Entre oscilações e rompimento: a política externa de Trump 2.0 para a África

(Arquivo) Presidente Donald J. Trump em um almoço de trabalho com líderes africanos na Assembleia Geral das Nações Unidas, em 2 out. 2017 (Crédito: Shealah Craighead/Arquivo da Casa Branca/Flickr/Wikimedia Commons)
Dossiê “100 dias de Trump 2.0”
Por Vanessa Bandeira e Yasmim Abril M. Reis* [Informe OPEU] [100 dias] [Trump 2.0] [África]
Desde a década de 1950, as relações entre os Estados Unidos e a África têm sido pautadas por momentos de instabilidade na regularidade das relações. Historicamente, é possível observar diferentes períodos de oscilação, com ciclos em que há uma maior aproximação, e outros, um considerável afastamento.
Nos anos 1960, enquanto os países africanos iniciavam seu processo de descolonização, o mundo vivenciava a Guerra Fria. Tal evento era caracterizado por um embate político-ideológico entre os Estados Unidos, representando o bloco capitalista, e a antiga União Soviética, personificando o bloco comunista, em suas áreas de influência. Para ambos os lados, o principal objetivo era conter ou, pelo menos, minimizar a presença do bloco rival em suas áreas de influência e projeção, bem como expandir a área de atuação de seu bloco. Nesse sentido, apesar de prover alguns benefícios ao continente, durante esse período, a política externa norte-americana para a África foi orientada por seus objetivos geopolíticos e caracterizada, principalmente, pelo financiamento do governo estadunidense a grupos rivais ao bloco comunista no continente.
Visando a mitigar a influência soviética na área, os EUA deram suporte, por exemplo, ao Apartheid na África do Sul e a regimes autoritários, como no caso do Zaire (atual República Democrática do Congo) sob o comando de Mobutu Sese Seko. Com o fim da Guerra Fria em 1991 e, consequentemente, da bipolaridade, o continente africano perdeu a importância estratégica na formulação da política externa dos Estados Unidos, sendo relegado a segundo plano.
Foi somente a partir dos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001 que as relações entre Estados Unidos e África foram, novamente, atualizadas. Nesse sentido, é interessante notar que essa relação é diretamente influenciada pelos eventos internacionais. Na concepção de John Mearsheimer, em seu livro The Tragedy of Great Power Politics (W.W. Norton Company, 2001), a posição de potência hegemônica regional aliada à pressão sistêmica provocava nos Estados Unidos a necessidade de intervir e de manter presença em outros continentes para além da América. Evitava-se, segundo o autor, a formação de um vácuo de poder.
A inflexão da política externa norte-americana para o continente africano teve reflexo direto na Guerra Global ao Terror inaugurada em 2001 pelo então presidente George W. Bush (2001-2008). Nesse período, a região foi gradualmente inserida na política externa dos Estados Unidos por meio da percepção de que “Estados pobres” e com fragilidades institucionais eram preocupantes para a Casa Branca por se configurarem como ambientes vulneráveis passíveis de ocupação por redes terroristas. Ademais, a expansão das atividades da rede Al-Qaeda na África durante a década de 1990 também se configurava como um sinal de alerta. Embora a África não fosse mencionada na Estratégia de Segurança Nacional de 2002, a preocupação supracitada alertava o governo norte-americano para a necessidade de desenvolvimento de uma política externa direcionada para o continente. Seu principal objetivo seria combater a fragilidade dos Estados da região por intermédio da promoção de iniciativas de cooperação bilateral e pela formação de coalizões para o enfrentamento dos problemas de segurança, caracterizados pelo combate ao terrorismo. A materialização dessa preocupação pode ser demonstrada pela criação do Comando dos Estados Unidos para a África (AFRICOM, na sigla em inglês), em 2007.
O governo Barack Obama (2008-2017), por meio de sua Estratégia de Segurança Nacional publicada em 2010, mudou as diretrizes do relacionamento com a África, ampliando a relação para além dos temas de segurança. A fim de fornecer oportunidades de desenvolvimento, passou a fomentar iniciativas que estimulassem a economia, o comércio e investimentos para a região, bem como que promovessem a governança e os direitos humanos – o que, por vezes, não era tão bem-recebido por alguns líderes africanos. Esses líderes questionaram a proposta por diversas razões. Para esses líderes, temas como direitos humanos e governança eram tratados como secundários em detrimento dos interesses econômicos prioritários dos EUA no território.
Desse modo, mediante a ampliação do seu escopo de ações, os Estados Unidos também expandiram sua influência na região. Os EUA buscaram estar inseridos, principalmente, naquilo que dizia respeito ao petróleo, segurança marítima, combate ao terrorismo e à epidemia de HIV/aids no continente. Cabe destacar que, em paralelo, as iniciativas de cooperação entre a China e os países africanos se intensificavam consideravelmente, posicionando o gigante asiático como um ator desafiante à presença e à influência norte-americana na região. A atuação chinesa se dava via grandes investimentos e projetos no setor de infraestrutura. A principal diferença com relação à atuação dos EUA é que não havia tantas imposições e/ou exigências relacionadas à boa governança ou aos direitos humanos, por exemplo.
