Panorama EUA

Spielberg, o Vietnã e o Triunfo da Democracia Norte-Americana

Estudos e Análises de Conjuntura, no. 14, março de 2018

Resenha do filme The Post: A Guerra Secreta

por Natália Mello*

O novo filme de Steven Spielberg, The Post: a Guerra Secreta (2017), recebeu uma série de críticas elogiosas nos Estados Unidos e no Brasil pela qualidade da produção e por colocar em cena tópicos extremamente relevantes para atualidade, tais como a situação da democracia em tempos sombrios, o papel da imprensa e o empoderamento feminino. Nele, Spielberg retorna novamente à história norte-americana – nos últimos cinco anos o diretor lançou Lincoln (2012) e Ponte dos Espiões (2015) – desta vez para recontar o episódio da publicação na imprensa de partes de um estudo produzido internamente no governo, conhecido como Pentagon Papers, que investigou as origens e o desenvolvimento da Guerra do Vietnã (entre 1945 e 1967) a partir do acesso a documentos secretos, especialmente, os provenientes do Pentágono. O estudo foi realizado aproximadamente entre meados de 1967 e início de 1969, sob encomenda do secretário de Defesa Robert McNamara, e foi vazado para a imprensa em 1971 por um dos ex-participante da força-tarefa, Daniel Ellsberg.

Este importante episódio da história é narrado, na maior parte do filme, a partir dos bastidores do jornal The Washington Post, em 1971, nos dias que antecedem a dramática decisão sobre publicar ou não trechos dos documentos secretos da guerra. The Post é construído com suspense e adrenalina. Um dos tópicos é a liberdade de imprensa e os embates com um presidente em guerra com os jornalistas. Outro tema importante, que ganha corpo ao longo da película, é a batalha feminina por garantir lugar e voz em um espaço essencialmente masculino. Por último, a questão da publicação dos documentos é recheada de tensão por causa de riscos judiciais e financeiros envolvidos. Os Pentagon Papers começarem a ser revelados pelo New York Times, mas este foi proibido de dar continuidade as reportagens por uma decisão judicial que acatou a alegação da Casa Branca de que isso ameaçaria a segurança nacional. A tensão se torna ainda maior por se tratar de um jornal local que buscava, naquela época, adquirir relevância nacional e estava justamente abrindo o capital para investimento. Nesta conjuntura, o descumprimento de uma decisão judicial poderia comprometer a própria sobrevivência da publicação.

Efetivamente, a obra possui um elenco excelente, com destaque a Tom Hanks como o editor Ben Bradlee e Meryl Streep como a presidente-executiva e proprietária Katherine Graham, e um enredo com temáticas incrivelmente pertinentes ao presente, inclusive as virtudes de uma imprensa livre e que fiscaliza um presidente sem escrúpulos e em guerra com a mídia (qualquer semelhança não é mera coincidência, o diretor deixa claro que foram os últimos acontecimentos nos Estados Unidos que provocaram o interesse pelo tema). É intrigante, no entanto, o ponto de vista que Spielberg elege para narrar a publicação na imprensa dos Pentagon Papers. O “furo” do estudo secreto foi conseguido pelo New York Times, no entanto, o jornal tem uma participação marginal no filme, bem como o jornalista que escreveu as reportagens, Neil Sheehan.

O ex-oficial de segurança que vazou o relatório da força-tarefa à imprensa, tampouco recebe um papel importante na trama, embora conte, ao menos, com uma presença mínima na narrativa. As cenas iniciais em The Post, aliás, nos introduzem na história a partir do ângulo e das vivências de Ellsberg. O filme começa em uma província no Vietnã, em 1966, com imagens de soldados se preparando para o combate e, então, surge em cena Daniel Ellsberg. “Dan’ é apresentado ao espectador por meio de um diálogo entre dois militares a respeito da identidade do desconhecido, no qual um deles revela que ele trabalha para a embaixada norte-americana e estava no país apenas para observar. Menos de um minuto depois, a película avança para a exibição da batalha. A cena do combate é realista; ocorre na escuridão da noite, em um cenário da mata vietnamita, chuvoso e repleto de lama e poças, em suma, uma batalha usual no Vietnã. Uma sequência de tiros, mortes e alguns enfoques da câmera em um Ellsberg assustado completam esta tomada. No dia seguinte, a imagem é de corpos e feridos deitados no chão, ao som da datilografia veloz do oficial que veio “apenas observar”. Encerra-se, desta forma, o breve trecho do filme, de apenas 4 minutos, que representa a Guerra do Vietnã a partir do campo de batalha.

