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Estados Unidos sob o viés latino-americano

Luis Maira, ex-ministro chileno, abre a ‘Conferência Brasileira de Estudos Políticos sobre os Estados Unidos’, entre 25 e 28 de novembro, na PUC-SP (Créditos da foto: Tatiana Carlotti)

Por Tatiana Carlotti*

Promovida pelo INCT-INEU**, a Conferência Brasileira de Estudos Políticos sobre os Estados Unidos, que acontece entre 25 e 28 de novembro, na PUC-SP (auditório 177A), contou com abertura do ex-ministro Luis Maira, um dos pioneiros da abordagem latino-americana nos estudos sobre os Estados Unidos.

Intelectual e político, Maira foi deputado no Chile entre 1965 a 1973, quando precisou se exilar no México, devido à proximidade com o governo Allende. Anos mais tarde, ele assumiria a direção do Centro de Investigação e Docência Econômicas (CIDE) e se tornaria professor da Universidade Nacional de México (UNAM). No Chile, tornou-se secretário-geral do Partido Socialista (1992-1994), ministro da Planificação e Cooperação (1994-1996) e embaixador no México (1997-2003) e na Argentina (2004-2010).

Do entrelaçamento entre vida política e acadêmica, destaca-se seus esforços na consolidação dos estudos sobre Estados Unidos no continente, “para que possamos ver, com os olhos da nossa região e dos nossos países, a realidade da primeira potência econômica e política do mundo, e para que possamos dar as nossas próprias respostas”.

Em sua conferência, Estudo dos EUA numa perspectiva Latino Americana, Maira abordou quatro temas essenciais em sua formação e no conhecimento sobre os Estados Unidos: 1) o processo singular de constituição da “primeira nação nova do mundo moderno e contemporâneo”; 2) a execução gradual do projeto imperialista norte-americano; 3) a política externa adotada no continente latino-americano; e 4) a “progressiva e prolongada crise política”, iniciada nos anos 1970.

Um vizinho muito agressivo

“Primeira nação com desenvolvimento capitalista avançado, sem o lastro do passado feudal”, os Estados Unidos partiram de uma situação precária e conseguiram “articular uma boa organização institucional e num prazo extremamente rápido”, salientou Maira, ao destacar as inovações trazidas neste processo, como a breve Constituição de apenas sete artigos; o regime presidencial, “um marco para as democracias liberais”; e o princípio de equilíbrio entre os poderes federal (do Estado) e local (dos treze estados originários).

“Vizinho muito agressivo”, os Estados Unidos se lançam em um processo de expansão territorial,  guiados pelo ímpeto de George Washington, em sua Carta de Despedida (1796). O resultado impressiona: “das treze colônias iniciais, com pouco mais de 800 mil quilômetros quadrados, passaram a 9 milhões e 800 mil quilômetros quadrados atuais. E se tornaram um país bioceânico, com acesso ao Pacífico e ao Atlântico”, pontua Maira.

Além do ímpeto expansionista, a “jovem e emergente potência” se caracterizava pelo “trato duro” com as nações vizinhas. Um dos exemplos disso é o “Corolário Roosevelt” (1904) que, entre outras medidas, permitia a intervenção direta dos Estados Unidos na gestão da economia (aduana e tesouro) de países que não conseguiam pagar suas dívidas, como visto em Cuba, República Dominicana, Haiti e Nicarágua.

Com o tempo – e a eleição de Franklin Roosevelt, que administrou o país por quatro mandatos consecutivos (1933-1945) –, este “exercício duro do poder imperialista” foi transformado. “Roosevelt promoveu uma grande mudança na estratégia internacional norte-americana”,  já prevendo o conflito contra as potências totalitárias. É neste momento que o país adota uma “política de boa vizinhança”, a partir de uma nova configuração das relações internacionais, que começam a assumir características contemporâneas.

Em 1945, com o fim da II Guerra Mundial, os Estados Unidos se inserem como principal potência mundial, consolidando seu projeto de expansão territorial e “assumindo responsabilidades não imaginadas no curso da História, em termos de volume e magnitude de impacto no sistema mundial”.

Maira, inclusive, menciona as certeiras  previsões do historiador britânico Arnold Toynbee, que identificava  1945  como o ápice do poder norte-americano, um marco que poderia ser mantido, mas jamais superado. A partir daí, “a história norte-americana se divide em quase meio século de Guerra Fria; e mais 30 anos de pós-Guerra Fria”.

Este período de Guerra Fria, aponta Maira, teve dois momentos distintos, os chamados “25 anos gloriosos da economia norte-americana”, em plena polarização mundial entre as duas potências, Estados Unidos e União Soviética, com os demais países em suas zonas de influência. E, um outro momento, a partir dos anos 1970, com a introdução de novos atores entre as potências econômicas, como o Japão, os países da Comunidade Europeia e, também, a China.

Crise de Legitimidade

“Desde sua fundação, até o fim dos anos 1960, os Estados Unidos viveram a plena convicção de que tinham o melhor sistema político e econômico do mundo, e que essa condição seria duradoura, ancorada em uma Constituição quase perfeita, administrando o curso de sucessivos governos”, relata Maira.

A partir dos anos 1970,  essa convicção sofre um profundo abalo, devido a três fatores principais: 1) a crise econômica de 1974-1975, que mexeu com as referências teóricas de toda uma geração; 2) o escândalo Watergate que levou à queda de Nixon, e à desconfiança das instituições políticas do país; 3) e a derrota no Vietnã, em 1975, de profundo impacto na medida em que foi a primeira derrota dos Estados Unidos desde sua fundação.

