Economia e Finanças

Tarifas, tensão e transição: como Trump redesenhou o ​​​​comércio global 

Trump mostra um dos dois gráficos de tarifas durante seu discurso no “Dia da Libertação”, em 2 abr. 2025 (Crédito: Daniel Torok/Casa Branca/Flickr)

Dossiê “100 Dias de Trump 2.0” 

Por Leonardo David Silva dos Santos* [Informe OPEU] [100 dias] [Trump 2.0] [Tarifas] [Comércio 

A ordem comercial internacional atravessa uma de suas transformações mais voláteis desde a criação da Organização Mundial do Comércio (OMC). Nos últimos anos, o comércio se tornou palco de disputas geopolíticas, estratégias de dissociação econômica e políticas nacionalistas. No centro dessa mudança, está uma nova onda de protecionismo, reabilitada pela política externa do (ex-)presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. Esta análise examina como a agenda tarifária de Trump remodelou o sistema de comércio global, com ênfase nos efeitos estruturais sobre a cooperação internacional, a legitimidade institucional e o reposicionamento das economias emergentes. 

Doutrina Trump e normalização do protecionismo 

A Presidência de Donald Trump (2017-2021 e retomada em 2025) marcou uma guinada confrontacional na política comercial dos Estados Unidos. Sob o lema do nacionalismo econômico, seu governo impôs tarifas a parceiros estratégicos como Canadá e México, recorrendo à cláusula de segurança nacional do Artigo XXI, do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT), especialmente no caso das tarifas sobre aço e alumínio impostas em 2018. À época, as medidas foram justificadas como necessárias à segurança nacional dos EUA. Embora episódios protecionistas tenham ocorrido anteriormente, Trump institucionalizou-os como pilar central da diplomacia econômica norte-americana. A retomada, em 2025, da agenda de “tarifas recíprocas”, anunciada logo no início de seu segundo mandato, reafirma essa trajetória, sinalizando um reposicionamento estrutural dos EUA dentro da ordem comercial multilateral. 

Essa normalização do protecionismo teve duas consequências centrais. Primeiro, legitimou o uso de tarifas e barreiras comerciais como instrumentos de projeção de poder, estimulando medidas retaliatórias e escaladas recíprocas. Segundo, enfraqueceu a previsibilidade jurídica do comércio global, ao corroer a confiança nos mecanismos de resolução de controvérsias. Esse processo contribuiu para enfraquecer ainda mais o Órgão de Apelação da OMC, cuja paralisação já vinha sendo gestada por impasses entre os membros desde antes do primeiro mandato de Trump, mas foi significativamente agravada durante seu governo. 

Guerras comerciais, paralisia institucional e fragilidade das cadeias de suprimento 

O sistema internacional entrou em uma fase de hostilidade comercial acentuada. A imposição de tarifas pelos EUA em 2025 gerou reações de parceiros latino-americanos, como ameaças de medidas retaliatórias por parte do México e do Brasil, que consideraram a possibilidade de adotar tarifas em áreas como propriedade intelectual, por exemplo. Essas respostas espelham a dinâmica de retaliação já observada nas relações comerciais entre EUA-China. Esses atritos não se limitam ao plano bilateral: distorcem cadeias produtivas, fragmentam a governança multilateral e dificultam a cooperação técnica entre Estados. 

Um dos efeitos mais graves do protecionismo na era Trump foi a instrumentalização da interdependência econômica. Em um sistema baseado em cadeias de valor complexas e geograficamente dispersas, restrições comerciais têm efeitos em cascata sobre diversas economias. O resultado é uma dupla vulnerabilidade. Por um lado, os países em desenvolvimento perdem acesso a mercados, o que compromete sua capacidade de atrair investimentos externos, uma vez que a previsibilidade de retorno se torna incerta em um ambiente marcado por tarifas arbitrárias e instabilidade normativa. Por outro, as economias desenvolvidas enfrentam gargalos de suprimento em setores estratégicos como semicondutores e minerais críticos, cuja produção está altamente concentrada em poucos países e depende de cadeias globais longas e integradas. Com a imposição de barreiras comerciais, essas cadeias se tornam mais frágeis, prejudicando o abastecimento e elevando os custos industriais. 

Além disso, as medidas protecionistas norte-americanas têm gerado efeitos colaterais inesperados, como o reposicionamento da China nas cadeias de suprimento globais. Diante das barreiras crescentes impostas por economias ocidentais, a China passou a intensificar sua presença em economias emergentes, preenchendo lacunas deixadas por países desenvolvidos em meio à retração comercial. Esse movimento amplia a influência econômica chinesa e pode acelerar a reconfiguração da ordem comercial global, com o aprofundamento de laços Sul-Sul e a criação de novas rotas comerciais e logísticas. Para o Brasil, por exemplo, esse redirecionamento das exportações chinesas pode resultar em uma onda significativa de entrada de produtos chineses, o que exige atenção estratégica em termos de política industrial, barreiras técnicas e competitividade. 