A narrativa continua com a viagem de avião de volta aos Estados Unidos, na qual estavam Ellsberg, o secretário de Defesa McNamara e Komer (chefe do programa de pacificação), além de outros oficiais anônimos. No trajeto, o secretário e Komer divergem a respeito do progresso obtido na guerra no último ano, depois que houve a introdução massiva de tropas norte-americanas. Para resolver a controvérsia, McNamara solicita a “Dan” sua opinião e este responde que não vê nenhuma melhora ou mudança no último ano. O secretário conclui que isso confirma a sua avaliação: não haver progresso após a introdução de centenas de milhares de soldados significa que, na verdade, estão piorando. Sua avaliação sobre a guerra muda radicalmente, no entanto, quando o secretário vai reportar à imprensa as impressões de sua visita ao Vietnã. Logo ao sair do avião, McNamara declara aos jornalistas que regressa do campo de batalha com bastante otimismo e que efetivamente estão progredindo bastante na guerra, acima de suas expectativas. Música de suspense e uma câmera um pouco mais lenta focalizando a face chocada de Ellsberg indicam que chegamos ao motivo central do enredo: a mentira que os governantes contam para os meios de comunicação e para a população em geral.

As mentiras, neste caso, não são necessariamente a respeito da Guerra do Vietnã. A partir deste momento a guerra começa a ter um espaço marginal no filme. Não deixa de ser, ainda assim, um pretexto profícuo para tratar de um tema que se tornou tão atual na era de Trump, Brexit e das fake news, afinal, abundam casos de fraudes e inverdades na postura governamental ao longo da intervenção no Vietnã e tais fatos foram amplamente relatados no estudo dos Pentagon Papers. E embora estes trabalhos não tivessem como questão central as manipulações realizadas por governantes – e sim as razões da guerra e sua evolução – a divulgação delas na imprensa foi um grande escândalo e tornou-se corriqueiro, após as denúncias, a declaração de que o governo mentia desde o começo da Guerra do Vietnã.

No filme, igualmente, os Pentagon Papers são pura e simplesmente a compilação dos engodos contados durante a guerra. O estudo aparece, pela primeira vez, imediatamente após Ellsberg assistir ao secretário ludibriando a imprensa, a que se segue a cena do ex-oficial de Defesa fazendo cópias ilegais dos Pentagon Papers. Pouco é explicado ao espectador sobre as origens e razões de ter sido criada uma força tarefa sobre o Papers, nem é esclarecido que o grupo responsável contou com a contribuição de 36 integrantes, e não apenas Ellsberg, sendo que diversos deles eram favoráveis a guerra. Tampouco é apresentado que, desde 1967, o ano de inauguração da força-tarefa, diversas forças internas e externas ao governo desejavam reduzir a intervenção no Vietnã. Menos ainda, que a oposição à guerra cresceu volumosamente em 1968 e 1969, e, enquanto isso, a partir da ascensão de Nixon ao poder, a guerra expandiu, primeiro para o Laos (1970) e depois para o Camboja (1971). O resultado é que não chegamos a saber que esta expansão, em desacordo com o sentimento popular sobre a guerra, foi o principal motivo que impulsionou Ellsberg a vazar os Papers à imprensa.

Na realidade, os movimentos de oposição à guerra estão quase ausentes do filme. A única exceção dura apenas alguns segundos, na qual ouvimos uma narração do rádio informando que a publicação dos documentos no New York Times gerou manifestações em todo o país, áudio que ocorre ao mesmo tempo que vemos cenas de alguns hippies protestando. Na tela, visualizamos cerca de dezenas de pessoas, o que não dá a menor dimensão ou noção das centenas de milhares que ocuparam as ruas numerosas vezes naqueles anos de guerra. Menos ainda que o movimento antiguerra, ao longo daqueles anos, assumiu uma análise bastante crítica de toda a estrutura responsável por aquela intervenção catastrófica no Vietnã, a começar pela própria lógica de Guerra Fria e combate ao comunismo e chegando até as deficiências do sistema político norte-americano. Na realidade, esta ampla contestação era acompanhada de reivindicações por uma transformação da sociedade e da política no país.

