Em entrevista ao Opera Mundi, pesquisadora do INCT-INEU analisa 100 dias de Trump 2.0

(Arquivo) Trump discursa na Conferência de Ação Política Conservadora (CPAC) de 2013 em National Harbor, Maryland, em 15 mar. 2013 (Crédito: Gage Skidmore/Flickr)
Confira, na íntegra, a entrevista da apresentadora do programa Diálogos INEU, professora e pesquisadora Neusa Maria Pereira Bojikian (INCT-INEU/Unicamp) à Tatiana Carlotti, do site Opera Mundi, sobre os 100 dias de Trump 2.0
Por Tatiana Carlotti, para Opera Mundi [Republicação] [Diálogos INEU] [Seleção OPEU]

Neusa Maria P. Bojikian (Arquivo pessoal)
A liderança dos Estados Unidos na ordem econômica internacional sofreu um forte abalo desde que Donald Trump assumiu a Presidência em 20 de janeiro.
Externamente, o tarifaço veio a público, ao arrepio das normas da Organização Mundial de Comércio (OMC) e, internamente, um ambiente de caça às bruxas fez dos imigrantes não documentados o bode expiatório do país.
Em paralelo, as universidades estão sendo pressionadas a se curvarem à distorção ideológica do governo, enquanto o Estado passa por uma mutilação de áreas sensíveis, como a saúde e a educação.
Para nos explicar o impacto dessas transformações e como Donald Trump vem conseguindo promovê-las, em apenas 100 dias de governo, Opera Mundi entrevistou Neusa Maria Pereira Bojikian, pesquisadora do Instituto Nacional de Estudos Políticos sobre os Estados Unidos, o INCT-INEU, e pós-doutoranda pela Unicamp.
Desde que chegou ao poder, Trump vem promovendo uma série de mudanças em meio à retórica distópica da extrema direita. Qual a lógica por trás de suas ações?
Trump tem uma orientação estratégia. Ele traz o Peter Navarro como conselheiro sênior do Comércio de Manufatura; dois secretários egressos do mercado financeiro, o Howard Lutnick no Comércio e o Scott Bessent no Tesouro, e Elon Musk.
Todos eles, incluindo o presidente, têm uma orientação econômica neoliberal e interesses próprios no unilateralismo agressivo de Trump, sob o pretexto de recolocar o país na liderança econômica e, agora, tecnológica.
Isso se choca com a ordem econômica internacional, ou ordem liberal, surgida no pós-Guerra, quando as instituições multilaterais foram estabelecidas, a princípio com o GATT, que deu surgimento à OMC, e outras instituições como as Nações Unidas.
Uma ordem liderada, com várias controvérsias, pelos Estados Unidos; e ancorada na liberalização dos mercados e na democracia. Em seu primeiro mandato, Trump rompeu com isso, mas sem imprimir a sua marca, o que ele vem fazendo agora orientado pelo unilateralismo, pelo nacionalismo e com forte apoio do eleitorado branco e conservador.
Política de poder
Trump não respeita o princípio de cooperação do multilateralismo, e seu governo marca um ponto de inflexão muito nítido. O que estamos vendo é o poder da força, e não o poder das ideias, o hard power em sua imposição da soberania norte-americana.
O primeiro é a reconstrução da autonomia econômica dos Estados Unidos a partir de uma ruptura muito planejada com a lógica da interdependência global econômica.
O segundo é a reindustrialização forçada, tentando repatriar cadeias produtivas críticas. O terceiro é uma prioridade absoluta dada a setores estratégicos para a segurança nacional. A indústria de armamentos nos Estados Unidos sempre deu as cartas, e Trump não deixaria esse setor descoberto. Ele usa com muita força a questão da segurança nacional para legitimar o unilateralismo. Há uma lógica, Trump comunga da ideia, apoiada por seus conselheiros, de que o mercado sozinho não corrige as vulnerabilidades.
Na prática, ele está fazendo uma política comercial sob a forma de tarifas que se transformam em instrumento de negociação geopolítica. Elas não são usadas apenas para “corrigir” o comércio, mas para forçar concessões políticas dos rivais dos Estados Unidos.
Trump exige um realinhamento dos seus parceiros contra a China, em troca de isenções tarifárias. Uma tática de coerção econômica, de usar o comércio como extensão da política externa para subordinar decisões soberanas.
Aumento dos preços
Internamente, o tarifaço reforça a ideia de que Trump está protegendo os trabalhadores. Assim, ele mantém sua base unida contra o que chama de “elites econômicas globalistas”. Trata-se de uma política capaz de alimentar a polarização política e de criar uma massa que unifica o projeto de Estado-nação econômico de Trump, em torno de interesses nacionais restritos. É uma estratégia, caótica e com idas e vindas, mas que tem uma lógica.
Os conselheiros de Trump têm essa noção econômica e a função de darem a retaguarda do governo no mercado financeiro. Eles estão lá para fazer com que os agentes dos mercados financeiros tenham paciência. Esses agentes ganham na especulação e, sobretudo, na desregulamentação. Mesmo que Trump saia do poder nas próximas eleições, uma vez desfeita, a regulamentação demora muito para ser retomada. Mas é importante considerar que as empresas sofreram perdas com o tarifaço.