O governo Trump 1.0 e sua ambiguidade
Com o início do primeiro governo Donald Trump (2017-2021) em 2017, caracterizado pelo slogan político America First, as relações com a África foram, mais uma vez, impactadas. O desejo de conferir baixa prioridade à região era contrastado com os interesses geopolíticos dos EUA. Nesse sentido, a política externa do governo Trump 1.0 foi ambígua. Buscou reduzir gastos e a ajuda financeira ao continente, assim como minimizar sua presença militar na região, sob a justificativa de que a participação estadunidense na África não era estratégica. Não gerava, portanto, retornos suficientes aos seus interesses. Ao mesmo tempo, os EUA tentaram se fazer presente para contrapor a crescente influência chinesa e russa no continente.
O desdém norte-americano com as relações com a África, reforçado pelo fato de Trump ser o primeiro presidente estadunidense em décadas a não ter visitado o continente, motivou alguns líderes do território africano a incitarem iniciativas que rechaçassem a presença e a influência de potências que historicamente atuavam na região. Como agravante, há de se ressaltar ainda o fato de Trump ter utilizado palavras de baixo calão para se referir aos países africanos, o que foi recebido com revolta pelos mesmos e motivou, inclusive, uma declaração de repúdio da ONU. Sob o slogan informal Africa First, incentivos a soluções africanas para problemas africanos e à mobilização regional em prol de suas questões e desafios se intensificaram. Ademais, a postura do governo Trump 1.0 com relação à África propiciou o fortalecimento das relações de países africanos com China e Rússia. Esse último país teve sua relevância para a África reafirmada a partir da votação na Assembleia Geral da ONU que visou a culpabilizar a Rússia pela invasão da Ucrânia: 17 das 35 abstenções e nove das 12 ausências foram de países africanos.
Os anos subsequentes configuraram, novamente, uma mudança nessa relação. O governo Joe Biden (2021-2025) assumiu seu mandato com a promessa de estabelecer uma nova era nas relações com a África, baseada no respeito mútuo e em interesses em comum. Todo essa ambição na retomada e na intensificação da política externa com o continente africano visava a, sobretudo, conter a presença chinesa e russa na África por meio do fomento ao desenvolvimento, do incentivo ao comércio bilateral, da cooperação em segurança e da promoção da democracia. Como demonstração de boa vontade, em 2022, os EUA sediaram, pela primeira vez, em Washington, a Cúpula de Líderes EUA-África, proposta em 2014 pela gestão Obama.
(Arquivo) O então presidente Joe Biden no retrato de família da Cúpula de Líderes Africanos dos EUA, no Centro de Convenções de Washington, em Washington, D.C., em 15 dez. 2022 (Crédito: Casa Branca/Adam Schultz/Wikimedia Commons/Flickr)
Em 2025, Donald Trump retorna à Casa Branca, marcando, mais uma vez, uma ruptura nas relações norte-americanas e africanas, na medida em que reduz os investimentos nesses países e cria atritos diplomáticos com os Estados da região. Ao se completarem 100 dias de Trump 2.0, é pertinente entendermos como esse novo governo modificará essa relação que, durante anos, foi conduzida de forma estratégica pelos EUA, com o objetivo de assegurar a presença norte-americana no território africano.
Retrocesso nas relações: o impacto do corte da USAID sobre o continente
A agenda desenvolvimentista para a África da política externa do Partido Democrata entra em crise nos primeiros 100 dias de Trump 2.0. Nos últimos anos do mandato do então presidente Biden (2021-2025), a política externa dos EUA para a África buscou projetar sua imagem de guardião dos valores democráticos e morais, em especial por meio da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID, na sigla em inglês).
Em menos de 30 dias de governo, Trump anunciou o corte da assistência global fornecida pelos EUA por meio da USAID. Contribuição essa que foi a ferramenta diplomática e política dos EUA nos últimos anos em diferentes regiões do globo, sobretudo, para a África. Assim, em 26 de fevereiro, o governo Trump 2.0 anunciou o corte de mais de 90% dos contratos da agência, resultando na suspensão de em torno de US$ 60 bilhões em recursos e de 5,8 mil projetos voltados para a promoção da saúde global, incluindo ações contra HIV, malária, desnutrição, entre outras.
Saiba mais sobre a USAID neste episódio do podcast Chutando a Escada
É importante frisar que, apesar dos movimentos de política externa dos Estados Unidos para a África desde 2001, a região sempre ocupou uma posição secundária na prioridade estratégica norte-americana. Da mesma forma, a expectativa para o novo governo Trump não é diferente. O país se direciona cada vez mais para regiões geoestratégicas, como o Indo-Pacífico, Eurásia e Ártico, em meio à busca pela retomada do poder relativo estadunidense em um contexto de intensificação da competição pela supremacia global com a China.
