Política Doméstica

Liberdade religiosa para quem?

Manifestante pede liberdade religiosa em protesto diante da Suprema Corte dos EUA, Washington, D.C., 28 abr. 2015 (Crédito: Olivier Douliery/Getty Images)

Por Luiza R. Mateo*

O discurso do presidente Jair Bolsonaro na abertura da Assembleia Geral da ONU deste ano surpreendeu muitos brasileiros ao mencionar a ameaça da “cristofobia” no plano internacional. Não somente porque no Brasil os aderentes a denominações cristãs não são alvo particular de perseguição religiosa, destinada, sobretudo, aos praticantes de religiões de matriz africana, mas porque, tradicionalmente, a liberdade religiosa não é uma preocupação central da política externa brasileira.

Para quem acompanhou, na sequência, o discurso de Donald Trump, viu reafirmadas a denúncia de perseguição a minorias religiosas e a defesa da liberdade religiosa como direito humano. Diferentemente do Brasil, nos Estados Unidos, esta é uma questão há décadas presente na agenda de política externa, o que se deve, em especial, à consolidação do papel que conservadores religiosos assumiram no jogo político em Washington.

Ainda durante a Guerra Fria, a defesa da liberdade religiosa apareceu como questão associada ao combate ao comunismo internacional. Foi durante a década de 1990, porém, que a defesa internacional da liberdade fundamental se institucionaliza como prática no governo estadunidense.

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Outdoor da National Association of Manufacturers, Dubuque, Iowa, 1940 (Crédito: John Vachon/Library of Congress)

Com a aprovação da International Religious Freedom Act (IRFA) em outubro 1998, no final do governo Clinton, os EUA criaram uma estrutura de monitoramento da perseguição a minorias e de violações à liberdade religiosa. A criação da United States Commission on International Religious Freedom (USCIRF), no âmbito do Departamento de Estado, objetivava avançar globalmente a norma da liberdade religiosa, por meio de relatórios anuais sobre o status da perseguição a minorias (visando à estratégia naming and shaming de constrangimento de violadores), instituindo condicionalidades para elegibilidade de ajuda externa, além de recomendações diplomáticas que incluiriam sanções.

Religião e política

O movimento em defesa da liberdade religiosa na política externa dos EUA surge como “aliança improvável” entre diversos setores de advocacy em direitos humanos, com lideranças de diversas denominações religiosas, incluindo vertentes do protestantismo tradicional e do catolicismo progressista. Em “Deus abençoe a América: religião, política e relações internacionais dos Estados Unidos” (2011), eu chamo atenção para o papel da Direita Cristã como ator central na articulação do lobby em defesa da liberdade religiosa nos EUA.

Além da força da “bancada religiosa” no Legislativo, o apoio de grupos de interesse religiosos organizados, sobretudo no campo protestante evangélico, foi essencial paras as duas eleições de George W. Bush, em 2000 e 2004. Naquela administração republicana, personagens ligados à Direita Cristã assumiram postos importantes na administração, incluindo a própria USCIRF. Ainda hoje, a comissão é composta por muitos ativistas ligados à causa conservadora cristã – como o Family Research Council, o Focus on the Family, o Patriot Voices, para citar alguns – e envolvidos inclusive com proselitismo global.

De Bill Clinton a Barack Obama, a atuação da USCIRF esteve mais concentrada em uma abordagem de direitos humanos de minorias religiosas. Contou, ainda, com apoio bipartidário no Congresso para aprofundar o compromisso com a norma, por meio da Near East and South Central Asia Religious Freedom Act (de 2014) e da emenda ao IRFA em 2016 (proposta pelo congressista Frank R. Wolf). Na verdade, o discurso em torno da liberdade religiosa não assumiu, desde o final dos anos 1990, um foco exclusivo nas denominações cristãs, ainda que a perseguição a minorias cristãs estivesse expressa nos diversos relatórios anuais sobre liberdade religiosa internacional.

A questão que diferencia a administração Trump de seus predecessores é, portanto, a centralidade dos valores judaico-cristãos e a defesa da liberdade religiosa para os cristãos, que, por vezes, choca-se com outros direitos constitucionais e com o interesse público. Isso porque, junto com a questão da liberdade religiosa, entra em cena uma abordagem conservadora no que tange aos direitos sexuais e reprodutivos, casamento homoafetivo, entre outros. O que era uma abordagem ampla e multirreligiosa, ancorada no arcabouço dos direitos humanos, passou a ser uma pauta dominada por conservadores morais, majoritariamente evangélicos.

