressam chagas abertas naquele país. De fato, no mesmo dia do anúncio da condenação de Chauvin, a adolescente negra Ma’Khia Bryant foi morta pela polícia de Columbus, no estado de Ohio, e vários outros jovens negros também foram mortos por diferentes policiais desde abril passado.

Ainda assim, é inegável que a tragédia envolvendo George Floyd ajudou a redefinir o perfil da mobilização por justiça racial nos EUA, tendo efetivamente servido para trazer um nível de reconhecimento amplo na sociedade sobre tais questões, inclusive entre americanos brancos; algo talvez anteriormente visto apenas na era do Movimento por Direitos Civis da década de 1960. Além das milhares de marchas que tomaram conta das ruas das cidades mais variadas, em tamanho e em localização no vasto território dos EUA, por noites sucessivas em junho do ano passado, muitas companhias se comprometaram a fazer mais para promover a diversificação da sua força de trabalho e criar mecanismos para atrair e promover um maior número de pessoas das minorias raciais entre seus quadros, e jogos das principais ligas profissionais do país  presenciaram demonstrações de apoio a tais causas entre seus jogadores. No mesmo sentido, embora não tenha sido possível manter o nível de demonstrações de rua ao longo dos últimos 12 meses, especialmente dado que, no final do ano passado, houve um recrudescimento fortíssimo dos números da pandemia, a mobilização se tornou mais institucional, mas não menos intensa.

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Manifestantes protestam, na Pennsylvania Avenue, em Washington, D.C.,  em 6 jun. 2020, contra a violência policial e o racismo (Crédito: Drew Angerer/Getty)

Muitos Departamentos de Polícia têm implementado reformas nos procedimentos permitidos aos seus membros, embora muitas destas não cheguem a atender as demandas mais fortes dos movimentos de base, como, em muitos casos, pela eliminação completa dos próprios departamentos e sua substituição por agências de serviço social e promoção de programas de educação de base em comunidades de alto risco. O Ministério da Justiça reestabeleceu forças-tarefa e programas de supervisão, prevenção e punição de crimes de natureza racial (portanto, de jurisdição federal), eliminados pela gestão de Donald Trump. E, de maneira mais prospectiva, a questão da injustiça racial foi ainda mais integrada às conversas diárias da mídia, escolas, igrejas e pessoas em geral, embora ainda haja, certamente, muita divisão nesse tema (entre outros vários) na sociedade como um todo e que se encontra hoje em meio a uma forte polarização ideológica.

De fato, como sociedade tradicionalmente conservadora que é, já se percebe, especialmente entre apoiadores do Partido Republicano e, ainda mais, de Trump, que começa a crescer o clamor por cautela em qualquer tentativa de reforma mais ambiciosa, seja das estruturas policiais, seja do sistema de justiça, em geral. Muitos pais têm resistido à incorporação mais explícita de temas raciais nos currículos escolares, e muitos políticos têm resistido intensamente à ideia de reduzir, ou mesmo eliminar de todo, o orçamento de distritos policiais, especialmente no momento em que se vê que as taxas de homicídios cresceram em várias cidades ao longo do ano passado. No mesmo sentido, as taxas entre os que veem a necessidade de que se melhore as relações inter-raciais no país são vertiginosamente constrastantes. Enquanto três quartos dos democratas percebe essa necessidade, somente um quarto dos republicanos concordam com essa posição.

Portanto, mesmo que o assassinato de George Floyd tenha ajudado a galvanizar a luta por justiça racial nos EUA, ainda há, com certeza, um longo caminho pela frente. Caminho esse que certamente será marcado pela dor e, talvez, mesmo pela morte de outros afro-americanos até que o país consiga melhorar seu tratamento de suas ditas minorias raciais que, efetivamente, continuam sendo tratadas como cidadãos de segunda classe na suposta terra da democracia.

 

* Rafael R. Ioris é professor da Universidade de Denver (EUA) e pesquisador do INCT-INEU.

** Artigo de Opinião publicado originalmente no site A terra é redonda, em 5 jun. 2021. Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, do INCT-INEU.

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