Energia e Meio Ambiente

Formulação e desenvolvimento de política pública para biocombustíveis na Califórnia

Crédito da foto: David Paul Morris/Bloomberg/Getty Images

Por Mateus Alves Gonçalves e Laís Forti Thomaz*

Em 2006, através da Assemble Bill n. 32, o Poder Legislativo estadual estabeleceu um objetivo para a Califórnia com relação aos níveis de emissão de gases do efeito estufa (GEE), buscando reduzir os níveis de emissão até 2020 para os registrados em 1990. Para a tarefa, o California Air Resources Board (CARB) foi colocado como responsável pela pesquisa e implementação de políticas públicas que alcançassem estes resultados. Entendendo a necessidade de se criar combustíveis alternativos para substituir a dependência por petróleo, em janeiro de 2007, o então governador da Califórnia, o republicano Arnold Schwarzenegger, assinou a Ordem Executiva (OE) S-01-07, que estabeleceu a criação do Low Carbon Fuel Standard (LCFS) dentro do estado, deixando a cargo do CARB determinar se esse programa seria possível de ser adotado dentro dos preceitos estabelecidos pela AB 32.

O LCFS foi a primeira política pública dentro dos Estados Unidos a se concentrar na redução da emissão de gases do efeito estufa por meio da análise da composição dos combustíveis de transportes e da redução da intensidade de carbono presente neste, enquanto outros programas se voltam para a redução e para a substituição dos volumes de consumo de combustíveis fósseis – como o Renewable Fuel Standard (RFS), programa de âmbito nacional – ou focam no desenvolvimento de tecnologias para transportes mais sustentáveis, como filtros para carros, ou que utilizam outra fonte de energia, como os elétricos.

O propósito do LCFS é encorajar a produção e o uso de combustíveis de transporte de baixo carbono dentro da Califórnia, de forma a reduzir as emissões de gases causadores do efeito estufa (GEE), com padrões de emissão mais restritivas do que aquele estabelecido pela Agência de Proteção Ambiental (EPA, na sigla em inglês).

Os casos judiciais do LCFs

O conceito utilizado pelo LCFS, de “intensidade de carbono” (IC), que abrange tanto a gasolina e quanto o diesel, assim como os combustíveis substitutos, é baseado no ciclo de vida total do combustível. Este leva em conta as emissões dos GEE de forma direta, associadas com a produção, com o transporte e com o uso do combustível, assim como os efeitos significativos de forma indireta. Com esse índice, o LCFS determina o desempenho do combustível, permitindo que o mercado determine como essa redução da intensidade total de carbono dentro dos combustíveis será feita.

O uso deste conceito gerou dois processos judiciais contra o CARB. O primeiro, conhecido como Rocky Mountain Farmers Union v. Corey, acusava a Califórnia de violar uma Cláusula de Comércio “Dormente” (Dormant Commerce Clause), uma jurisprudência levantada por cortes anteriores com base na Cláusula de Comércio presente no Artigo 1º, Seção 8, 3 da Constituição dos Estados Unidos, pois, ao aplicar o conceito de IC, incluindo as emissões com o transporte do combustível, acabava por desprestigiar os combustíveis de outros estados, regulando indiretamente o comércio interestadual.

Entretanto, enquanto a cláusula prevê que é de responsabilidade do Congresso “To regulate Commerce […] among the several States […]” (Estados Unidos da América, 2007, p. 4), na prática, o Poder Judiciário americano está regulamentando práticas comerciais entre os estados através de uma “statutory inference drawn from Congress’s regulatory silence”, fugindo de sua função de policy broker e agindo ativamente como um formulador de políticas públicas ao exercer funções que vão além de seu domínio.

Sob direção executiva de James N. Goldstene, o CARB apresentou sua defesa, primeiramente pedindo uma moção para recusa da ação, que não seria concedida pela corte e, posteriormente, recorrendo aos argumentos apresentados pelos demandantes. A defesa se baseou na não restrição da atuação do LCFS dentro da vigência do Clean Air Act e na observância da Cláusula de Comércio, visto que o programa não tinha como propósito privilegiar os combustíveis produzidos na Califórnia. Diante das provas e dos estudos apresentados, entretanto, o juiz Lawrence O’Neill decidiu o caso, preliminarmente a favor dos demandantes, em dezembro de 2011.

