A Casa virou democrata. Pode agora ousar mais?

Retórica vaga sobre “acesso a saúde” e “bons empregos” não vai desafiar a plutocracia que mantém nossas vidas brutais. Essas propostas poderiam.

 

por Sam Pizzigati

Traduzido do Inequality.org*

 

Tony Maxwell, um afro-americano oficial da marinha aposentado, estava tentando – sem muito sucesso – conseguir que seu vizinho de Jacksonville, na Flórida, o acompanhasse e votasse nas eleições de meio de mandato. O jovem vizinho, que abandonou a escola, não tinha interesse em ir com ele.

“Votar”, declarou o jovem, “não muda nada”.

Essa atitude de cansaço com o mundo serve muito bem a alguns norte-americanos – àqueles que estão no topo de nossa economia profundamente desigual. Esses abastados não querem que as coisas mudem. Eles trabalharam muito duro para montar um conjunto de estruturas e políticas que mantêm, às custas dos outros, sua riqueza segura e crescente.

Agora, os democratas, graças aos mandatos obtidos recentemente, têm uma maioria confortável na Câmara dos Deputados dos Estados Unidos. Esses democratas podem usar essa maioria recém-conquistada para alcançar aquele jovem desanimado em Jacksonville? Isso vai depender de sua vontade de pensar grande e ousadamente, de sua disposição em desafiar a riqueza e o poder concentrados que impedem as coisas de mudar.

Qualquer desafio desse tipo, obviamente, não produzirá uma nova legislação significativa no curto prazo. Os democratas podem dominar a Câmara em janeiro, mas os republicanos conservadores ainda controlam o Senado e têm um colega que pensa da mesma maneira na Casa Branca. Nos próximos dois anos, transformar qualquer novo projeto legislativo grande e ousado em lei será quase impossível.

Mas apenas pressionar por tal legislação poderia apontar – e nos encaminhar – para uma direção positiva. Somente o fato de realizar audiências sobre as leis que suportam nossos poderios econômicos atuais e de encorajar manifestações e votações sobre essa legislação mandaria para todo o país uma mensagem encorajadora de que uma mudança significativa pode realmente acontecer.

Esse tipo de pressão agressiva e progressista representaria, com certeza, uma grande ruptura com o passado recente do Partido Democrata. As várias maiorias no Congresso que os democratas conquistaram nas últimas décadas têm tipicamente se esquivado de qualquer coisa que pareça grande e arrojada. As reformas que essas maiorias têm defendido, muitas vezes, têm sido excessivamente complicadas e cautelosas – e profundamente comprometidas por um medo de aborrecer potenciais doadores ricos do Partido Democrata.

Esse medo pode estar diminuindo. Diversos líderes democratas com os olhos na eleição presidencial de 2020 – e no tamanho cada vez maior da base ativista progressista do partido – adiantaram no ano passado propostas que podem ajudar a desencadear mudanças reais sobre quem possui e domina os Estados Unidos.

O senador Bernie Sanders, de Vermont, deu o pontapé inicial nessa estratégia grande e ousada em sua campanha presidencial de 2016. Ele ainda está acrescentando ideias novas e frescas ao mix político. Em setembro do ano passado, por exemplo, Sanders apresentou uma lei para desencorajar que executivos corporativos paguem mal os trabalhadores para embelezar sua própria situação pessoal.

Sob essa nova proposta de Sanders, corporações com 500 ou mais funcionários teriam que pagar um imposto equivalente ao custo dos benefícios federais de rede de segurança – programas como vale-refeição e Medicaid – dos quais seus trabalhadores mal pagos dependem.

A senadora Elizabeth Warren, de Massachusetts, também está desafiando a ganância e a avidez das corporações. Sua Lei de Capitalismo Responsável, apresentada em agosto passado, tenta reorientar as grandes corporações para servir “não apenas aos acionistas, mas também a seus funcionários e comunidades”. Essa proposta de Warren colocaria 40% dos assentos nos conselhos das corporações para diretores eleitos pelos funcionários da empresa.

Warren também está pensando grande e ousadamente em relação à habitação. Seu projeto de Lei de Habitação e Mobilidade Econômica na América investiria 450 bilhões de dólares na próxima década para financiar “a construção e preservação de moradias acessíveis às famílias trabalhadoras”. Para compensar o preço desse esforço, a iniciativa de Warren aumentaria as alíquotas do imposto sobre imóveis das 10.000 famílias mais ricas do país.

