NRA: em ano eleitoral, Trump prestigia generoso lobby das armas

Panorama EUA, vol. 4, no. 3, maio de 2018

por Tatiana Teixeira

Desde Ronald Reagan, em 1983, que um presidente dos Estados Unidos em exercício não comparecia, regularmente, ao encontro anual da National Rifle Association (NRA). Donald Trump não apenas prestigiou a conferência, neste 4 de maio, em Dallas, no Texas. Em seu quarto ano seguido participando do evento, ele deu uma inequívoca e oportuna demonstração de apoio em um momento ainda bastante desfavorável para o poderoso lobby das armas, pressionado por ativistas, por políticos, por celebridades e por parte da sociedade americana, ainda na esteira do tiroteio em uma escola de Ensino Médio em Parkland, na Flórida, em fevereiro passado. Começando com um elogio aos “patriotas verdadeiramente americanos da NRA, que defendem nossos direitos, nossa liberdade e nossa grandiosa bandeira americana”, seu discurso diz muito sobre como o debate das armas ainda será tratado no país.

O apoio também é muito simbólico por se tratar de um ano de midterms e da NRA, um dos grandes doadores de candidatos republicanos. Em 2016, por exemplo, a organização doou US$ 55 milhões, dos quais pelo menos US$ 30 milhões foram para a campanha de Trump à Presidência – de acordo com o Center for Responsive Politics. O tom do discurso de sexta-feira foi, aliás, de campanha. “Não podemos ser complacentes, temos de ganhar as midterms”, convocou o presidente, ovacionado por esses combativos militantes pró-armas.

Além de usar o palco para apoiar e pedir votos para seus correligionários, Trump fez propaganda de sua gestão, celebrando os cortes de impostos e a criação de emprego, com referência a mínimos históricos de desemprego entre afro-americanos e hispano-americanos. Também defendeu sua agenda, mencionando, entre outros assuntos, a imigração ilegal e a questão da segurança (apoiar o Exército e proteger a fronteira), Coreia do Norte (“estamos indo realmente bem”), Irã (“acordo horroroso”) e o Russiagate (“caça às bruxas”). Trump foi especialmente duro na questão migratória e não se esqueceu das críticas ao governo Barack Obama e a seu “Obamacare”, programa contra o qual prometeu continuar lutando no Congresso.

E, por falar em NRA, campanha e Rússia, lembra-se que a organização está sendo investigada por suspeitas de que um de seus membros e integrante do governo russo, Alexander Torshin, teria usado a NRA para colocar dinheiro na campanha de Donald Trump em 2016.

Pence: ‘Conservador, cristão, republicano e membro da NRA’

Mais de 70 mil pessoas passaram pelo evento no fim de semana. Lá, os participantes ouviram discursos políticos, conheceram as novidades da indústria, além de poderem fazer cursos de tiro e trocar experiências. Além de Trump e do vice-presidente dos EUA, Mike Pence, discursaram o governador do Texas, Greg Abbott, e os senadores Ted Cruz (R-TX) e John Cornyn (R-TX), entre outros. No encontro do ano passado, o primeiro como presidente, Trump foi recebido como o herói da defesa da Segunda Emenda da Constituição. “Vocês têm um verdadeiro amigo na Casa Branca”, declarou na época.

“Eu sou um cristão, um conservador e um republicano – nessa ordem! E sou um membro da NRA!”, apresentou-se o vice Mike Pence, que abriu o discurso para Trump. “Nesse governo, o direito das pessoas de manterem e portarem armas não será infringido”, prometeu. E, assim como o presidente viria a fazer, Pence destacou o trabalho do Executivo para tratar da segurança nas escolas e para armar professores. Também defendeu que “armas de fogo nas mãos de cidadãos cumpridores da lei” tornam as comunidades mais seguras. “O jeito mais rápido de parar um cara mau com uma arma é um cara bom com uma arma”, apontou, ecoando lema da própria NRA.

Na mesma linha que Pence, tanto Abbott quanto Cornyn usaram o exemplo de Stephen Willeford para alegar que “armas podem salvar vidas”. Membro da NRA, já tendo atuado como instrutor de tiro para o lobby, Willeford abriu fogo contra o atirador – o jovem Devin Patrick Kelley –, responsável por um dos traumáticos recentes episódios de violência com armas nos EUA, em novembro do ano passado, e que deixou 26 mortos. Aconteceu em uma igreja da pequena cidade de Sutherland Springs. Para o governador do Texas, a saída para esse tipo de violência é, justamente, reforçar os direitos garantidos na Segunda Emenda, e não o contrário.