Contrariamente ao que se esperava em um ambiente internacional que anseia pela busca dos minerais críticos na perspectiva da geopolítica da energia e apesar de ser uma região detentora de grandes reservas minerais, a África não ocupa a centralidade na disputa. Na lógica desenvolvida pelos EUA nos últimos anos, era plausível esperar maior envolvimento norte-americano no continente. Todavia, tudo o que o novo governo Trump sinaliza é que o continente não será prioritário em sua política externa. Logo, identifica-se (ou melhor tende-se a esperar) que a região volte a declinar na prioridade norte-americana em um contexto de ascensão chinesa. Se olhássemos pela lente de Mearsheimer, Trump estaria na contramão do seu projeto de retomada do poder relativo dos Estados Unidos, uma vez que a África é detentora das principais reservas de minerais críticos, os quais são o elemento central de disputa no presente século.
A nova gestão Trump é sempre surpreendente. Dentro desse contexto, a África do Sul aparece como um paradoxo nas relações EUA-África, já que Trump tem construído recentemente a narrativa contra o país sul-africano por meio de críticas ao governo. A nova pauta da relação será, mais uma vez, a oscilação, porém com idas e vindas ao longo do mesmo governo. Destaca-se ainda que, para os Estados Unidos, a África é um espaço estratégico para contenção geopolítica – por causa da China – e, também, para exercer a função de detentor de recursos importantes e estratégicos, como os minerais críticos, os quais têm sido essenciais para o desenvolvimento dos veículos elétricos, por exemplo.
Reestruturação do Departamento de Estado e seu impacto nas embaixadas no continente africano
Entre as mudanças anunciadas pela nova gestão Trump, uma reestruturação do Departamento de Estado está incluída no plano. De acordo com a minuta de 16 páginas, o processo inclui a redução significativa dos vínculos diplomáticos com a África. Isto significa o fim das operações do Departamento de Estado, devido ao fechamento de embaixadas e consulados em vários países do continente. Além disso, o plano prevê o fim do Escritório Regional de Assuntos Africanos, passando a existir somente quatro escritórios regionais: Indo-Pacífico, América Latina, Oriente Médio e Eurásia. Nesse contexto, o Escritório seria substituído por uma estrutura menor que teria como temas centrais as operações terroristas coordenadas e a extração e o comércio estratégico de recursos naturais críticos, subordinados diretamente ao Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca.
Em meio ao cenário de cortes de financiamento e à redução prioritária da região na política externa dos EUA para a África no governo Trump 2.0, no dia 14 de março, o secretário de Estado estadunidense, Marco Rubio, anunciou o embaixador da África do Sul nos EUA, Ebrahim Rassol, como persona non grata, sob a justificativa de que o embaixador odiava os EUA e o presidente Donald Trump. O embaixador criticou as ações do governo Trump para com o continente africano, em especial a África do Sul, em razão dos cortes na cooperação e na ajuda financeira aos países da região. Sem apresentar provas, Trump então acusa a África do Sul de estar fazendo um “confisco de terras”, e afirma que sul-africanos brancos estão sendo vítimas de uma ação do Estado.
Nesse contexto, é possível antever que a relação entre Estados Unidos e África continuará sendo pautada pela oscilação, no que concerne ao envolvimento dos EUA no continente. E isso já se tem mostrado distinto nesses primeiros 100 dias de governo Trump. A região, tão importante estrategicamente para os EUA, tenderá a ter menos envolvimento estadunidense por meio da sua presença estratégica – em especial, no que se refere a ações de cooperação e financiamento.
* Vanessa Passos Bandeira de Sousa é doutoranda em Relações Internacionais (PPGRI/UERJ) e mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Segurança Internacional e Defesa da Escola Superior de Guerra (PPGSID/ESG). É bolsista CAPES (Doutorado) e bolsista de pesquisa pela Fundação de Estudos do Mar (FEMAR). Atualmente, é coordenadora do “Sementes de Futuro da Economia do Mar” (SFEM-FEMAR/EGN); líder de pesquisa de “Arranjos Metodológicos”, no Laboratório de Simulações e Cenários da Escola de Guerra Naval (LSC/EGN); vice-líder de “Tendências de Impacto Marítimo-Naval – TIMAN” (LSC/EGN); pesquisadora na FEMAR; e pesquisadora de geopolítica da África Subsaariana, no Núcleo de Avaliação da Conjuntura (Boletim Geocorrente-NAC/EGN). Contato: vanessabandera@gmail.com.
Yasmim Abril M. Reis é doutoranda em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP), mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Segurança Internacional e Defesa da Escola Superior de Guerra (PPGSID/ESG), pesquisadora colaboradora no OPEU, líder de pesquisa voluntária no Laboratório de Simulações e Cenários na linha de pesquisa de Biodefesa e Segurança Alimentar (LSC/EGN) e Pesquisadora de geopolítica da América do Norte e Central para o Boletim Geocorrente, no Núcleo de Avaliação da Conjuntura (NAC/EGN). Contato: reisabril@gmail.com.
** Revisão e edição: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 27 abr. 2025. Este Informe OPEU não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
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