Na ordem executiva 13926, a Casa Branca aponta a defesa da liberdade religiosa internacional como questão moral e de segurança nacional para os EUA, reafirmando o compromisso de sua Estratégia de Segurança Nacional (NSS, na sigla em inglês) de 2017: “os pais fundadores entendiam a liberdade religiosa não como uma criação do Estado, mas como um dom de Deus para cada pessoa e um direito que é fundamental ao florescimento de nossa sociedade”. Se a dimensão discursiva não é necessariamente nova, devemos atentar também para a ênfase, com a qual o alto escalão da administração Trump adere à pauta da liberdade religiosa.

Desde que assumiu o Departamento de Estado, em abril de 2018, Mike Pompeo promoveu três iniciativas importantes em relação à promoção da liberdade religiosa internacional: o Ministerial on Religious Freedom, criado em 2018; a Commission on Unalienable Rights, em 2019; e o International Religious Freedom Alliance, em 2020. A liberdade religiosa aparece, frequentemente, em seus discursos de política externa, associada muitas vezes às minorias cristãs perseguidas, ou ao mau desempenho de liberdade religiosa em países estratégicos, como Turquia, Rússia, Irã e, sobretudo, China.

Este foi o caso destacado na visita de Pompeo ao Vaticano, em setembro deste ano, quando o secretário de Estado discursou, expondo a ameaça da perseguição a minorias cristãs ao redor do mundo, com atenção especial aos religiosos perseguidos na China, entre a minoria mulçumana uigure em Xinjiang, budistas no Tibete e fiéis protestantes e do Falun Gong. Em outras oportunidades, Pompeo também criticou severamente a China, acusando-a de manter “campos de concentração” com milhões de perseguidos religiosos.

Michael Pompeo speaks during a U.S. Embassy to the Holy Sees symposium on Religious Freedom in Rome, on Sept. 30.
Pompeo discursa em simpósio sobre liberdade religiosa, Roma, 30 set. 2020 (Crédito: Alessia Pierdomenico/Bloomberg)

O vice-presidente dos EUA, Mike Pence, também condenou publicamente as infrações à liberdade religiosa na China, reforçando o posicionamento de Washington que, nos últimos quatro anos, não deu destaque às infrações à liberdade religiosa cometidas por aliados como Arábia Saudita e Índia. Os relatórios anuais da USCIRF têm sido particularmente duros na condenação de países de maioria mulçumana, principalmente, os ex-soviéticos da Ásia Central – Azerbaijão, Cazaquistão, Quirguistão, Tadjiquistão, Turcomenistão e Uzbequistão.

Em Finding Faith in Foreign Policy (2019), Gregorio Bettiza descreve Pompeo e Pence como elos fortes entre o Executivo americano e a Direita Cristã, representada hoje pelo próprio ambassador-at-large for International Religious Freedom, Sam Brownback, e pelo diretor da USCIRF, Tony Perkin. No campo doméstico, o grupo de interesse conservador cristão avança nos Legislativos, tanto federal como estadual. O lobby articulado mira em questões como as orações nas escolas, materializado na guidance” letter do Departamento de Educação (de janeiro 2020), que reforça o direito constitucional à livre expressão religiosa.

Destaca-se, ainda neste campo, a questão da “school choice” – com apoio de Trump ao projeto de lei Education Freedom Scholarships and Opportunities Act, garantindo suporte fiscal para estudantes frequentarem escolas religiosas privadas e apoio federal ao homeschooling.

No âmbito estadual e local, destaca-se o chamado Project Blitz, criado para ser uma espécie de “repertório de projetos de lei” para que legisladores e lobistas pressionem governos e mudanças legislativas. Foi articulado pela Congressional Prayer Caucus Foundation, que argumenta defender o livre exercício da tradição e dos valores religiosos judaico-cristãos no espaço público. Desde 2017, pelo menos 75 projetos de lei foram propostos em mais de 20 estados, inspirados no Project Blitz playbook.

A força e o peso do voto religioso

As “In God We Trust Bills” acabam representando, do Alasca à Florida, a instrumentalização da defesa da liberdade religiosa para defender o direito a demonstrações religiosas em locais públicos, assim como o estudo religioso nas escolas, e dar vez a medidas discriminatórias justificadas por “crença particular” – como prestadores de serviço que se negam a atender a clientes LGBTQ+, ou a garantir tratamento médico relacionado à interrupção de gravidez.

