Buttigieg, o democrata que os republicanos gostam

por Solange Reis*

Desconhecido até pouco tempo, Pete Buttigieg se mostra como o novo Barack Obama. “Homem jovem com um nome esquisito”, disse sobre si mesmo.

Além de nomes estranhos e pouca idade, os dois também tinham em comum baixa experiência política quando entraram na campanha presidencial. Com 47 anos, Obama, havia sido senador estadual e federal por menos de dez anos. Buttigieg, de 38 anos, exerceu dois mandatos como prefeito de South Bend, uma cidade de cem mil habitantes no estado de Indiana.

Há outras semelhanças entre eles, como serem filhos de pais imigrantes e mães americanas, terem diplomas de Harvard e pertencerem a uma minoria social. Obama é negro e Pete, assumidamente homossexual. Em 2018, casou-se com Chasten Glezman (29), um professor de ensino médio.

Obama conseguiu ser eleito presidente dos Estados Unidos, entrando para a história como o primeiro presidente negro de um país que vivenciou segregação racial, oficialmente até 1964, e onde os negros ainda formam a maioria da população carcerária; Buttigieg pode vir a ser o primeiro presidente que vive em união homoafetiva. O caminho até lá não será fácil. É preciso superar os concorrentes nas primárias democratas, incluindo o favorito Bernie Sanders, e o atual incumbente, Donald Trump, no Colégio Eleitoral. Estará ele capacitado para uma escalada tão rápida e íngreme?

Por um lugar ao sol do centro

Obama e Buttigieg sabiam que precisavam romper a resistência da máquina do Partido Democrata. Aqui, as diferenças entre eles começam a surgir. Obama era o negro progressista contra a todo-poderosa centrista, Hillary Clinton. Estava levemente à esquerda da ideologia gravitacional do partido, o que lhe dava mais legitimidade para contestação interna.

Buttigieg encontra outro quadro, pois o centro ao qual pertence é desafiado por candidatos mais à esquerda do que Obama estava em relação a Clinton. Isso cria um dilema para o pré-candidato. Sua plataforma deve ter o cuidado de não ser explicitamente liberal, para não perder a onda “socialista” do eleitorado. Tampouco pode ser muito progressista, para não ser rejeitada pelas lideranças do partido. Dessa forma, por mais que tente colar sua imagem à de uma juventude renovadora, o jovem democrata acaba associado ao status quo. Sua alternativa é o desgastado tom “liberal na economia e progressista nos costumes”. Desde que os costumes não custem muito dinheiro ao governo.

Origem e carreira

Talvez influenciado pela mãe, que é linguista, formou-se em História e Literatura pela Universidade de Harvard. Concluiu o mestrado em Filosofia, Política e Economia (P.P.E., na sigla em inglês) pela Universidade de Oxford. Possivelmente inspirado pelo pai, um intelectual especialista em Gramsci.

Criado em Indiana, um dos estados que formam o “Rust Belt” (Cinturão da Ferrugem), em alusão ao declínio da indústria local de aço e ferro, Buttigieg não foi atingido pela decadência regional. Com a vida típica de um jovem branco de classe média-alta, pôde se dedicar à sua formação educacional e a um mercado de trabalho promissor.

Depois das universidades, trabalhou como estagiário, assistente de campanhas democratas e, também, consultor na McKinsey & Company. Embora se diga orgulhoso do trabalho na consultoria, lamenta os escândalos que a envolvem. O mais recente foram as análises para o governo Trump economizar com comida, remédio e segurança nos centros de detenção para imigrantes, onde crianças estrangeiras já morreram por falta de cuidados médicos e sofreram abusos físicos. Outro caso pouco ético envolve a participação direta de Buttigieg como consultor. Esse foi um estudo feito pela consultoria sobre como extrair recursos do Afeganistão, um país onde os Estados Unidos mantêm uma guerra há 19 anos.

Prefeito Pete

Em 2012, Buttigieg se tornou o segundo prefeito mais jovem da história do país, cargo que ocupou até o fim de dezembro de 2019. Durante aquele período, foi acusado de agravar o encarceramento de negros e as práticas racistas da polícia na cidade. O ponto mais crítico foi a demissão de um popular chefe de polícia negro que havia gravado policiais brancos fazendo comentários racistas. South Bend tem 26% de negros, mas somente 6% de policiais da mesma raça. A imagem do democrata junto à comunidade negra piorou quando ele mandou suspender uma campanha de protesto contra a morte de um residente negro por um policial branco.

Fica fácil entender por que conquistar o voto dos negros nacionalmente deverá ser seu maior obstáculo. Num artigo ácido no The Guardian, a ativista Malaika Jabali diz que “Buttigieg é como Joe Biden sem os amigos negros”. De fato, sem o apoio dessa comunidade, cujos membros mais jovens preferem Sanders e os mais velhos, Biden, não há chance de nomeação. Aproximadamente 24% dos eleitores do Partido Democrata são negros.

A aceitação de Buttigieg pelos veteranos de guerra deverá ser mais fluida. O mandato como prefeito foi interrompido por seis meses, em 2014, para sua atuação na guerra no Afeganistão. Embora sua função militar fosse burocrática e não combatente, a experiência serviu para lhe dar a marca da bravura que os americanos aprenderam a valorizar ao longo de décadas de guerras. Por que alguém deixaria o cargo de prefeito provisoriamente para lutar no Afeganistão? Patriotismo repentino à parte, sua ida foi oportuna para atenuar a controvérsia sobre racismo em South Bend e, ainda por cima, conferir-lhe o selo de coragem.

