América Latina

Na relação EUA-México, o que resta do progressismo do governo Obrador?

Trump e o presidente do México, Andrés Manuel López Obrador, em evento no Rose Garden da Casa Branca, em 8 de jul. 2020, em Washington, D.C. (Crédito da imagem: Evan Vucci/AP)

Por Luiza Valentim Munhoz e Karen Fernandez Costa*

O ano de 2018 foi marcado pela eleição de Andrés Manuel López Obrador (AMLO) no México. Sua vitória surpreendeu em razão do contexto latino-americano tomado pela ascensão de lideranças alinhadas ao espectro político da direita, mas também pela própria história política do México, caracterizada por 70 anos de domínio do Partido Institucional (PRI).

Alicerçado no Movimiento Regeneración Nacional (Morena), partido criado como movimento político de esquerda, Obrador se elegeu, apresentando-se como protagonista de uma grande transformação (a quarta na histórica mexicana). Esta transformação teria como égide o combate à corrupção, à desigualdade e aos privilégios, tendo em vista a melhora do nível de vida e o acesso aos direitos por parte da população. Defendia-se a nacionalização de empresas estratégicas para o Estado e a execução de grandes obras de infraestrutura.

Conforme o documento do Plano de Desenvolvimento do governo, a primeira transformação diz respeito à substituição da ordem colonial e instituição da república mexicana; a segunda, à superação do conservadorismo junto à intervenção estrangeira; e a terceira, à Revolução Mexicana, que pôs fim ao Porfiriato, em 1911.

Promessa de revisão na relação com os EUA

A eleição de López Obrador representou também uma manifestação da insatisfação e da rejeição da relação de subordinação entre Estados Unidos e México. O então candidato criticava os ataques racistas e a culpabilização dos mexicanos e migrantes centro-americanos por parte do governo estadunidense. Crítico à relação até então construída pelo governo do presidente Enrique Peña Nieto (2012-2018), AMLO declarava que respeitava a relação construída entre os dois países, bem como reconhecia a interligação de ambos em diversos assuntos, mas não toleraria mais desrespeitos à identidade mexicana.

Ainda que defendendo um low profile em política externa, deixou claro que privilegiaria o pragmatismo e a autonomia nos mais diversos assuntos. Além da defesa de temas importantes para o México, o presidente manifestou sua recusa em aceitar o muro que o americano Donald Trump pretendia construir na fronteira ao sul dos Estados Unidos.

Como candidato, Obrador prometeu enfrentar, por meio da negociação do que viria a ser o USMCA (o acordo de livre-comércio entre EUA, México e Canadá agora em vigor), temas que afetam negativamente setores internos, como os agricultores e as pequenas e médias empresas. O país demandaria, também, segundo seu plano, políticas voltadas para o desenvolvimento e para a redução da pobreza e da desigualdade. Além disso, seria demandado um trato mais respeitoso em relação aos mexicanos que vivem nos Estados Unidos.

Com a evolução de sua candidatura e após sua posse, o tom de firmeza para com os Estados Unidos e essas negociações passou a ser substituído por uma relação bastante amigável com o governo Trump. Pela justificativa da manutenção da boa relação econômica e do avanço do acordo, ao qual Trump ameaçava colocar um fim, Obrador cooperou com os Estados Unidos em seus pedidos em relação à fronteira mexicana.

Cabe lembrar que a “boa relação econômica” significava deter as ameaças propagadas por Trump de taxação de todas as importações mexicanas em 5%, com previsão de alcançar 25%, em poucos meses.  As ameaças resultaram no pacto em que o governo mexicano se comprometeu a garantir o controle mais efetivo das fronteiras com a criação de um corpo militar específico – a Guarda Nacional – para este propósito. Foram estabelecidas redes de patrulhamento e medidas de controle de migrantes centro-americanos, a despeito do trato mais humano prometido pelo presidente.