Chama a atenção que o filme também não explica as razões para os Estados Unidos terem iniciado a intervenção no Vietnã, menosprezando o tema do anticomunismo, do contexto de Guerra Fria, da expansão da influência do complexo industrial-militar na política. Curiosamente, um filme recente de Spielberg, Ponte dos Espiões (2015), que igualmente se passa na Guerra Fria e também é protagonizado por Tom Hanks, tinha a preocupação em fazer essas explanações, inclusive de forma muito mais didática. Na realidade, em The Post, aparecem duas frases sobre o combate aos comunistas, em uma delas, se afirma que a guerra se explica apenas em 20% pelo anticomunismo, em outra, McNamara se defende perante a presidente do Washington Post, dizendo que eles só queriam conter o comunismo e fizeram o melhor que podiam em um contexto de teoria do dominó e da contenção.

Além destas breves menções à Guerra Fria, alguns fatos sobre a guerra são apresentados no decorrer do filme sob a forma de manchetes de jornal, ou como possíveis temas a serem abordados nas matérias, e, de modo igual, também aparecem na parte inicial em que Ellsberg copia os Pentagon Papers. O exemplo do trecho da realização de fotocópias não deixa dúvidas de que não estamos falando do anticomunismo, ou de uma hegemonia de questões de segurança militar na política externa de Guerra Fria, nem da preocupação com a ameaça chinesa e da teoria do dominó na Ásia. Com efeito, são as mentiras contatas desde Truman até Johnson que preenchem esta cena: por exemplo, comprometer-se que ação ocorrerá por meio da ONU versus enviar uma ajuda militar unilateral à Indochina (Truman), ou então, prometer que os Estados Unidos não iniciariam qualquer guerra, ao mesmo tempo que já estavam sendo realizadas operações secretas no país (Kennedy), ou sustentar que as tropas americanas não seriam enviadas, o que foi descumprido logo depois (Johnson).

Podemos presumir, então, que The Post não é sobre o furo dos Pentagon Papers (que não foi realizado pelo The Washington Post), nem sobre a Guerra do Vietnã (dada a desvalorização da trama da guerra), mas sim sobre as mentiras e inverdades de governantes, o papel da imprensa em revelar estes vícios e o empoderamento feminino no espaço público; todos temas, aliás, que foram algumas das principais pautas, em 2017, em Washington e em Hollywood. Mas embora esta conclusão seja parcialmente verdade, ela não é absoluta.

Em primeiro lugar, as películas hollywoodianas dedicadas explicitamente ao tema do Vietnã, tampouco trazem muitas informações sobre a guerra. Sobre este assunto, foi escrito um livro essencial, editado por Linda Dittmar e Gene Michaud e intitulado From Hanoi to Hollywood (1990), que distingue e analisa os diferentes padrões de obras cinematográficas sobre o Vietnã. Nos capítulos deste livro é possível ver, por exemplo, o caso de produções a respeito do retorno à pátria de soldados que serviram no Sudeste Asiático – como Amargo Regresso (1978), e Tracks (1976) – que abordam o tema dos traumas, dos impactos psicológicos ocasionados pelos combates e do fracasso dos EUA pós-Vietnã em acolher estes veteranos. O Franco Atirador (1978) foge um pouco da narrativa anterior. De um lado, há uma maior ambientação no período anterior à expedição, um trecho menor das experiências de combate e somente depois o retorno. De outro, o tema continua sendo os traumas acarretados e a perda da inocência, porém, ao invés de ratificar o fracasso no acolhimento, conclui reafirmando a unidade e força norte-americana representada pela reunião dos principais personagens, na última cena, em volta de uma mesa e cantando God Bless America.

Há ainda uma classe de filmes tematizando as brutalidades cometidas por norte-americanos – ao contrário de alguns dos filmes acima, nos quais, os bárbaros são os vietnamitas. Alguns exemplos são Platoon (1986) ou Pecados de Guerra (1989). Os episódios mais brutais e desumanos narrados no enredo são explicados por alguns soldados semi-fascistas que foram empurrados para atrocidades por problemas psíquicos e pelas próprias atrocidades da guerra e são corrigidos por seus erros, no desenrolar da trama, pelos próprios personagens principais do filme, que optam por seguir as leis de guerra e a ética. Não é atribuído nem à elite política americana, nem aos militares, nem aos governos nenhuma responsabilidade pelas atrocidades cometidas no Vietnã. Trata-se apenas do lado oculto da natureza humana em circunstâncias de stress extremo.