Defesa das armas e da Segunda Emenda

Em seu discurso de pouco mais de 45 minutos aos membros da NRA, o magnata nova-iorquino deixou de lado qualquer possível ambiguidade no debate sobre um controle mais rígido sobre porte e posse de armas. Silenciou sobre medidas que não sejam amigáveis aos interesses da NRA e seguiu um script seguro e conhecido: o da defesa da Segunda Emenda, desta vez, de olho nas eleições de meio de mandato.

“Vocês dão seu tempo, sua energia, seu voto e sua voz para se manterem firmes por esses direitos sagrados que Deus nos deu, incluindo o direito de autodefesa”, declarou Trump, acrescentando: “E agora, graças a seu ativismo e dedicação, vocês têm um governo lutando para proteger sua Segunda Emenda”.

“Seus direitos (garantidos) na Segunda Emenda estão sob ameaça. Mas nunca, jamais, estarão sob ameaça enquanto eu for presidente”, assegurou. “Precisamos eleger republicanos”, convocou Trump, afirmando que “a única coisa entre os americanos e a eliminação dos direitos da nossa Segunda Emenda são os conservadores no Congresso”. Segundo o presidente, os democratas estão determinados a tomar as armas dos americanos, tornando-as “fora da lei”. Irônico, disse que, nessa lógica, vans e caminhões também deveriam ser todos banidos, já que estão sendo usados como um novo tipo de arma por “terroristas maníacos”.

Em última análise, como sugeriu Trump, votar nos republicanos garantirá a manutenção do status quo, no que se refere ao debate sobre as armas no país, ainda que as pesquisas sinalizem uma mudança crescente de direção no humor nacional sobre o tema – especialmente após o ganho de amplitude e adesão do movimento “March of Our Lives”, liderado pelos sobreviventes de Parkland.

Como já havia feito, o empresário nova-iorquino defendeu a medida tão estapafúrdia quanto inaplicável de que professores “altamente treinados” trabalhem armados e que haja mais segurança nas escolas, com seguranças armados e detectores de metal, alegando que isso seria um fator imediato de intimidação de possíveis agressores e ajudaria a evitar massacres como o de Parkland. “Quando eles sabem que tem arma dentro, eles não entram”, afirmou. Ambas têm o aval da National Rifle Association, mas sofrem a rejeição de membros dos dois partidos, de autoridades policiais e, sobretudo, de associações de professores.

O presidente defendeu ainda uma “estratégia agressiva para a segurança da comunidade”, a qual prevê, entre outras medidas, uma melhoria no sistema de alerta, ou ainda “tirar as armas dos que representam um perigo para si mesmos e para os outros”, em clara referência à questão da saúde mental. Essa é outra discussão bastante polêmica e ainda tratada de forma rasa e extremamente politizada pelo Executivo e pelos ativistas pró-armas. Tenderia mais a estigmatizar do que a abordar um lado que seria apenas parte dos efeitos colaterais de um problema, cujas causas continuam sendo deixadas à margem. Trump mencionou ainda uma dotação orçamentária de cerca de US$ 2 bilhões para “tornar as escolas mais seguras”. Em seu discurso, nenhuma palavra foi dita de modo objetivo, porém, sobre possíveis avanços a respeito de qualquer tipo de controle, ou limite, para a compra e a venda de armas – o que, sem dúvida, enfrentaria a resistência e a total oposição da NRA.

Pressão pós-Parkland

Com 17 mortos e 14 feridos, entre alunos e funcionários da escola, o tiroteio de 14 de fevereiro na escola Marjory Stoneman Douglas, de Parkland, deflagrou um movimento inédito no país, levando multidões de jovens às ruas para pedir leis mais rígidas sobre as armas. No dia 24 de março, pelo menos um milhão de pessoas teriam participado da “March of Our Lives”, em atos realizados em mais de 800 cidades, nos EUA e em outras capitais, como Paris e Londres. Em Washington, D.C., foram mais de 200 mil pessoas reunidas para pedir que se aumente a idade legal mínima para a compra de armas e que se limite o acesso à compra de rifles e fuzis, entre outras restrições.