A negociação do acordo tampouco progrediu em temas que constavam no plano de Obrador. Entre as principais mudanças trazidas pelo USMCA estão: i) proibição de que os integrantes firmem acordos de livre-comércio com países que não são considerados economias de mercado, em uma tentativa de conter a participação chinesa nos produtos produzidos no continente, sobretudo no México; ii) exigência de que o valor do conteúdo regional dos automóveis passe de 62,5% a 75% para partes essenciais, 70%, nas principais, e 65%, nas complementares; iii) e criação da cláusula de valor de conteúdo laboral (VCR), que estabelece que 40% do valor agregado dos veículos deve ser produzido por trabalhadores que ganhem ao menos US$ 16 por hora.

Esta última inviabilizaria a produção de automóveis no México, que apesar da política de aumento de salários de Obrador, pratica, no setor manufatureiro, um salário-mínimo por hora de US$ 2,4. Há, no entanto, disposições iniciais mais flexíveis e graduais no que se refere ao último ponto.

O avanço em tais temas reforça, assim, a concentração de atividades de inovação e tecnologia nos Estados Unidos e no Canadá e o papel do México como produtor de bens de baixa e média tecnologia. Agrava-se a concentração da atividade produtiva mexicana nas maquilas, que, mesmo que façam parte de um setor bastante heterogêneo, têm contribuído para a desigualdade regional mexicana por concentrarem a maior parte da atividade econômica do país ao norte. Os procedimentos mais flexíveis no cálculo da VCR para setores de menor valor agregado são, ainda, agravantes.

Manutenção do status quo

Nos embalos de tais negociações, nos dias 8 e 9 de julho, Obrador viajou para Washington para se reunir com Trump e celebrar o novo acordo comercial entre os Estados Unidos, Canadá e México (USMCA). Por sua condição de pré-candidato e pelo perfil de Trump, tal visita é considerada por muitos analistas como um erro. Acredita-se que Trump esteja mirando na conquista do voto da grande comunidade migrante dos Estados Unidos, fazendo uma aproximação com Obrador. Esta traria custos não apenas pela correlação que muitos já estão fazendo com um possível apoio eleitoral – que contradiz a defesa pelo respeito no trato aos mexicanos, os quais Trump reconhecidamente despreza e culpabiliza – mas, também, porque temas polêmicos poderiam ser trazidos à tona em tal reunião, descredibilizando a figura mexicana.

O encontro foi marcado por trocas mútuas de elogios, por um tom discursivo ameno por parte de Trump em relação aos mexicanos e por manifestas declarações a favor da cooperação bilateral.

Obrador defende que é possível nutrir uma boa relação com os Estados Unidos, mantendo o respeito, a dignidade, a independência e a soberania no país. É inegável, no entanto, que o momento é pouco favorável a tal visita, em razão dos rumores eleitorais e, também, pelo fato de ser a primeira viagem internacional que o presidente, até então neutro nas relações internacionais, realiza.

Dessa forma, a defesa de uma posição autônoma e a favor dos objetivos mexicanos parece distante do que tem sido praticado pelo presidente em sua relação com os Estados Unidos. Em razão da defesa do estabelecimento do USMCA, AMLO tem aceitado, sob o discurso do pragmatismo, que os interesses norte-americanos prevaleçam sobre o projeto, ainda que não disruptivo, reformador, que pretendia construir.

Para além de tudo isso, a emergência da pandemia do COVID-19 expôs uma faceta ainda menos agradável do governo Obrador, autodenominado progressista e herdeiro do que seria a quarta transformação.

Má gestão, inércia e apatia diante da COVID-19

O México teve seu primeiro caso de contágio em 28 de fevereiro e adentrou, menos de um mês depois, no estágio de transmissão comunitária do vírus. Frente a isso, o presidente teve uma postura inicial negacionista muito semelhante à adotada por Jair Bolsonaro, no Brasil, e por outros governos de extrema-direita.

Diante do agravamento da crise, em meados de 20 de março, foi anunciada a suspensão das atividades escolares e, a partir de uma iniciativa dos Estados Unidos, as fronteiras entre os dois países foram decretadas fechadas, a despeito da continuidade do livre-trânsito por parte de outros países.

Da mesma forma que no Brasil, ainda que cronologicamente um passo atrás na evolução da crise, foi decretada, no início de junho, a reabertura econômica gradual, a despeito do crescente número de casos, que já contavam 10 mil. Assim, a curva de contágio de ambos os países, marcados pelo isolamento parcial e por fases que avançam e recuam de forma confusa para a maior parte da população, é bastante semelhante.