Este avanço conta com apoio da Presidência Trump, que, já no início do mandato, em maio de 2017, impulsionou a pauta da liberdade religiosa com a ordem executiva Promoting Free Speech and Religious Liberty. Na prática, o decreto presidencial em nada altera os diretos resguardados pela Primeira Emenda constitucional e pela jurisdição estabelecida pela Suprema Corte em matéria de liberdade religiosa, mas reforça os avanços do lobby religioso com o respaldo de Washington. Pode-se interpretar a prontidão em apoiar esta causa tão particular da Direita Cristã como “recompensa” ao massivo apoio nas eleições de 2016, em que 77% dos protestantes evangélicos brancos votaram em Trump, enquanto apenas 16% votaram na democrata Hillary Clinton, segundo pesquisa conduzida pelo Pew research Center.

E foi justamente para este público que Trump dirigiu sua atenção, ao longo da corrida eleitoral de 2020, com a expectativa de manter o bloco de apoio religioso. Segundo sistematização do Gallup, Trump recebeu entre 76% a 81% dos votos de evangélicos brancos, enquanto apenas 18% a 24% teriam votado para Biden nestas eleições. O desempenho de Trump entre os conservadores religiosos foi superior mesmo ao de George W. Bush. O que se observa, portanto, é a manutenção de uma importante base de apoio ao Partido Republicano, consolidada ainda na década de 1980, a partir da eleição de Ronald Reagan.

FILE: U.S. President Donald Trump, center, prays during an 'Evangelicals for Trump' Coalition launch event in Miami, Florida, U.S., on Friday, Jan. 3, 2020. Monday, January 20, 2020, marks the third anniversary of U.S. President Donald Trump's inauguration. Our editors select the best archive images looking back over Trumps term in office. Photographer: Marco Bello/Bloomberg via Getty Images
Trump em evento da coalizão ‘Evangelicals for Trump’, Miami, 3 jan. 2020 (Crédito: Marco Bello/Bloomberg/Getty Images)

Para este eleitorado religioso, além do apoio às pautas de liberdade religiosa, school choice, antiaborto e pró-Israel, pesou a nomeação de Amy Coney Barrett para a Suprema Corte. Para avançar entre os mais moderados, Trump descreveu seu adversário, recorrentemente, como um não-religioso (em suas palavras, against God). Em Ohio, afirmou que o candidato democrata estaria guiando uma agenda da esquerda radical que “take away your guns, destroy your Second Amendment, no religion, no anything, hurt the Bible, hurt God”.

Não é de hoje que Trump tenta desqualificar os oponentes com base em preferências e comportamento religioso, especialmente em momento de campanha, quando o voto religioso se torna uma arma poderosa. Permeado de marcadores do conservadorismo moral, seu discurso enfatizou o eixo tradição, família e nacionalismo cristão como marcadores identitários da americanidade, reforçando a “guerra cultural” e a polarização política.

Na contramão, Biden tentou garantir o apoio dos religiosos moderados, ganhando alguma margem, principalmente, com os católicos. Nesta eleição, Biden recebeu 52% dos votos católicos (versus 47% votantes de Trump), enquanto em 2016 apenas 46% deles votaram em Hillary Clinton (e 50% em Trump). Esse bloco de eleitores foi especialmente importante em estados-chave na disputa pelo colégio eleitoral, como Pensilvânia, Michigan e Wisconsin.

Durante a corrida presidencial, Biden recebeu o apoio importante da Vote Common Good, uma organização progressista que busca arregimentar o voto religioso (e sobretudo cristão) em oposição a Trump. Em outubro, a organização lançou uma carta de apoio à candidatura de Biden, reunindo 1.600 assinaturas de lideranças religiosas, sobretudo, entre católicos, evangélicos e protestantes tradicionais. Destacam-se ainda outros movimentos de apoio à candidatura democrata, como o Pro-Life Evangelicals for Biden (liderado por Jerushah Duford, autora gospel e neta de Billy Graham), Not Our Faith e Evangelicals for Biden.

Ainda assim, o voto religioso nos EUA se manteve fiel ao Partido Republicano, em especial, o apoio dos evangélicos brancos que costumam frequentar o culto regularmente. Foi importante, inclusive, em termos de mobilização e de comparecimento para o voto, incentivado pela capilaridade de comunicação propiciada pelas estruturas da Direita Cristã. O que se destaca como tendência para o futuro são, no entanto, as pressões demográficas que apontam para o aumento dos chamados nones (não-religiosos), principalmente entre a parcela mais jovem e urbana nos EUA.

 

* Luiza R. Mateo é doutora em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas, professora no curso de Relações Internacionais e no Mestrado Profissional em Governança Global e Formulação de Políticas Internacionais na PUC-SP e pesquisadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU). Contato: luizamateo@gmail.com.

** Recebido em 19 out. 2020. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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