A onda de impopularidade das armas levou muitas empresas a buscarem distância da NRA e do setor – pelo menos temporariamente. Companhias como Delta e United Airlines, Avis Budget Group, MetLife, a locadora de carros Hertz, Enterprise Holdings Inc, LifeLock, Symantec, TrueCar, SimpliSafe, ou o First National Bank, de Omaha, puseram fim a parcerias com a NRA. Grandes redes de varejo anunciaram que vão reduzir a oferta de armas e munições em suas lojas. Em uma reação direta ao ocorrido na Flórida, duas das líderes no mercado de armas no país, a Walmart e a loja de artigos esportivos Dick’s decidiram elevar para 21 a idade mínima para compra de armas. A Walmart também anunciou que não venderá mais itens semelhantes a armas de assalto, incluindo brinquedos, assim como a Dick’s.

Mensagens contraditórias

No meio do fogo cruzado da opinião pública, em um primeiro (e brevíssimo) momento, Trump pareceu acolher as reivindicações por mais controle. Reuniu-se com sobreviventes e com familiares das vítimas de Parkland, com autoridades e com lideranças do Congresso para falar do tema. Surpreendentemente, no encontro com congressistas na Casa Branca, o presidente chegou a propor uma ampla reforma, prometendo que sancionaria medidas nesse sentido. Entre elas, a alteração da idade mínima para compra de armas, que passaria de 18 para 21 anos, e a expansão da verificação de antecedentes criminais.

A NRA demorou a reagir em público, mas intensificou a pressão sobre o Executivo. Depois de um encontro com o principal lobbista do grupo, seu diretor-executivo para ação legislativa, Chris Cox, na presença do vice Mike Pence, na Casa Branca, Trump mudou o discurso e passou a defender, vigorosamente, a Segunda Emenda. Em meados de fevereiro, chamou a cúpula da NRA e seus membros de “Great People and Great American Patriots” e suavizou seu ímpeto de reforma, voltando a se concentrar nos sintomas, e não nas causas da violência com armas no país. Quando o juiz aposentado da Suprema Corte John Paul Stevens defendeu a revogação da Segunda Emenda, em um controverso artigo de opinião publicado no jornal The New York Times no final de março, Trump foi taxativo. “A SEGUNDA EMENDA NUNCA SERÁ REVOGADA!”, tuitou. A proposta também foi vista como muito radical por democratas.

“Acho que é um recuo realmente decepcionante, depois de toda retórica de reality-show”, reagiu o senador democrata Richard Blumenthal (D-CT) à mudança de discurso de Trump. Blumenthal representa um estado que também viveu sua tragédia particular. Em dezembro de 2012, 20 crianças foram mortas a tiros na Escola Elementar de Sandy Hook, localizada em Newtown, em Connecticut.

Mais controle

Pesquisa Reuters/Ipsos divulgada em março de 2018 mostra que 54% dos entrevistados querem “restrições, ou regulações mais rígidas” para armas de fogo. Esse percentual é maior do que os 39% registrados em uma enquete de abril de 2012, o que pode sinalizar uma reação à sequência de tragédias vividas no país. Entre os republicanos, esse número chega a 40%, quase o dobro dos 22% de abril de 2012. Outra pesquisa, feita pelo Instituto Gallup em outubro de 2017, logo após um tiroteio em massa em Las Vegas, já apontava essa tendência. A exigência de verificação de antecedentes para todas as compras de armas aparece com o apoio de 96% dos entrevistados, enquanto 70% aprovam que todas as armas de particulares sejam registradas na Polícia.

Os Estados Unidos lideram, com folga, uma lista de países desenvolvidos com maior número de armas de fogo per capita. São pelo menos 88,8 em cada 100 habitantes em comparação com 0,6, no Japão (o número mais baixo); 11,9, na Itália; 30,3, na Alemanha; ou 45,7, na Suíça, por exemplo.