O resultado dessa política, porém, é um aumento significativo dos custos internos que estão sendo repassados para o consumidor. Já houve um aumento da energia, do custo da alimentação.
Além disso, as reações internacionais são muito negativas. A China respondeu, elevando as tarifas e enfrentando os Estados Unidos. A União Europeia iniciou consultas para contestações na OMC, mas isso demora, tem limitações. Fora a volatilidade que vimos no mercado financeiro.
Há um cenário forte, também, de perseguição contra os imigrantes não documentados com uma série de violações aos direitos humanos no processo de deportação em massa. Como você avalia esse contexto?
Estamos assistindo a um dos episódios mais radicais da história recente da política migratória nos Estados Unidos. O foco nas deportações em massa, somado ao enfraquecimento das garantias dos direitos civis, gerou acusações sérias de violação sistemática dos direitos humanos.
Trump reacende as tensões políticas internas e as deteriora ainda mais. As consequências são graves tanto para a estabilidade social doméstica, quanto para a credibilidade internacional. Certamente, todas essas práticas serão objetos de longos processos judiciais e debates.
O que vimos nesses 100 dias, foi um processo de militarização no país, com a mobilização da Guarda Nacional e das empresas privadas de segurança para apoiar as operações de batidas em cidades-santuário, com impactos devastadores em termos humanos e jurídicos.
Trump ampliou o cerco. Se antes o foco eram os imigrantes com antecedentes criminais, agora qualquer imigrante em situação irregular é alvo. Ele desmontou uma série de programas relacionados à imigração, como o DACA, que protegia os jovens trazidos de outros países.
Isso gera uma insegurança jurídica muito forte. As pessoas não podem mais confiar em nenhum acordo, em nenhum documento institucionalizado emitido ao seu favor pelo governo.
É um cenário de abusos e criminalização generalizada de comunidades inteiras de latinos, africanos, asiáticos. O clima de medo aumentou, estimulado pela ideia de invasão dos Estados Unidos pelo imigrante, o “inimigo” do trabalhador branco. Mais uma vez, ele joga com o medo, uma alavanca psicológica muito forte que o sustenta.
Durante as eleições, muita gente minimizava a retórica agressiva de Trump. Como ele justifica essas medidas?
Muitos imaginaram que haveria alguma trava e que ele seria contido pelos “adultos na sala”, mas isso não aconteceu. Trump acelerou as deportações, beneficiado por uma máquina estatal alinhada ideologicamente e com menos freios institucionais. Não há freios, e ele não tem medo, porque se acha o escolhido por Deus para resolver os problemas dos Estados Unidos. Há algo de messiânico e fundamentalismo nisso.
Do ponto de vista retórico, ele afirma que está combatendo os vínculos entre a imigração e a criminalidade, protegendo os empregos e o direito dos Estados Unidos de controlar integralmente as suas fronteiras. Ele, mais uma vez, coloca a imigração como uma questão de segurança nacional e apresenta um país não só vulnerável na economia, mas também nas fronteiras.
Em meio a isso, existe toda uma movimentação de ONGs de direitos humanos e de ações contra o governo, com base nas violações constitucionais e dos tratados internacionais de proteção a refugiados.
Nós estamos vendo uma guerra entre Trump e as universidades do país. Como você avalia esse movimento?
Um dos pontos de inflexão mais graves do governo Trump é o ataque à autonomia e à vitalidade das instituições educacionais. Ele não só cortou financiamentos e programas, como promoveu uma ofensiva para enfraquecer a liberdade acadêmica, reduzir a capacidade científica e o aumento da polarização cultural.
Ele não quer somente criar um “nós” contra “eles”, o “americano real” contra “as elites intelectuais arrogantes”. A ideia é estabelecer um ambiente onde só uma cabeça pensa. Os impactos disso ameaçam o futuro da democracia nos Estados Unidos.
Há um projeto de remodelação ideológica do sistema educacional. As universidades e os centros de pesquisa foram transformados deliberadamente em alvos políticos.
Desde a primeira campanha, Trump identificava o meio acadêmico como um bastião do que chamava “esquerdismo radical”, que daria prioridade às “minorias” em detrimento do americano conservador. Nesse segundo mandato, isso evoluiu para uma ação política mais estruturada.
Silenciamento
As motivações são claras: eliminar os focos de oposição cultural intelectual, refazer a formação das elites políticas e técnicas com base em valores nacionalistas e conservadores, reduzindo a capacidade crítica e a mobilização da sociedade civil e atacando diretamente a liberdade acadêmica.
Estamos vendo cortes de financiamentos e redução nas verbas federais para as universidades públicas e centros de pesquisa, cancelamento das bolsas de pós-graduação, criminalização de autoridades universitárias.
A retórica é de que as universidades são “elites arrogantes” envolvidas em políticas de inclusão, de igualdade, para dar “vantagens” às “minorias”. Há perseguição contra as grades curriculares que contemplam mudanças climáticas, direitos humanos, questões raciais, estudos do gênero.