Em nenhum destes longas-metragens, se pretende situar a guerra do Vietnã em uma perspectiva histórica, nem abordar os problemas do sistema político que levaram à guerra, nem contextualizar que surgiu um movimento antiguerra e que demandava transformações sociais e políticas. (Sem mencionar os casos ainda mais problemáticos dos filmes da era Reagan, como Rambo II (1985) e Braddock 2 – O Início da Missão (1985), que são explicitamente jingoístas e militaristas e narravam supostos resgastes de prisioneiros americanos no Vietnã, por meio do qual davam uma espécie de oportunidade de se lutar novamente a guerra, desta vez, com a vitória dos norte-americanos.)

Em segundo lugar, embora a guerra propriamente dita seja negligenciada em The Post, os temas relacionados ao Vietnã estão presentes na obra de Spielberg, ao menos com a mesma intensidade que as representações descritas acima. Em interpretações hollywoodianas, em análises acadêmicas, ou mesmo no senso comum, o ambiente da Guerra do Vietnã é caracterizado, acima de tudo, pelas divisões, conflitos e discórdias suscitados na sociedade norte-americana. Este tema aparece tanto nos filmes sobre traumas e retornos, quanto nas películas sobre as brutalidades cometidas por uma tropa dividida entre o comportamento ético e atitudes protofascistas. Similarmente, dezenas de estudos acadêmicos da época descrevem a quebra de coesão dentro do Poder Executivo, ou entre o Presidente e o Congresso, ou o desarranjo que a guerra provocou no establishment, até então, formado por grupos poderosos que possuíam atributos essencialmente homogêneos (por serem recrutados no interior de uma mesma elite, que era formada nas mesmas universidades e compartilhava algumas visões básicas sobre a sociedade e política).

Existem algumas análises que também discorrem sobre como estas divisões atingiam as relações entre o governo e a imprensa, intensificando confrontos e desarmonias entre eles. Destler, Gelb e Lake, por exemplo, identificavam no livro Our Own Worst Enemy (1984) um aumento do escrutínio ao governo, de um tom cético nas reportagens e de uma cultura de tratamento dos políticos como adversários. Em certa medida, eles consideravam que estas novas posturas eram justificáveis, dada a desnecessária intervenção no Vietnã e a incapacidade do sistema político reconhecer que o país era marginal aos interesses norte-americanos. A imprensa nem havia tentado impedir este fracasso, já que aquiescia ao Presidente e não buscava fontes alternativas às oficiais. Neste sentido, era justificável lançar um novo jornalismo, preocupado em fiscalizar o poder, no entanto, Destler, Gelb e Lake viam com pessimismo os impactos das mudanças que ocorriam na cultura da imprensa.

Este tema intrinsicamente pós-Vietnã é parte crucial do enredo de Spielberg. O filme The Post realiza uma convincente representação de uma conjuntura em que a antiga relação de proximidade e aquiescência entre jornalistas e governantes foi transformada em uma nova postura em que não se admite abafar o “furo” em mãos, pois necessitavam revelar a “verdade” à nação. Temos em cenas o impacto desolador das revelações já publicadas pelo New York Times, desmontando a credibilidade e confiança que o governo gerava nos meios de comunicação e, especificamente, na presidente-executiva Graham e como, em meio a este desencanto, tanto Graham, quanto Bradlee reconhecem que mantinham um relacionamento muito próximo com governantes e acabavam por protegê-los, ou serem condescendentes com eles.

Em uma conversa entre Graham e Bradlee, o editor-chefe faz uma longa exposição sobre os problemas do antigo padrão e a necessidade de se fiscalizar o governo. Segundo ele, “políticos e imprensa confiam um no outro para irem aos jantares, tomarem coquetéis, contarem piada, enquanto há uma violenta guerra no Vietnã. […] Eu nunca pensei em “Jack” [Kennedy] como uma fonte, pensava como um amigo. E aquele foi o meu erro. Era algo que “Jack” sabia o tempo todo. Não podemos ser ambos, temos que escolher. E esse é o ponto. Os dias fumando cigarro junto na Avenida Pensilvânia acabaram. O estudo do seu amigo McNamara prova isso. O modo como eles mentiram, ah, o modo como mentiram…esses dias têm que acabar! Temos que fiscalizar esse poder. Se não os mantermos responsáveis (accountable), quem fará isso?”

