100 dias do governo Trump 2.0 e os ataques às universidades

Universidade de Harvard (Crédito: Shiksha Study Abroad)
Dossiê “100 dias de Trump 2.0”
Por Andy Mickelly Canovas Lima* [Informe OPEU] [Trump 2.0] [100 dias] [Política Doméstica] [Educação]
O segundo mandato do presidente Donald Trump tem sido marcado por uma ofensiva sistemática contra o sistema universitário dos Estados Unidos. Em nome do combate ao que sua administração classifica como “doutrinação ideológica” e “discriminação reversa”, o governo vem impondo restrições severas à autonomia, ao financiamento e à liberdade acadêmica de instituições renomadas.
Cortes de financiamento e pressão política
Desde janeiro de 2025, a Casa Branca congelou mais de US$ 5 bilhões em repasses federais destinados a universidades como Harvard, Columbia, Princeton, Cornell, Northwestern e Pensilvânia (UPenn). A justificativa oficial gira em torno de supostas falhas no combate ao antissemitismo e da promoção de políticas de Diversidade, Equidade e Inclusão (DEI). A maioria dessas instituições integra a Ivy League, uma conferência de universidades de elite dos Estados Unidos reconhecidas globalmente por sua excelência acadêmica, forte influência política e grande número de laureados com o Prêmio Nobel. O corte de verbas atingiu diretamente, portanto, o núcleo da elite educacional americana.
Universidades que fazem parte da Ivy League (Crédito: English Language Programs/ELP-UPenn)
A Universidade de Harvard se tornou o epicentro desse embate. Após resistir a exigências federais que incluíam auditorias ideológicas, revisão de critérios de admissão e reestruturação de seus centros de pesquisa, a instituição teve US$ 2,2 bilhões congelados. Além disso, enfrenta ameaças de perder benefícios fiscais e de ter restrições impostas à matrícula de estudantes estrangeiros. Como observou a pesquisadora Neusa Maria Pereira Bojikian (INCT-INEU/Unicamp) no programa Diálogos INEU, Harvard está no centro de uma disputa entre a “América profunda” — rural, conservadora e branca — e as “elites costeiras”, urbanas, multiculturais e progressistas.
Essa ofensiva tem claro viés simbólico. Universidades da Costa Leste, como Harvard e Columbia, são vistas por apoiadores de Trump como bastiões do globalismo, do liberalismo cultural e de valores que, segundo essa narrativa, distanciaram-se da “verdadeira América”. Além disso, essas instituições concentram o que muitos conservadores identificam como o elitismo intelectual e socioeconômico que marginaliza a classe trabalhadora branca e reforça a desigualdade cultural entre “o povo” e “as elites”. O congelamento dos recursos serve, portanto, como recado político: o domínio cultural dessas elites será combatido com os instrumentos do Estado.
Repressão a protestos e alvo em estudantes estrangeiros
Outro aspecto da escalada autoritária foi a assinatura de ordens executivas que condicionam o financiamento federal à repressão de protestos considerados “hostis aos interesses nacionais”. Em janeiro de 2025, o presidente Donald Trump assinou a Ordem Executiva 14188, intitulada “Medidas Adicionais para Combater o Antissemitismo”, que autorizou o corte de verbas federais para universidades que, de acordo com o governo, não coibissem manifestações “anti-Israel” ou “pró-Hamas”. Além disso, a ordem permitiu a deportação de estudantes estrangeiros envolvidos nesses protestos, mesmo sem condenação judicial. Universidades como Yale, Berkeley e Columbia, que foram palco de manifestações pró-Palestina, enfrentaram cortes de verbas e viram dezenas de estudantes serem presos.
No que diz respeito aos estudantes estrangeiros, mais de 1.800 tiveram seus vistos F-1 (estudante “regular”, bancado por recursos próprios ou por uma instituição americana) ou J-1 (estudante ou acadêmico “intercambista”, geralmente com patrocínio governamental ou institucional) revogados como parte da repressão do governo Trump à imigração e ao alegado antissemitismo. Estudantes como Momodou Taal, gambiano com descendência britânica da Universidade Cornell, enfrentaram medidas disciplinares, ameaças legais e até deportação por participarem de ativismo pró-Palestina.
A União Americana pelas Liberdades Civis (ACLU) criticou essas ações. Para a organização, a mais importante e respeitada na defesa das liberdades e dos direitos constitucionais no país, o governo está tentando pressionar as universidades a visarem estudantes imigrantes e internacionais por exercerem seus direitos da Primeira Emenda. A ACLU também enviou cartas de apoio às instituições de ensino superior sob ataque, incentivando-as a proteger a liberdade de expressão em seus campi.