Plataforma pendular

“Acho que chegou a hora do meu partido ficar muito mais confortável falando de déficit”, recomendou. Com o déficit prestes a bater a casa de 1 trilhão de dólares em 2020, a questão é realmente grave. O problema é que Buttigieg não propõe cortes nos gastos militares, por exemplo, que são o segundo maior peso no desequilíbrio fiscal. Seu alerta é contra o sistema de saúde público defendido por Sanders e Elizabeth Warren. Às vezes, é difícil dizer onde termina o Buttigieg democrata e onde começa o republicano.

Fiel ao individualismo e ao liberalismo, mas com uma “mãozinha” visível do Estado, Buttigieg defende um misto de sistema de saúde privado e público. “Medicare for All Who Want It” significa expandir o serviço público gratuito para os mais pobres e subsidiar a iniciativa privada para os extratos médios. A justificativa é assistir a classe baixa sem sobrecarregar o que ele chama de classe média.

Em outros tempos, Buttigieg defendia o mesmo “Medicare for All” de Sanders. O apoio de lobbies talvez o tenha feito mudar de ideia, pois, atualmente, ele está atrás apenas de Donald Trump em contribuições financeiras de empresas de saúde. Entre os democratas, perdeu somente para Biden em doações de farmacêuticas e seguradoras de saúde. 

Algo parecido é sugerido como solução para o endividamento universitário. Estudantes que se endividaram em cursos enganosos e de baixa qualidade teriam a dívida perdoada. O mesmo para os que se propuserem a prestar serviços sociais gratuitamente. No caso de futuros estudantes, Buttigieg defende custo zero de anuidade apenas para famílias com renda inferior a cem mil dólares anuais e redução parcial para aquelas com renda entre US$ 100 mil e US$ 150 mil.

Dois exemplos de política doméstica devem ser citados. O primeiro é sobre liberdade de porte e uso de armas. No país dos assassinatos em massa, o pré-candidato propõe apenas a verificação de antepassados e o controle nas escolas. O segundo exemplo é uma proposta polêmica e bastante improvável. Buttigieg pretende ampliar a Suprema Corte, de nove para quinze membros. Cinco deles seriam democratas, outros cinco, republicanos, e os demais escolhidos por esses dez. A ideia por trás desse plano inconstitucional, uma vez que somente o presidente pode nomear os juízes federais, é tornar a Suprema Corte “menos politizada”. 

Política Externa

Quanto à mudança climática, Buttigieg apoia investimentos em energia verde e a liderança dos Estados Unidos em negociações internacionais. Embora proponha menores gastos federais para o clima, do que Sanders e Warren, claramente securitiza o tema ao torná-lo uma questão de segurança nacional.

No quesito de política externa, o democrata tem dado poucas pistas, ao não responder a muitas perguntas nem apresentar programas muito detalhados. Nas entrevistas feitas pelo The New York Times, por exemplo, a maioria das perguntas ficou por responder. Ainda assim, é possível notar semelhanças com Hillary Clinton.

China e Rússia são vistas como ameaças; alianças devem ser restauradas; a democracia será defendida onde estiver ameaçada, embora ele seja contra as guerras intermináveis. Apesar de considerar a aliança com Israel como intocável, o pré-candidato apoia a solução de dois Estados na questão com a Palestina. Preferiu, no entanto, não opinar sobre os detalhes mais espinhosos desse problema, como a restauração das fronteiras anteriores a 1967 e o direito de retorno da diáspora palestina. Tampouco opinou sobre encerrar a Guerra do Afeganistão. Em relação ao Irã, retomaria o acordo cancelado por Trump, desde que com novas cláusulas, exatamente como desejam alguns republicanos moderados.

Estrela ou falso brilhante

Buttigieg diz que irá juntar os pedaços da nação dividida e reunir uma maioria que tem sede de mudanças, incluindo os “futuros ex-republicanos“. A página do site de sua campanha pergunta se “Você está com ele?”. Por enquanto, poucos respondem que sim. Três pesquisas recentes apontam esse número variando entre 6% e 7%, nacionalmente.

Nos últimos dias, Buttigieg pegou carona na caótica apuração do caucus de Iowa para projetar seu nome além do reduto centro-direita. O resultado oficial em Iowa ainda não foi anunciado, mas é quase certo que Buttigieg levará a melhor. O liberal também foi bem em New Hampshire, ficando em segundo lugar, logo atrás de Bernie Sanders. Por enquanto, a meta de deslocar Biden vem sendo alcançada, mas há sérias dúvidas se o ritmo se manterá. Repetir o feito de Iowa e New Hampshire não é tarefa pequena. Principalmente quando as primárias avançarem para o sul, onde há mais conservadorismo contra homossexualismo e maior concentração do eleitorado negro e latino.

Buttigieg se vê como “o único veterano de guerra, milênio, gay, episcopal, maltês-americano, esquerdista”. Para muitos entre a sua geração, que vem se colocando cada vez mais à esquerda, o ex-prefeito é mais um tecnocrata, defensor da meritocracia e aliado dos poderosos. Uma pesquisa da Morning Consult constatou que quase 90% dos apoiadores de Buttigieg são brancos, 59% têm acima de 55 anos e outros 35% passaram de 65 anos.

Se Buttigieg não atrai os milênios, as minorias raciais e étnicas, os moralistas conservadores e a esquerda, onde buscará os votos para vencer seus correligionários e, em última instância, Donald Trump? Sem apresentar planos para consertar uma sociedade desigual e dividida, e repensar o papel da superpotência em declínio no mundo, o jovem político acabará percebendo que “o passado é uma roupa que não nos serve mais”.

 

*Doutora em Ciência Política pela Unicamp, professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas e pesquisadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-Ineu). 

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