Este novo papel a ser assumido pela imprensa perpassa, portanto, um processo de divisão e quebra de confiança no interior da elite norte-americana, que se conhecia de clubes, jantares, universidades. E a decisão clímax de publicar ou não publicar os Pentagon Papers envolvia não apenas o risco de perder investidores, ou de sofrer uma ação judicial, mas de quebrar relações de proximidade de uma elite que ocupava diversos espaços de poder.

Além da divisão na elite, The Post apresenta outro tema que é tipicamente de uma era que começou com o Vietnã: uma concepção mais cética a respeito da democracia norte-americana. Os governantes são desacreditados e já não aparecem mais como chefes responsáveis, líderes sábios e estadistas eficientes. Aprendemos sobre as mentiras de Truman, Eisenhower, Kennedy e Johnson sobre a guerra. Pior ainda, é a imagem do presidente em poder, Nixon, que eleva e multiplica os problemas morais, os abusos governamentais. Nas gravações originais e já clássicas de Nixon, vemos o comportamento abusivo em relação à liberdade de imprensa e, ao longo do filme somos avisados sobre sua conduta desonesta e seu abuso do poder presidencial para fins egoístas. Além disso, temos um presidente em guerra com a imprensa, que emana frequentes insultos e se exprime por gestos que são claramente uma analogia às gesticulações típicas de Trump.

Significativamente, os outros filmes recentes de Spielberg sobre a história norte-americana apresentam a mesma visão desencantada da democracia norte-americana. Em Lincoln (2012), acompanhamos o processo de aprovação da 13ª Emenda, a medida que aboliu oficialmente a escravidão. O projeto alcança maioria no Congresso graças a tratos clientelistas, e até corruptos, entre assessores presidenciais e congressistas que não inspiram nenhuma admiração. A película discute também, em algumas passagens, os poderes extraordinários assumidos por Lincoln ao longo da guerra e se não haveria contradição entre esse estado de exceção e o regime democrático. Além disso, como comenta o historiador Louis Mansur em Lincoln at the Movies (2012) o presidente Lincoln, tal como representado por Spielberg, “é compatível com o nosso próprio cinismo [contemporâneo] sobre o processo político”, no sentido de ser essencialmente pragmático em suas decisões – e não um idealista ou moralista – e um líder capaz de conciliar com adversários. O fato de sermos apresentados ao seu drama familiar também humaniza um herói nacional. Por outro lado, apesar de apresentar um ícone e uma etapa da democracia norte-americana com pouca ênfase em uma narrativa mítica, ao mesmo tempo é reafirmado que mesmo uma democracia defeituosa pode produzir acordos e conciliações, até em temas mais espinhosos – como a escravidão – e inclusive com a presença de grupos radicais, como é representado pelo personagem Thaddeus Stevens. Temos uma visão desencantada da democracia e, no entanto, como afirma Lincoln nos últimos minutos do filme, devemos “manter a fé no processo democrático, [ainda que seja] tão frustrante quanto ele pode ser”.

A mesma concepção desencantada da democracia norte-americana aparece em Ponte dos Espiões (2015). O filme narra a odisseia do advogado Henry Donovan (Tom Hanks) que enfrenta o desejo governamental e a opinião pública para conseguir realizar uma defesa justa de um espião soviético durante a Guerra Fria. Enquanto a sociedade e os agentes do Estado que aparecem no filme (membros do judiciário e da CIA) esperam apenas um julgamento de fachada e estão mais propensos a um linchamento que à justiça, Donovan – um homem comum e ético – é o único que considera que, por ser uma democracia, os Estados Unidos devem garantir o devido processo legal, um julgamento justo e um tratamento humano ao espião. Mais à frente do filme, o advogado também participa dos esforços por uma troca humanitária entre prisioneiros americanos e o soviético apreendido nos Estados Unidos. Como percebido pelo historiador Wallace Guedes em Ponte dos Espiões e o Diálogo como Caminho (2016), novamente Spielberg narra uma situação extrema – desta vez, a Guerra Fria – e igualmente observamos uma democracia deficiente com representantes do Estado repreensíveis. O resultado certo é alcançado – a defesa justa de um acusado e a negociação com adversários comunistas – graças a ação do cidadão comum. A colaboração entre Spielberg e os irmãos Coen para o roteiro deste filme parece ser especialmente adequada para esta história que combina uma visão cética e uma nova idealização dos potenciais da democracia norte-americana, mesmo que desta vez a solução emane do cidadão externo ao governo.

