Eleições

Falta de unidade de regras eleitorais nos EUA abre flanco a iliberais como Trump

(Crédito: Somnuk Jansinka/Shutterstock/Paul Spella/The Atlantic)

Mesmo sem evidência de fraude no pleito, sistema do país amplia percepção de favorecimento a um dos lados

Por Felipe Loureiro*

Chocou o mundo assistir a um presidente norte-americano afirmar enfaticamente que as eleições nos Estados Unidos teriam sido roubadas. Por mais que estivesse óbvio que Donald Trump daria esse passo, experimentar a história é diferente de imaginá-la.

A teoria da conspiração trumpista é a de que os democratas, especialmente nas grandes cidades por eles administradas — Filadélfia, Atlanta e Phoenix —, estariam adicionando uma quantidade gigantesca de votos fraudulentos por correio, mudando o resultado das eleições após o fechamento das urnas.

Em que pese a completa ausência de evidência de fraude no pleito e o grave atentado à democracia que as falas e os atos de Trump simbolizam, o sistema eleitoral norte-americano acaba facilitando o trabalho de políticos autoritários como o republicano, que se valem das graves deficiências do sistema para golpeá-lo.

O presidente Donald Trump durante discurso na Casa Branca na última quinta (5) no qual afirmou, sem apresentar provas, que houve fraude na eleição O presidente Donald Trump durante discurso na Casa Branca, em 5 nov. 2020, no qual afirmou, sem apresentar provas, que houve fraude na eleição (Brendan Smialowski/AFP)

A raiz dessas deficiências está na profunda descentralização político-administrativa da estrutura eleitoral norte-americana, somada à ausência de instituições apartidárias e especializadas em dirimir disputas eleitorais.

Na prática, nem se pode dizer que exista algo chamado sistema eleitoral norte-americano. O que existe, de fato, é um caleidoscópio de regras e instituições espalhadas por mais de 8.000 jurisdições eleitorais, sobrepostas por inúmeras particularidades legais de cada estado.

Esse caleidoscópio envolve desde aspectos como o formato da cédula e os tipos de máquinas usadas para contabilizar votos até a organização e funcionamento dos locais de votação, datas e prazos eleitorais, procedimentos de contagem e recontagem e instrumentos de contestação de resultados.

É verdade que, depois do fracasso estrondoso das eleições presidenciais de 2000, quando os distritos da Flórida nem sequer conseguiram chegar a um consenso sobre o padrão de recontagem de votos, o Congresso norte-americano aprovou uma lei que baniu as famigeradas cédulas de perfuração, responsáveis pela confusão, além de ter instituído uma comissão para assessorar distritos e estados sobre boas práticas eleitorais.

Os resultados dessa iniciativa, porém, foram muito modestos. A tal comissão de assessoramento pouco avançou no sentido de estimular estados e distritos a padronizar regras e instituições eleitorais.

Outros empreendimentos, como o Centro Eletrônico de Registro de Informações (Eric, na sigla em inglês), organização sem fins lucrativos para estimular estados a unificar bases de dados de eleitores, ainda estão longe de abarcar a totalidade dos distritos.

Assim, a cada novo ciclo eleitoral, abre-se a possibilidade para graves erros e falhas, colocando a legitimidade do sistema em xeque, mesmo quando esses problemas não decorrem de intenções fraudulentas.

Como não há padronização de equipamentos, normas e instituições, é impossível que o governo federal — e até mesmo governos estaduais, em casos de grande autonomia distrital — desenvolva programas de treinamento de pessoal e viabilize a infraestrutura eleitoral necessária e de ponta para todas as jurisdições, garantindo a realização de eleições seguras, organizadas e capazes de entregar resultados rapidamente.

Ao contrário, sem financiamento satisfatório e com pouco apoio do governo federal, muitos distritos e estados se tornam reféns de máquinas de contagem pouco confiáveis, autoridades eleitorais inexperientes e voluntários sem treinamento adequado, o que abre a possibilidade, especialmente em eleições apertadas, para que erros e incompetências administrativas de alguns poucos distritos afetem o resultado, gerando desconfiança em todo processo, mesmo que a maioria absoluta das jurisdições tenha atuado impecavelmente.

Exemplos nesse sentido são abundantes. Em 2004, o estado de Washington protagonizou um dos pleitos mais disputados da história dos Executivos estaduais do país.

Mesmo que nada tenha apontado para o caráter proposital desses erros, e que não seja possível saber quem ganharia se os tais votos irregulares tivessem sido identificados durante a contagem, o fato é que os republicanos deixaram o pleito acusando o processo de fraudulento, e as instituições eleitorais estaduais, de corruptas.

Denúncias semelhantes ocorreram nas eleições para o Senado na Flórida em 2018 — também resultantes, ao que tudo indica, de falha humana.

O problema se deveu a um atraso de apenas dois minutos no envio do certificado de recontagem de votos por um dos distritos, o que causou a anulação do certificado, em prejuízo do candidato republicano.

Ao final, o erro na Flórida em 2018 não teve grandes consequências, mas deixou a percepção de que as autoridades eleitorais teriam trabalhado para favorecer um dos lados.

Essa percepção é enormemente potencializada nos Estados Unidos pelo fato de o país não ter nada que se assemelhe a uma justiça eleitoral.

Exemplo grotesco dessa potencialização se deu com a eleição do atual governador republicano da Geórgia, Brian Kemp, em 2018. Kemp concorreu ao governo estadual ainda como secretário de Estado, o que lhe conferia a prerrogativa de administrar as eleições, nas quais ele próprio, Kemp, era candidato.

Por meio de regras draconianas de registro de eleitores, procedimentos questionáveis para verificação de votos por correio e enorme negligência com a guarda da base de dados dos eleitores — terceirizada para uma universidade, que se provaria facilmente suscetível à invasão —, Kemp venceu as eleições por uma diferença de menos de 55 mil votos.

Em qualquer pleito eleitoral, a percepção de legitimidade é tão importante quanto a realidade dos fatos. Há casos, porém, em que percepção e realidade se alinham. Em 2018, na Carolina do Norte, houve um dos únicos episódios comprovados de fraude eleitoral — paradoxalmente perpetrada pelos republicanos.

Na eleição para deputado federal para o nono distrito do estado, Mark Harris se utilizou de um operador político para forjar centenas de votos por correio. A eleição foi anulada, e um novo pleito, realizado em 2019, sem a participação de Harris.

Com exceção desse caso, estudiosos são consensuais em concluir que fraudes eleitorais são raríssimas hoje nos EUA.

O mesmo já não se pode dizer sobre estratégias de supressão de voto, incompetências administrativas e falhas humanas. Na era pré-Trump, essas deficiências já traziam perigo à legitimidade de eleições; agora, com o presidente em modo explicitamente golpista, qualquer deslize pode ser fatal, mesmo que nada tenha tido de intencional.

 

* Felipe Loureiro é pesquisador do INCT-INEU e professor da USP.

** Publicado originalmente no site da Folha de S. Paulo, em 7 nov. 2020. Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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