O CARB entrou com recurso na Corte de Apelação do Nono Circuito dos Estados Unidos. Em abril de 2012, a Corte de Apelação revogaria os efeitos da liminar lançada anteriormente, garantindo que o CARB poderia continuar a promover o LCFS até que a decisão final sobre a apelação fosse proferida. Tal decisão viria em setembro de 2013, em choque quase total com a decisão da Corte Distrital. Igualmente, houve o reconhecimento de que o LCFS foi um programa criado em harmonia com os regulamentos do Clean Air Act, porque o “Congress has expressly empowered California to take a leadership role as to air quality” (United States Court of Appeals for the Ninth Circuit, 2013, p. 50). A Corte de Apelação mandaria o caso de volta à Distrital para que se determinasse quais cláusulas do etanol discriminavam, em propósito ou efeito, o etanol dos outros estados.

De fato, a Corte de Apelação fez diversos elogios ao LCFS ao longo da opinião apresentada. Por reconhecer que, geograficamente, a Califórnia sofreria mais com as consequências ambientais que resultariam da queima de combustíveis com alto teor de carbono, o fato de o programa estabelecer critérios mais complexos e completos não se faz por mero capricho, antes, é uma necessidade (United States Court of Appeals for the Ninth Circuit, 2013, p. 48).

Por fim, a demanda levantada pelas empresas do ramo de etanol de milho, produtores de gasolina, transportes e indústrias petroleiras na ação contra o LCFS foi interpretada pela Corte como uma tentativa de se barrar o avanço das discussões e ações frente de combate ao desenvolvimento inconsequente. “California should be encouraged to continue and to expand its efforts to find a workable solution to lower carbon emissions, or to slow their rise” (United States Court of Appeals for the Ninth Circuit, 2013, p. 70). O caso continua em aberto e segue na Corte Distrital.

O segundo caso, POET, LLC v. California Air Resources Board, teve início em 2012, quando a companhia americana de biocombustíveis POET, especializada na produção de bioetanol derivado do milho, entrou com uma ação judicial, em uma Corte Superior do Estado da Califórnia, contra o CARB, devido ao programa do LCFS. Entre as acusações, constavam violações ao California Environmental Quality Act (CEQA) e ao California Health and Safety Code durante o estabelecimento do programa. A Corte Superior negou a petição e concedeu causa ganha ao CARB, o que levou o demandante a apelar para uma corte de competência superior.

O caso foi levado, então, para a Corte de Apelação da Califórnia do Quinto Distrito (California Court of Appeal for the Fifth Appellate District), que, em 15 de março de 2013, emitiu uma disposição final. Reverteu a decisão da Corte Superior em favor do réu, julgando como válidas as acusações do demandante, e lançou uma série de medidas corretivas para o LCFS. Esse julgamento seria conhecido como POET I.

Com seus estudos, a Corte reconheceu uma série de violações concernentes à promoção do LCFS, tanto em relação aos desafios processuais, referentes ao processo de sua aprovação, quanto às denúncias realizadas pela POET: “ARB’s efforts to complete the LCFS regulations on time satisfied a vast majority of the applicable legal requirements, but ran afoul of several procedural requirements imposed by CEQA and the APA” (California Court of Appeal for the Fifth Appellate District, 2013, p. 3). Uma das principais preocupações levantadas pelo POET dizia respeito ao impacto ambiental gerado pelo regulamento original do LCFS, que não considerava o impacto do Óxido de Nitrogênio (NOx) emitido na atmosfera a partir do uso crescente de biodiesel.

Para não causar danos ao meio ambiente com a suspensão do programa, a decisão da Corte permitiu que o CARB mantivesse o LCFS funcionando com os valores estabelecidos para 2013, enquanto adotava as medidas de correções necessárias, obrigatórias de acordo com o mandato peremptório expedido.

O CARB recorreu dessa decisão em duas instâncias. Primeiro, menos de um mês depois da decisão, à própria Corte de Apelação na qual a decisão foi tomada. Teve sua solicitação rejeitada e, em novembro, a Suprema Corte da Califórnia também negaria o pedido de apelação da decisão judicial.