Nada disso pode para não haver lideranças no futuro que perpetuariam essas abordagens. Um ataque usado como instrumento de silenciamento de linhas de pesquisa consideradas inconvenientes.
Joe Biden, em sua primeira manifestação sobre Trump, criticou as demissões em massa levadas a cabo por Elon Musk no DOGE. Quais as consequências desse processo?
Há uma tentativa agressiva de consolidação do poder a partir de uma estratégia de choque, com mudanças rápidas e uso de ordens executivas em número absurdo. Com as demissões em massa, o que temos é um desmonte não só da estrutura, mas de reversão de políticas anteriores.
Trump quer imprimir a sua marca, extrapolando a competência do Executivo e passando por cima da Suprema Corte e das cortes regionais. Juristas vêm alertando que não se trata apenas de governar por decreto, mas de governar por exceção, normalizando um estado de crise permanente para justificar a concentração de poder.
Cerca de 30 mil funcionários foram demitidos ou estão com exoneração prevista. Ele justifica isso como uma medida de downsizing, que é uma redução muito brutal no mundo corporativo de funcionários para diminuir custos e otimizar o fluxo de trabalho.
Os especialistas em administração pública afirmam que, na prática, o resultado imediato é uma perda da capacidade técnica do Estado em áreas sensíveis. Você desmonta o Estado e retira toda uma infraestrutura construída ao longo do tempo. Trump tem como alvo os setores da saúde, meio ambiente, educação, Previdência.
Apesar de toda a retórica de eficiência e corte de gastos, os resultados concretos ainda são muito nebulosos e não podem ser comprovados. Os fiscais não estão encontrando nenhuma consistência nos números de vários órgãos federais. Surgem relatos de desorganização, lentidão e queda da qualidade dos serviços públicos.
Desmonte do Estado
Os analistas também observam um aumento dos contratos terceirizados, que já vimos em muitos governos aqui no Brasil, que provocam um aumento dos custos em várias áreas.
Do ponto de vista jurídico, as principais críticas são em termos da violação do princípio da separação de Poderes, porque, além de governar quase que exclusivamente por ordens executivas, Trump coloca em risco o equilíbrio constitucional entre o Executivo e o Legislativo.
O que ele chama de desregulamentação tem sido, na prática, um desmonte do Estado administrativo. Agências essenciais teriam perdido técnicos muito qualificados, e os que restaram estão vulneráveis à politização do funcionalismo. Vemos um aparelhamento da burocracia estatal, na qual as nomeações e exonerações passaram a obedecer a critérios de lealdade política.
É interessante observar isso acontecer porque deixa muito claro que o Estado nos Estados Unidos é muito forte, e agora vemos os próprios defensores do neoliberalismo, que são os democratas, criticando esse Estado ser esvaziado.
Em relação à América Latina, qual o impacto desses 100 dias?
A política internacional dos Estados Unidos vem sendo orientada pelo nacionalismo isolacionista mais exacerbado e pela ruptura das relações multilaterais. O que era de múltiplas partes passa a ser uma dinâmica bilateral, e aí nem é o “toma lá dá cá”, é “toma lá e toma lá” mesmo.
Essas diretrizes atuam de modo muito agudo na América Latina. Historicamente vista como uma esfera de influência dos Estados Unidos, a região vem se tornando um campo de disputa. Não há nenhum projeto construtivo de integração e cooperação. Nunca teve, na verdade, mas ainda havia alguns projetos ou mesmo acordos que preservavam a ideia de cooperação.
O que temos é o reforço das sanções dos regimes considerados inimigos. Vamos ver a implacabilidade de Trump contra Venezuela, Cuba e Nicarágua. No caso da Venezuela, além das sanções financeiras, que são muito prejudiciais, Trump continua jogando duro.
Vemos também a imposição de condicionantes a parceiros históricos como o México. Na questão da política migratória, há uma tentativa de ligar a questão da migração com a questão econômica. O México vai ter de servir como zona de tampão do fluxo migratório para beneficiar os Estados Unidos.
Outro aspecto é a crescente militarização dos Estados Unidos na região, com a designação dos cartéis de drogas como organizações terroristas, e ameaças militares em torno do Caribe e do Canal do Panamá, que é estratégico e parte do cinturão na rota da China.
O resultado é um crescimento da desconfiança dos países da região em relação aos Estados Unidos. A China tem ocupado espaços estratégicos na América Latina, oferecendo financiamento para infraestrutura, com empréstimos dos bancos públicos chineses e uma cooperação tecnológica.
Os países podem tirar proveito disso, mas ninguém deseja se tornar independente de um para se tornar dependente de outro. No curto prazo, os países precisam ser muito cuidadosos.
Para o Brasil, o ideal seria manter uma política de equidistância na disputa entre esses dois gigantes. Nós não temos recursos para bancar uma pressão agressiva dos Estados Unidos. No curto prazo, podemos ter ganhos, mas no médio e longo prazos, temos que pensar estrategicamente. O governo brasileiro está sendo muito cauteloso em relação a isso.
** Publicado originalmente no site Opera Mundi, em 29 abr. 2025. Este conteúdo não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
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