Cortes em pesquisa e danos colaterais
A cruzada não se limita à área de humanidades ou ciências sociais. O governo também reduziu drasticamente o financiamento de pesquisas científicas, afetando estudos em saúde pública, Inteligência Artificial, meio ambiente e doenças crônicas, como Alzheimer e câncer. Segundo dados dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH, na sigla em inglês), mais de 3.000 projetos foram interrompidos desde fevereiro.
Essas medidas provocaram reações imediatas de universidades e governos estaduais. Dezesseis estados, incluindo Califórnia, Nova York e Massachusetts, abriram processos contra o governo federal, argumentando que tais cortes comprometem a saúde pública e a soberania científica dos Estados Unidos. Além disso, Harvard e outras instituições de ensino superior estão processando a administração Trump. Alegam que os cortes de financiamento colocam em risco pesquisas críticas, especialmente em áreas como Inteligência Artificial, energia limpa e biotecnologia, em um momento crucial em que os EUA disputam com a China a liderança tecnológica global.
Saiba mais sobre a ofensiva contra as universidades neste Diálogos INEU com Neusa Maria Bojikian
A repercussão internacional também é significativa. Universidades europeias estão aproveitando a oportunidade para atrair talentos científicos dos EUA. Dados da plataforma Nature Careers indicam que, entre janeiro e março de 2025, houve um aumento de 32% nas candidaturas de cientistas norte-americanos a vagas no exterior, em comparação com o mesmo período de 2024. Iniciativas como o Programa de Acolhimento de Estudantes em Situação de Emergência (PAUSE), da França, receberam quase 300 inscrições de pesquisadores dos EUA, buscando “asilo científico” em resposta aos cortes de financiamento e imposições ideológicas do governo Trump.
Reação institucional e repercussão internacional
Mais de 200 universidades assinaram uma carta pública em março de 2025, condenando as ações do governo como “interferência política sem precedentes” e reiterando o compromisso com os princípios de liberdade acadêmica.
A crise já impacta negativamente a reputação internacional do ensino superior dos Estados Unidos. Dados da plataforma Serviço de Admissões em Universidades e Colégios (UCAS, na sigla em inglês) indicam que, até o final de janeiro de 2025, o número de estudantes norte-americanos que se candidataram a cursos de graduação no Reino Unido atingiu um recorde de 6.680 inscrições. Isso representa um aumento de 12% em relação ao ano anterior, e é o maior número desde que os registros comparáveis começaram a ser feitos, em 2006. Esse crescimento é atribuído, em parte, às políticas do governo Trump 2.0, que têm pressionado universidades de elite com cortes de financiamento e controles mais rígidos sobre admissões e contratação de professores.
Ao mesmo tempo, o interesse de estudantes internacionais por instituições americanas diminuiu significativamente. Entre março de 2024 e março de 2025, houve uma queda de 11,33% no número de estudantes internacionais ativos nos EUA, o que representa uma redução de aproximadamente 130.624 alunos. Esse declínio é atribuído a fatores como políticas de imigração mais restritivas e cortes de financiamento em instituições de ensino superior.
Esses dados sinalizam um enfraquecimento do soft power educacional dos EUA e encerram um ciclo de confiança que, por décadas, fez das universidades americanas um destino acadêmico globalmente privilegiado.
Conheça alguns dos textos da autora publicados no OPEU
Informe “A postura dos EUA no Acordo de Paris sob a ótica Trumpista”, 26 nov. 2024
Informe “Perdão presidencial e polarização: o conflito político após o ataque ao Capitólio”, 7 mar. 2025
Informe “A tensão simbólica entre Papa Francisco e Donald Trump”, 25 abr. 2025
* Andy Mickelly Canovas Lima é graduanda do sétimo semestre do curso de Relações Internacionais da Universidade Anhembi Morumbi e aluna participante do projeto de extensão da referida instituição em parceria com o OPEU. Contato: andy.mickelly@gmail.com.
** Revisão e edição finais: Tatiana Teixeira. Recebido em 29 abr. 2025 Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
*** Sobre o OPEU, ou para contribuir com artigos, entrar em contato com a editora do OPEU, Tatiana Teixeira, no e-mail: tatianat19@hotmail.com. Sobre as nossas newsletters, para atendimento à imprensa, ou outros assuntos, entrar em contato com Tatiana Carlotti, no e-mail: tcarlotti@gmail.com.
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