Dois anos depois, em 2015, após passar pelo processo de reformulação exigido pela Corte, o LCFS é readotado pela CARB, com a previsão de implementação para janeiro de 2016. Entretanto, em outubro de 2015, a companhia POET lançaria mão de um novo pedido de mandado peremptório, visando a paralisar as atividades do LCFS, e de um novo processo judicial. Desta vez, o caso seria na Corte Superior do Condado de Fresno (Fresno County Superior Court), que ficaria conhecido como POET II. Entre os pontos elencados, afirmaram que o “CARB failed to comply with its obligations under CEQA or with the terms of a peremptory writ of mandate issued by the California Superior Court in 2014 that ordered CARB to consider its 2009 LCFS regulation’s potential adverse environmental effects of emissions of nitrogen oxides”.

O CARB levou o caso para a Corte de Apelação do Quinto Distrito da Califórnia, visando à retirada do mandado, embora não tenha sido reconhecido o pedido. Em maio de 2017, a Corte de Apelação reconheceu os méritos das acusações da POET e adotou um novo mandato peremptório, afirmando que “The superior court shall issue further orders to compel the Air Resources Board’s obedience to the writ and CEQA, including modifying the writ” (Court Of Appeal of the State of California Fifth Appellate District, 2017, p. 64). O caso segue dentro do Judiciário americano, sem novas modificações processuais até este momento.

Judiciário como formulador de política pública

Como política de incentivo aos combustíveis com baixo teor de carbono, o LCFS é um instrumento essencial na narrativa política ambiental da Califórnia. Fica evidente em nossa pesquisa que o Judiciário teve um papel crucial nas alterações dessa política, tanto de forma direta, ao exercer poder mandatório, obrigando a mudanças em áreas necessárias, como indiretas, ao atestar a legitimidade do programa frente às diversas acusações sofridas pelos grupos de defesa dos combustíveis fósseis, refinarias e indústria automobilística.

Apesar de todos os processos e controvérsias judiciais, considera-se o LCFS como um programa eficiente no controle de emissões dos GEE e substituição por combustíveis limpos. Seu programa de metas está sendo atingido ao longo dos anos e se recuperou bem do período de embargo da decisão acerca do caso POET I. O programa é tido como uma referência de política pública positiva dentro do combate aos gases do efeito estufa e vem sendo exportado para outras regiões.

Os resultados positivos contribuíram para a assinatura do Senate Bill 100, em 10 de setembro de 2018. A legislação requer que o estado substitua 100% das fontes de combustíveis fósseis, usadas na geração de energia elétrica, por fontes limpas até 2045. Com essa lei, a Califórnia acompanhará o Havaí como os dois únicos estados americanos que se comprometeram com sua eliminação até o ano mencionado.

Embora os processos judiciais contra o LCFS nas Cortes não tenham chegado a seus respectivos fins, é possível perceber que, muito mais que levar a um simples realinhamento às normas estabelecidas, as decisões tomadas refletem o posicionamento político de seus juízes. Não obstante, o Judiciário se coloca como um ator participante dos processos de formulação de políticas públicas, e sua possível participação nos processos de tomada de decisão deve ser levada em consideração.

Referências

CALIFÓRNIA. California Court of Appeal for the Fifth Appellate District. Opinion, F064045. Apelante: POET, LLC et al.. Apelado: CALIFORNIA AIR RESOURCES BOARD et al.. Juiz Wiseman et al.. California, Jul 2013.

______. Court Of Appeal of the State of California Fifth Appellate District. Opinion, F073340. Apelante: POET, LLC et al.. Apelado STATE AIR RESOURCES BOARD et al.. Juiz Kane et al.. California, May. 2017.

ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Constituição (1787). The Constitution of the United States. United States Government Printing Office, Washington, DC. 2007.

NONO CIRCUITO. United States Court of Appeals for the Ninth Circuit. Opinion, 259. Apelante: Rocky Mountain Farmers Union et al. Apelado: Richard W. Corey. Juiz Ronald M. Gould et al. California, Sep. 2013.

 

* Mateus Alves Gonçalves (mateus.galves18@gmail.com) e graduado em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Goiás. Laís Forti Thomaz (laisthomaz@ufg.br) é professora da Universidade Federal de Goiás (UFG) e pesquisadora do INCT-INEU.

 

** Este Informe é uma versão reduzida do trabalho preparado pelos autores para a Conferência Brasileira de Estudos Políticos sobre os Estados Unidos, promovida pelo INCT-INEU e realizada de 25 a 28 de novembro de 2019, em São Paulo. Está vinculado à pesquisa “O Renewable Fuel Standard: formulação da política energética e mecanismos decisórios no Executivo dos EUA” de Laís Thomaz, desenvolvida no âmbito do INCT-INEU.

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