A lógica de The Post é a mesma. Em Ponte dos Espiões, Donovan ao menos estava a serviço do governo (apesar de que para ser ético era obrigado a ignorar as ordens recebidas), no entanto, no filme produzido na era Trump, um dos momentos de maior degradação dos Estados Unidos no período recente, já não há qualquer esperança no governo ou nos auxiliares civis próximos. Mesmo assim, há uma renovação da esperança na democracia norte-americana a partir do papel cumprido pela imprensa. E quando o filme indica, na última cena, que a história é mera precursora do que virá a ser o escândalo de Watergate, deixa claro que, no caso de abusos excessivos, a imprensa pode até ocasionar a queda de governantes sem escrúpulos. Spielberg oferece, então, uma poderosa imagem, que mesmo nos momentos de maior declínio democrático, podemos ter esperança na própria democracia, que por meio da liberdade de imprensa e de seus checks and balances (representado pela decisão da Suprema Corte) consegue corrigir os seus percalços.

Neste sentido, assim como os filmes sobre atrocidades no Vietnã permitiam que um personagem ético corrigisse a conduta de indivíduos protofascitas, em Lincoln, Ponte dos Espiões e The Post, sempre há alguém ou alguma autoridade que possa “corrigir” os vícios inerentes a uma democracia que não é – e nem pode ser – perfeita. Nos filmes de Spielberg, estes ajustes são realizados sempre pela ação das elites – a abolição dispensa a ação e movimentação de negros, a revelação sobre as mentiras do governo durante a guerra dispensam as mobilizações e protestos contra o Vietnã.

É possível concluir que apesar de negligenciar uma contextualização histórica do que foi o Vietnã, ainda assim, os temas de uma das guerras mais impactantes na política norte-americana estão amplamente presentes no filme: a divisão e conflitos suscitados na sociedade e a nova concepção da democracia que emergiu nos EUA a partir do desencanto com a guerra e com os governantes. A combinação entre uma versão cética da democracia, ao mesmo tempo que há um tom laudatório sobre as capacidades do sistema político, acabou por exigir o apagamento de maiores detalhes do Vietnã, dos fracassos da própria democracia norte-americana em impedir aquelas barbaridades e, talvez sobretudo, da importância das massivas mobilizações contra a guerra não apenas para que o governo assumisse os seus erros, mas também para que a própria imprensa adotasse um papel para si mais investigativo e fiscalizador das intervenções no exterior. A partir dos primeiros protestos, surgiu um movimento contrário à guerra e também contra o sistema político norte-americano, e até mesmo, contra a imprensa. Na narrativa de The Post, não conhecemos este movimento. E as representações do governo – com a exceção do presidente Nixon – não são tão problemáticas como nos outros dois filmes recentes de Spielberg. Exceto Nixon, não há líderes corruptos, nem um judiciário que tem mais interesse no linchamento do que na justiça. McNamara é o maior exemplo disso, temos um retrato bastante humanizado de um dos maiores estrategistas da Guerra do Vietnã. O principal problema é que os dirigentes mentiram, pois consideravam que seria o mais adequado para preservar o prestígio dos Estados Unidos. O resultado é que a correção deste desvio da democracia é uma das mais fáceis: basta revelar a verdade. Constrói-se, assim, uma das visões mais laudatórias do regime político norte-americano em uma era pós-Vietnã, ao mesmo tempo que a barbárie que foi a Guerra do Vietnã e a possibilidade de transformação que provocou são essencialmente apagadas.

 

* Natália Mello é Doutora em Ciência Política (USP), com a tese Os Intelectuais Saem da Guerra, no qual estudou o impacto da Guerra do Vietnã na política norte-americana a partir da investigação do periódico Foreign Policy.

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