Energia e Meio Ambiente

Veterano John Kerry e os EUA voltam às negociações internacionais sobre Clima

Aplaudido pelo secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon (à dir.), o então secretário de Estado dos EUA, John Kerry, com a neta, assina o Acordo de Paris sobre o Clima, na sede das Nações Unidas, em Nova York, em 22 abr. 2016 (Crédito: Mary Altaffer/AP)

Por Pedro Vasques*

Em 2016, acompanhado de sua neta, John Kerry assinava o Acordo de Paris, representando os Estados Unidos. Esse momento, que se deu no final do governo Barack Obama, foi evocado quatro anos após sua ocorrência no tuíte do antigo senador por Massachusetts e ex-secretário de Estado. Tal lembrança marcava, então, o anúncio da indicação de Kerry ao posto de enviado especial da Presidência para o Clima, ocupando um assento no Conselho Nacional de Segurança. Sua escolha não pode ser considerada propriamente uma surpresa, haja vista sua atuação internacional no âmbito do Executivo federal, o apoio dado, na condição de senador, a projetos de lei que propunham soluções climáticas orientadas para o mercado e a tentativa recente de formar uma coalizão bipartidária para tratar especificamente de clima, denominada World War Zero.

Não se trata da primeira vez que o governo federal destaca alguém para essa tarefa. Veja-se, por exemplo, a atuação de Carol Browner, diretora do Escritório de Política de Energia e Mudança Climática da Casa Branca entre 2009 a 2011, ou de Todd Stern que, indicado por Hillary Clinton, liderou as conversas sobre o tema nas Nações Unidas, chefiando a delegação estadunidense no âmbito das negociações do Acordo de Paris, em 2015.

No caso de Kerry, o ineditismo se dá, exatamente, na alocação dessa posição no interior do Conselho de Segurança.

A despeito de se imaginar que tal organização poderia estar fundamentalmente vinculada aos arranjos políticos internos no contexto de acomodação das várias alianças eleitorais, no tuíte que precede a mencionada foto, Kerry afirma que “a América logo terá um governante que trata a crise climática como a ameaça de segurança nacional que ela é” (tradução livre). Essa abordagem estaria, por sua vez, diretamente vinculada àquela conferida por Kerry, ao identificar o problema como uma “guerra mundial”, em sua tentativa de formar uma coalizão.

Ao tratar da questão como um inimigo que deve ser derrotado, o discurso de Kerry parte da mudança do clima calcada na ação humana como um pressuposto a fim de desenvolver estratégias para lidar com a questão, afastando-se de imediato da abordagem de Trump, que colocava o fenômeno sob constante dúvida.

A primeira delas, ao que parece, implica recuperar o protagonismo abandonado pela administração republicana, não apenas retomando o compromisso dos Estados Unidos para com o Acordo de Paris, mas pressionando para que novas e mais ambiciosas medidas sejam adotadas pelas demais nações, sob o entendimento de que “Paris is not enough”. Ainda que a recuperação da imagem do veterano da Guerra do Vietnã que volta ao front de batalha, desta vez, para combater as mudanças climáticas, não seja propriamente um movimento direcionado à iniciativa privada, Kerry vem-se colocando como um promotor de alternativas que privilegiem o mercado, na busca por conciliar inúmeros interesses.

É o caso, por exemplo, das atividades de extração de gás natural via fracking, ou, em português, faturamento hidráulico. Apesar de ser considerada uma atividade altamente poluente por grupos ambientalistas, tal prática tem tanto o apoio de Kerry, como de Biden. Para ambos, o emprego dessa tecnologia deve ser considerado nos modelos de transição energética em direção a cenários de baixo carbono. Importante lembrar que, no curso da campanha eleitoral, o democrata não aderiu às propostas de banimento da prática e evitou se posicionar sobre o tema, diante dos potenciais desgastes no interior da coalizão formada para apoiar sua candidatura.

Polêmico ‘fracking’ continua na agenda democrata (Crédito: B Christopher/Shutterstock)

Obstáculos das disputas inter e intrapartidárias

Se, no entanto, no plano internacional, o governo dos Estados Unidos busca retomar a dianteira, essa estratégia não pode ignorar o fato de que os últimos quatro anos foram marcados pela adoção de posições opostas, gerando tanto retrocessos imediatos na promoção de uma agenda climática global, como incertezas sobre a capacidade de manter seus compromissos, apesar de seus governantes. Isso significa dizer que a saída do Acordo de Paris no início do mandato de Trump parece colocar no limite – ao menos internacionalmente – a estratégia de gerir o país e suas obrigações a partir de ordens executivas, ante décadas de impasse no Legislativo federal.

Em outras palavras, a dificuldade de aprovar novas normas jurídicas ambientais no Congresso tem impedido a adoção de alternativas menos voláteis, bem como a pactuação de compromissos internacionais vinculantes, suscitando outras maneiras de lidar com o problema. Tendo em vista que as soluções viabilizadas se caracterizam por ações do Executivo, porém, estas ficam marcadas por um ciclo de incertezas que se renova a cada pleito eleitoral presidencial.

Mesmo considerando-se a possibilidade de que os democratas consigam maioria no Senado na eleição de 2020, é difícil imaginar a formação de convergências suficientes para a aprovação de projetos de lei no entorno do tema climático. Lembra-se que não é raro observar divergências internas no Partido Democrata, as quais acabam por inviabilizar projetos nesse sentido. Com isso, é preciso dizer que, no centro das conquistas ambientalistas pretéritas verificadas no Legislativo federal, estão os republicanos moderados e sua oposição histórica aos projetos de desmonte das instituições ambientais norte-americanas.