Esse cenário é agravado pelo vácuo institucional deixado pela inoperância do mecanismo de solução de controvérsias da OMC. Sem um mecanismo funcional e legítimo de resolução de disputas, como o Órgão de Apelação da OMC, violações normativas se multiplicam, e o comércio se torna um campo de desavenças marcado pelo unilateralismo descontrolado. Isso mina não apenas a OMC, criada em 1995 como eixo institucional da ordem liberal do pós-Guerra Fria, mas também a lógica cooperativa que sustentou a expansão do comércio global nas últimas décadas. 

WTO OMC | OMC : Organisation Mondiale du Capitalisme Genève,… | FlickrSede da OMC, em Genebra, Suíça (Crédito: Jeanne Menjoulet/Flickr)

Caminhos possíveis: cooperação técnica, reformas institucionais e integração regional 

Diante da fragmentação comercial em curso, é necessário identificar alternativas que mitiguem os impactos da onda protecionista e fortaleçam a resiliência do sistema internacional. Três frentes interligadas se destacam como vetores estratégicos: a intensificação da cooperação técnica entre países, a reforma das instituições multilaterais de comércio e o fortalecimento da integração regional entre economias em desenvolvimento. 

No campo da cooperação técnica, iniciativas plurilaterais que promovam o compartilhamento de informações, a harmonização regulatória e a transparência em medidas comerciais são fundamentais para restaurar a confiança e reduzir o espaço para conflitos. A construção de plataformas conjuntas para inovação tecnológica, especialmente em setores estratégicos como energia limpa e infraestrutura digital, pode favorecer o surgimento de cadeias de valor menos vulneráveis à coerção econômica. 

Em paralelo, torna-se urgente a retomada de esforços para restaurar a funcionalidade do mecanismo de solução de controvérsias da OMC. Mesmo que as reformas estruturais avancem lentamente, acordos provisórios entre grupos de países (como o Acordo Provisório Multilateral de Arbitragem de Apelação, conhecido como MPIA, na sigla em inglês) podem servir como alternativa para garantir a previsibilidade jurídica e evitar o colapso completo do sistema de resolução de disputas. 

Por fim, o aprofundamento de acordos comerciais regionais, especialmente no eixo Sul-Sul, representa um caminho viável para compensar os efeitos da fragmentação global. Blocos como a Área de Livre-Comércio Continental Africana (AfCFTA, na sigla em inglês), Mercosul e a Associação das Nações do Sudeste Asiático (ASEAN, na sigla em inglês) podem atuar como plataformas de integração produtiva e comercial entre países emergentes, promovendo maior autonomia estratégica e diversificação de mercados. 

Desse modo, percebe-se que a política comercial de Donald Trump representa mais do que um desvio conjuntural: ela transformou as bases normativas do comércio internacional. Ao reconfigurar o protecionismo como uma necessidade estratégica, os Estados Unidos legitimaram uma tendência mais ampla de fragmentação econômica global. Nesse contexto, reconstruir a confiança e a coerência do sistema multilateral de comércio se torna um imperativo estratégico. Iniciativas de cooperação técnica, mecanismos provisórios de governança e o fortalecimento de alianças regionais aparecem como opções viáveis para mitigar os riscos sistêmicos e preservar os ganhos do livre-comércio.

 

* Leonardo David Silva dos Santos é pesquisador do Laboratório de Estudos de Segurança e Defesa da UFRJ (LESD/UFRJ) e graduando em Defesa e Gestão Estratégica Internacional no Instituto de Relações Internacionais e Defesa (IRID/UFRJ). Contato: leonardodavidsilvasantos@gmail.com | LinkedIn. 

** Revisão e edição: Tatiana TeixeiraRecebido em 19 abr. 2025. Este conteúdo não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU. 

*** Sobre o OPEU, ou para contribuir com artigos, entrar em contato com a editora do OPEU, Tatiana Teixeira, no e-mailtatianat19@hotmail.com. Sobre as nossas newsletters, para atendimento à imprensa, ou outros assuntos, entrar em contato com Tatiana Carlotti, no e-mailtcarlotti@gmail.com. 

 

Assine nossa Newsletter e receba o conteúdo do OPEU por e-mail.

Siga o OPEU no InstagramX/TwitterLinkedin e Facebook 

e acompanhe nossas postagens diárias. 

Comente, compartilhe, envie sugestões, faça parte da nossa comunidade. 

Somos um observatório de pesquisa sobre os EUA, 

com conteúdo semanal e gratuito, sem fins lucrativos.

Realização:
Apoio:

Conheça o projeto OPEU

O OPEU é um portal de notícias e um banco de dados dedicado ao acompanhamento da política doméstica e internacional dos EUA.

Ler mais