O México, que no presente momento conta com 252.165 infectados e 30.366 mortos, continua a refletir a ansiedade por parte dos governantes em reestabelecer a atividade econômica, em um país que, além da falta de infraestrutura em número de médicos e leitos, possui como agravante o grande número de pessoas que são parte do grupo de risco. Em razão dos problemas de obesidade e diabetes, que são consequência da má nutrição, grande parte da população mexicana precisaria de cuidados médicos.

Para além dos efeitos da crise na saúde, o atual governo mexicano parece não compreender a dimensão de seu impacto econômico e social. Obrador não anunciou, até o presente momento, nenhum programa de resgate econômico para empresas, ou de garantia da manutenção de empregos. Segundo o jornal The New York Times, mais empregos foram perdidos em abril do que os criados em 2019. Além disso, de acordo com a mesma fonte, 10 milhões de pessoas poderiam cair na pobreza neste ano.

Como reflexo de sua personalidade, analisada, muitas vezes, como teimosa, o presidente afirma acreditar que somente a permanência dos apoios sociais já existentes bastará para enfrentar a crise. Para além do adiantamento da entrega dos benefícios a pessoas já inscritas nos programas sociais, que abarcam menos da metade da população em situação de pobreza, o governo divulgou apenas a abertura de microcrédito às classes baixas e médias e a pequenas empresas, no valor de cerca de US$ 1.000. Esta nova e única iniciativa corresponde a menos de 1% do Produto Interno Bruto (PIB) do país.

À parte deste programa de créditos, não há nenhum programa de transferência de renda, como adotado por grande parte dos países acometidos pela crise. Deste modo, não apenas as empresas estão desprotegidas, mas os trabalhadores formais e, principalmente, os informais.

O país se recusa a se endividar e a incrementar o recebimento de crédito por parte do Fundo Monetário Internacional (FMI), como outros países têm feito. Esta posição diz respeito, em grande parte, à difícil história financeira do país e à interpretação de Obrador a respeito do não funcionamento de resgates desse tipo, cujos custos da contração de dívidas, segundo ele, recaíram muitos anos sobre a população.

Ainda que identificado como um político à esquerda do espectro político, Obrador cortou programas federais e enxugou profundamente a estrutura estatal a fim de angariar recursos para a realização de seus programas sociais e de infraestrutura. A despeito da crise econômica e de saúde que o país e o mundo vivem, estes programas não devem parar, segundo AMLO, e, mais do que isso, devem ser suficientes para enfrentar a crise e impulsionar a economia, como já estava planejado.

Ao reafirmar a permanência dos mesmos planos e programas em um contexto adverso e com poucos precedentes históricos, Obrador minimiza o impacto destruidor da crise sobre toda economia e sociedade mexicanas, em especial sobre os setores mais vulneráveis – grupo que o seu governo, justamente, alega proteger e priorizar. Sua cegueira quanto à contração de empréstimos e a respeito dos gastos públicos se mostra cruel e anacrônica com a transformação dirigida ao povo que o presidente diz presidir.

Ainda que o projeto defendido por Obrador tenha encontrado, como previsto, barreiras estruturais de diversos tipos, sobretudo de seu vizinho do norte, seus resultados e esforços têm sido decepcionantes, se comparados aos seus planos defendidos durante o período pré-eleitoral e, também, se contrapostos às iniciativas levadas à cabo em outros governos progressistas e de centro-esquerda.

Se o principal enfoque de seu plano, a abordagem de um desenvolvimento voltado para o social e o humano, tem sido exposta pela relação com os Estados Unidos e pela crise do COVID-19 como insuficiente e decepcionante, o que resta do progressismo do governo Obrador?

 

* Luiza Valentim Munhoz é bacharel em Relações Internacionais pela Unifesp e autora do trabalho de conclusão de curso A Política Mexicana de Obrador e a Onda Rosa Latino-Americana. Karen Fernandez Costa é professora do Departamento de Relações Internacionais da Unifesp e pesquisadora do INCT-INEU.

** Recebido em 9 de julho de 2020. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

 

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