De todo modo, se a esperança de avançar no Legislativo depende em larga medida da formação de coalizões bipartidárias – condicionando, inclusive, as tentativas de recuperação do protagonismo dos Estados Unidos no plano externo –, é preciso lembrar também que em poucos temas ambientais os republicanos agiram de forma tão convergente quanto na oposição à adoção de compromissos climáticos internacionais vinculantes. Resta saber se, diante da atual conjuntura, haverá alguma alteração nesse cenário, permitindo arranjos convergentes entre democratas e republicanos no Congresso.

Isso porque, ainda que Trump tenha sido derrotado e o cenário do Legislativo federal se construa na direção de um empasse, não há sinais evidentes de inflexão negativa dos movimentos conservadores contrários à agenda climático-ambiental. Pelo contrário: se existem indícios para se imaginar que a derrota da atual administração republicana estaria ligada à má gestão da crise sanitária, o que teria rearranjado as prioridades de escolha dos eleitores, acredita-se que, uma vez superada a pandemia, haverá nova reacomodação das agendas.

Nesse sentido, mesmo acreditando que economia e saúde se mantenham como protagonistas, a discussão ambiental e, em especial, a climática, voltará a mobilizar a atuação de grupos conservadores que, desde a década de 1980, vêm-se organizando e se antagonizando com organizações ambientalistas, como é o caso, por exemplo, da Heritage Foundation. Valendo-se da proposta de recuperação dos verdadeiros valores norte-americanos, para os conservadores, o ambientalismo (mesmo aquele orientado para o mercado) surge como um antagonista à liberdade, ao direito divino de apropriação da natureza, e, sobretudo, ao modo de vida e à engenhosidade próprios dos herdeiros do processo de colonização do país.

President Trump spoke at a Heritage Foundation meeting in October.
Tom Brenner/The New York Times)

Essas instituições e indivíduos, que ajudaram a impedir avanços em legislações como a Clean Air Act, a Clean Water Act, a assinatura do Protocolo de Kyoto e a retirada dos Estados Unidos do Acordo de Paris, a despeito de perderem influência direta sobre a administração federal, continuam a desempenhar papéis importantes na sociedade, ameaçando novos projetos progressistas que sinalizem para avanços da legislação ambiental que impliquem violação de seus valores.

Reorientação estadunidense na ação climático-ambiental

Como dito, um dos principais e históricos argumentos republicanos contrários a medidas governamentais de gestão do clima reside na imposição de restrições externas ao modo de vida dos estadunidenses. Essa orientação pode ser transposta de forma simplificada na equação: investimentos no combate às mudanças climáticas resultam em mais impostos e custo de vida, e menos liberdades e oportunidades. Em sua campanha eleitoral, Biden apostou na reorientação desse argumento. Ou seja, em vez de associar o desafio climático a um cenário recessivo, negativo, apontou tal ação como motor para promoção da prosperidade dos cidadãos dos Estados Unidos.

Adotando elementos do Green New Deal democrata, a campanha endereçou a agenda ambiental a partir do seu potencial de aceleração da economia, fazendo convergir múltiplos interesses. Sob tal ângulo, a ação do governo federal deveria se concentrar no plano interno e ante a expectativa de que tais medidas auxiliem na alavancagem da economia nacional, notadamente, via investimentos públicos. A inserção de Kerry no Conselho de Segurança Nacional simboliza essa orientação, tendo em vista as atribuições inerentes da instituição, isto é, de olhar para a política externa tendo em vista os interesses próprios do país.

Representative Alexandria Ocasio-Cortez of New York and Senator Edward J. Markey of Massachusetts, right, announcing the resolution on Feb. 7.
Crédito: Pete Marovich/The New York Times)

Considerando-se esses elementos, espera-se que a atuação internacional dos Estados Unidos na agenda do clima será caracterizada pela restrição de apoios e investimentos externos – em prol de ações nacionalmente localizadas –, pelo enaltecimento das promessas e das medidas do novo governo – como forma de dar legitimidade às suas ações – e, com base nisso, pela criação de arranjos e tensões na direção de formular e cobrar a adesão a compromissos ambientais por parte de todos os países, com destaque para grandes potências, como a China.

Nesse contexto, para a América Latina, imagina-se que essa abordagem, caracterizada pela acentuação das demandas por adesão a obrigações vinculantes e pelo enxugamento das oportunidades de apoio e financiamento, também será mantida. Dessa forma, acirramentos e tensões tendem a ser observados apenas nas hipóteses de antagonismos diretos, como no caso da postura atualmente adotada pelo governo brasileiro em temas como desmatamento, incêndios florestais, desmantelamento de instituições, perseguições de militantes e funcionários públicos etc.

Por fim, mesmo que as indicações de Biden, entre elas a de John Kerry, sinalizem para um cenário mais progressista, ainda é muito cedo para avaliar o que será possível de ser feito pela futura administração democrata. Isso é especialmente verdadeiro, se considerarmos que a posse do novo presidente deve ocorrer em meio a um momento crítico da pandemia, cujo único horizonte de arrefecimento parece ser a expectativa de uma vacina. Será somente quando do início de implementação das iniciativas de recuperação da economia que Biden terá suas propostas de campanha confrontadas. Afinal, durante todo pleito, o candidato reiteradamente insistiu em que sua plataforma para geração de empregos teria como base a promoção de uma ampla agenda ambiental, desenvolvida para encaminhar os Estados Unidos na direção de uma economia de baixo carbono.

 

* Pedro Vasques é pós-doutorando pelo INCT-INEU, pesquisador associado do Cedec e doutor em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).

** Recebido em 1º dez. 2020. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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