O senador Cory Booker, de Nova Jersey, está procurando estabelecer um novo programa de “Fundo Bebê” que vise “garantir que todas as crianças”, não apenas crianças de famílias ricas, “tenham bens significativos quando entrarem na idade adulta”, podendo chegar até a 50.000 dólares por criança de famílias mais pobres. Uma grande fatia dos dólares necessários para promover esse “Fundo Bebê” de Booker viria do aumento da alíquota de imposto sobre ganhos de capital, um fluxo de renda que flui esmagadoramente para os norte-americanos mais ricos.

A senadora Kamala Harris, da Califórnia, por sua vez, defende um crédito tributário que aumentaria a renda dos casais que ganham menos de seis dígitos anuais em até 500 dólares por mês.

“Nosso código tributário”, observou Harris no mês passado, quando anunciou seu projeto de lei chamado de “Elevação da Classe Média”, “deve refletir nossos valores e, em vez de mais incentivos fiscais para o 1% mais rico e para as corporações, deveríamos estar elevando as condições de milhões de famílias americanas.”

Outras ideias ambiciosas para desafiar a concentração da riqueza e do poder dos Estados Unidos vêm de ativistas e acadêmicos progressistas. Matt Bruenig, do People’s Policy Project, propôs um “Fundo Social Americano de Riqueza”, uma empresa independente de investimento público que receberia “injeções regulares de dinheiro do governo” e “faria pagamentos regulares de dividendos aos seus acionistas – todos adultos norte-americanos – com base em uma média móvel de cinco anos do desempenho dos investimentos do fundo.”

O dinheiro para este fundo de solidariedade viria de uma gama de impostos sobre a riqueza privada, desde um imposto sobre fusões e aquisições corporativas até um novo imposto sobre as IPOs – ofertas públicas iniciais – aquele jogo dos apostadores de Wall Street nas máquinas de caça-níquel do mercado de ações.

Ainda há outras grandes e ousadas ideias que estão vindo do exterior, principalmente do Partido Trabalhista Britânico. Em setembro passado, John McDonnell, principal autoridade econômica do partido, pediu por uma lei que exigisse que grandes corporações do Reino Unido transferissem 1% de suas ações por ano, ao longo de uma década, para um fundo especial que beneficiasse os trabalhadores, que passariam a receber dividendos anuais do fundo.

No ano passado, o Partido Trabalhista endossou uma proposta ainda mais ousada para reduzir o grande desequilíbrio salarial entre executivos e trabalhadores corporativos. Os trabalhistas querem que o governo negue contratos de bens e serviços a empresas privadas que pagam a seus principais executivos mais de 20 vezes o que seus trabalhadores ganham.

Essa ideia de usar o erário público como alavanca contra a desigualdade, observa Sarah Anderson, do Institute for Policy Studies, já surgiu nos Estados Unidos. Cinco estados até agora aprovaram leis que limitam ou negam o uso de receitas de impostos com corporações que recompensam os altos executivos às custas dos trabalhadores.

A nova maioria democrata na Câmara poderia dar voz e possibilitar o debate de ideias como essas, e o grupo de calouros dessa maioria – simbolizado pela mulher mais jovem a ser eleita para o Congresso, Alexandria Ocasio-Cortez – certamente tem o compromisso progressista e o carisma para atrair variados segmentos do povo norte-americano para essa discussão.

Se toda essa ação se materializasse, será que um grande número de pessoas politicamente desanimadas despertaria e começaria a prestar atenção? Nunca saberemos se não tentarmos.

 

Sam Pizzigati coedita Inequality.org. Seu último livro, “O caso para um salário máximo”, acaba de ser publicado. Entre seus outros livros sobre renda e riqueza mal distribuídas: “Os ricos nem sempre ganham: o triunfo esquecido sobre a plutocracia que criou a classe média americana, 1900-1970”.

 

Tradução por Solange Reis

*Artigo originalmente publicado em 09/11/2018, em https://inequality.org/great-divide/the-house-has-gone-democratic-can-the-house-now-go-bold/

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