“Em poucos anos, os Estados Unidos foram afetados no funcionamento de sua economia; mortificados com a perda de legitimidade e prestígio de seu sistema político e de sua instituição central, a presidência; e afetados pela sensação de derrota com a guerra, algo que não conheciam antes”, avalia. Maira inclusive sustenta que a crise de legitimidade, iniciada neste período, é o início da crise política que o país vive hoje.

Naquele momento, dá-se início à recomposição da política de alianças dos Estados Unidos, daí a introdução dos novos atores acima citados, marcando, definitivamente, a passagem para a segunda fase da Guerra Fria.

Influência marginal

Segundo Maira, “essas transformações foram importantes para a América Latina e os países da região do Caribe” que, apesar de essenciais ao projeto norte-americano, no que diz respeito à condução da política externa dos Estados Unidos, sempre tiveram um papel marginal, em comparação com outras nações, com exceção de Cuba, desde 1959, tratada como “inimiga n. 1”.

De modo geral, os países do continente eram pensados e tratados de modo uniforme, sem devida atenção a suas particularidades; e pensados em  dois blocos distintos com seus centros emergentes, o México ao Norte, e o Brasil ao Sul.

“Em 1978, entre os países latino-americanos, somente a Colômbia e a Venezuela eram civis, os demais eram ditaduras dirigidas por governos militares e conservadores”. Quarenta anos depois, a situação se inverteria sobremaneira: em 2008, oito países latino-americanos eram governados por partidos progressistas, ou de esquerda. Um fato também relacionado ao deslocamento do eixo de interesses do governo Bush (Filho) que, após o 11 de Setembro (2001), patrocinou uma série de “intervenções no Oriente Médio”, adotando “uma geopolítica de terrorismo ampliado que incluiu o México, a América Central e o Caribe”, permitindo “um respiro” à América Latina.

Neoconservadorismo

Nesta segunda fase da Guerra Fria, os Estados Unidos passam,  em particular nos anos 1980, por uma “acomodação conservadora”, com a emergência de pensadores e núcleos políticos que lançam as bases do movimento neoconservador (por aqui chamado de “neoliberalismo”).

Surgem várias teorias críticas ao Estado do bem-estar social e de fraternidade universal, vigentes no pós-guerra. Na visão deste teóricos,  defensores da redução do Estado e de suas políticas sociais, a democracia liberal é um “modelo de complicada reprodução”.

Este é o primeiro momento, pontua Maira, de “hegemonia neoconservadora clássica” que tem na figura de Ronald Reagan, presidente entre 1981-1988, um “formidável comunicador dessas ideias para o público norte-americano”.

Segundo Maira, vivemos hoje a reedição desse primeiro movimento conservador, mas “sem a densidade e a complexidade” dos oradores de outrora.

“A nova visão conservadora está expressa na direita radical encarnada em Trump”, um personagem de difícil definição, na medida em que se coloca fora do arco teórico conservador, “inaugurando um pensamento menos articulado e menos complexo que de seus predecessores”, analisa Maira.

Sintomas da crise

Apontando o vazio de políticas em relação à América Latina – “não há nenhuma política pensada” -,  Maira finalizou a conferência, chamando a atenção para seis pontos que desvelam a profundidade da crise nos Estados Unidos:

1) Perda de legitimidade do colégio eleitoral nos Estados Unidos, vide as controvérsias das últimas eleições – Bush (Filho) e Al Gore / Hillary Clinton e Trump;

2) Crescente intervenção da Suprema Corte nas questões políticas; permitindo a influência do poder econômico nas campanhas eleitorais e até mesmo a existência de campanhas negativas (que desacreditam os candidatos);

3) Polarização entre grandes partidos do sistema político, a ponto de prejudicarem a capacidade de se fazer acordos, inclusive entre os âmbitos federal e estaduais;

4) Explosão da violência e aumento dos massacres, destacando a hipocrisia da Associação Nacional do Rifle que se vende “como solução”, apesar de ser uma das causas do problema;

5) Crescimento da desigualdade social, que expressa a falácia das políticas neoconservadoras (ou neoliberais) norte-americanas, gerando um contingente de 52 milhões de pobres;

6) Radicalização do arco ideológico entre conservadores-republicanos e democratas-liberais. Em 2016, os extremos imperaram na vida nacional norte-americana: a direita radical com Trump e o projeto socialista defendido por Bernie Sanders.

Jovens, mulheres, líderes sociais que apoiam Sanders estão tentando construir uma nova visão que terá expressão nas próximas eleições presidenciais. Apesar de o futuro estar totalmente imprevisível, a certeza possível, afirma Maira, é que “a eleição de 2020 será a mais importante em muitas décadas, e em termos de qual direção os Estados Unidos tomarão daqui por diante enquanto potência mundial”.

Confira abaixo, a partir do minuto 30, a íntegra da fala de Luis Maira:

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Em tempo:

Durante a Conferência, Luis Maira lançou a tradução brasileira, em parceria com a Editora Unesp, do livro Aprendizagens do estudo sobre os Estado Unidos, que sintetiza como funcionam as instituições estadunidenses e, sobretudo, como são tomadas as decisões concernentes à política externa, que papel político e econômico desempenham as corporações transnacionais e qual a importância da América Latina para a maior potência do mundo.

Para mais informações, clique aqui.

 

* Tatiana Carlotti é repórter da Carta Maior.

** O Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU) é uma rede composta por mais de 80 pesquisadores, de diferentes áreas e universidades brasileiras sobre a temática dos Estados Unidos. A rede divulga trabalhos e artigos no site Observatório Político dos Estados Unidos (Opeu). Confira aqui.

*** Este texto foi originalmente publicado na Carta Maior, em 28 nov. 2019.

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