Sequência de tragédias

Vários tiroteios em diferentes partes do país foram registrados nos últimos anos. Entre eles, em 12 de junho de 2016, um homem abriu fogo em uma boate em Orlando, deixando 49 mortos e vários feridos. Menos de um ano depois, em 1º de outubro de 2017, veio o pior massacre da história recente dos EUA. Da janela de um hotel, um homem atira a esmo contra uma multidão que assistia a um festival de música country em Las Vegas. Pelo menos 59 pessoas morreram, e 527 ficaram feridas. Logo depois, em 5 de novembro, o jovem Devin entraria atirando em uma igreja em Sutherland Springs, no Texas. Pelo menos 26 morreram nesse episódio. Desde Orlando, mais de 600 pessoas foram mortas, e mais de 2.600 ficaram feridas em tiroteios em massa nos Estados Unidos.

Avanços

Este ano, após os últimos eventos e em um ambiente altamente polarizado nesse tema, foi incluída na lei orçamentária sancionada por Trump em março uma medida que fortalece o sistema de verificação de antecedentes na compra de armas, a chamada Fix NICS. A medida repassaria recursos para os estados para se adequarem ao já existente Sistema Nacional Instantâneo de Verificação de Antecedentes Criminais (NICS, na sigla em inglês), além de punir as agências federais que não cumprirem essa determinação. Para Kris Brown, copresidente da Brady Campaign to Prevent Gun Violence, a Fix NICS “é um pequeno passo à frente. Achamos que não é o bastante”.

O orçamento inclui ainda, conforme anunciado por Trump na feira da NRA, verba para melhorar a segurança nas escolas, seja treinando agentes escolares e policiais para identificarem e para anteciparem potenciais sinais de violência, intervindo antes, seja por meio da instalação de detectores de metais, entre outras medidas para endurecer a vigilância nos estabelecimentos de ensino.

No final de março, o Departamento de Justiça propôs banir o acessório conhecido como bump stock, que aumenta a capacidade de armas semiautomáticas e está ligado à tragédia de Las Vegas. A NRA é a favor de alguma regulação nesse sentido, mas se opõe à sua proibição.

Mudanças nas legislações estaduais

Alterações mais significativas vem sendo registradas, ou estão em debate, em alguns estados, no que diz respeito à verificação de antecedentes, condições de posse e porte, idade mínima para compra de armas e até restrições ao uso do bump stock.

Em Rhode Island, por exemplo, a governadora Gina Raimondo sancionou uma ordem executiva para permitir que seja possível retirar as armas de “pessoas que imponham um risco para si mesmas e para os outros”. Connecticut, Califórnia, Washington, Oregon e Indiana também aprovaram leis similares de avaliação de “risco extremo”. Além disso, Rhode Island, Connecticut, Massachusetts, Nova Jersey e Nova York se uniram em uma “coalizão de combate à violência com armas”. O objetivo do grupo é criar uma base de dados interestadual para rastrear e interceptar armas usadas em crimes, ou que ultrapassem as fronteiras.

Na Flórida, o governador Rick Scott (republicano) propôs a alteração para 21 da idade mínima permitida para a compra de rifles de assalto, além de US$ 450 milhões em recursos para a segurança nas escolas e US$ 50 milhões para tratamento de saúde mental. Outra proposta é que cada escola pública conte com um policial. Já em Oregon, a Câmara e o Senado locais aprovaram uma lei que proíbe pessoas consideradas culpadas de violência doméstica de comprarem armas. Washington e Illinois também querem elevar para 21 anos a idade mínima para aquisição de rifles semiautomáticos.

Washington pretende ainda estabelecer a obrigatoriedade de verificação de antecedentes nos registros estadual e federal; a criação de um programa para estudantes de denúncias anônimas de ameaças; assim como a proibição dos bump stocks. Na Dakota do Sul e em Indiana, a Câmara local aprovou uma medida chamada de “autodefesa” pela NRA, permitindo que as pessoas levem armas para escolas e igrejas.

Em mais um ciclo de debate sobre a reforma das armas, motivado, sobretudo, pela visibilidade dos estudantes de Parkland, pouco se avançou, mais uma vez, deixando antever que ainda não chegou o momento de grandes e definitivas transformações. O que começa a ficar claro, como se viu, é que as mudanças virão aos poucos do nível local, em ações tomadas pelos estados, mais do que em nível nacional.

Realização:
Apoio:

Conheça o projeto OPEU

O OPEU é um portal de notícias e um banco de dados dedicado ao acompanhamento da política doméstica e internacional dos EUA.

Ler mais