A manutenção da estrutura hegemônica dos EUA em xeque sob Trump 2.0

Fonte: Counterfire
Dossiê “100 dias de Trump 2.0”
Por Ena Jordana Gazzoni Degrazia Howes e João Guilherme Ramos* [Informe OPEU] [100 dias] [Trump 2.0] [Hegemonia]
O segundo mandato de Donald Trump tem início em um contexto que é identificado por muitas linhas teóricas como de transição do ciclo hegemônico global. Isso pode ser entendido pela ascensão de um competidor com maiores capacidades técnicas para realizar tanto o acúmulo de capital quanto influência sobre os demais atores do cenário internacional; ou ainda, por uma via de ação institucional, por força ou por uma influência sobre os valores morais/culturais organizativos da ordem internacional, conforme propõe Robert Cox (1996) em sua perspectiva teórica.
A ascensão chinesa pode ser enquadrada como um caso de um competidor obtendo sucesso e passando a dominar o processo de controle do sistema comercial internacional que seria um resultado prático da perda de poder dos Estados Unidos, de acordo com Immanuel Wallerstein (2004). Nesse sentido, se comparada a evolução da balança comercial de China e Estados Unidos, é notória uma inversão nos fluxos comerciais entre os dois países.
Em 2000, os Estados Unidos movimentavam em transações comerciais internacionais US$ 2 trilhões (Exportações: US$ 782 bilhões e Importações: US$ 1,218 trilhão) e foram o principal parceiro comercial da maioria dos países do mundo. No mesmo ano, a China movimentou US$ 474 bilhões (Exportações: US$ 249 bilhões e Importações: US$ 225 bilhões) e foi a principal parceira comercial somente de Cuba, Irã, Líbia, Mianmar, Mongólia, Coreia do Norte, Omã, Sudão, Tanzânia e Vietnã. Em 2024, a balança comercial total dos EUA passou a representar um montante de US$ 5,33 trilhões, enquanto a China movimentou em totalidade US$ 6,113 trilhões. No mesmo ano, a China se tornou o principal parceiro comercial de 120 países.
No âmbito securitário, desde os anos 2000, a China passa por um processo de modernização de suas Forças Armadas, o que a fez aumentar sua presença estratégica em muitos outros territórios. Algumas ações que ficaram conhecidas são, por exemplo, seu investimento de mais de US$ 51 bilhões em países africanos e sua maior presença territorial a partir da Iniciativa Cinturão e Rota.
O equilíbrio das capacidades hegemônicas
A compreensão sobre o status da conjuntura atual passa, no entanto, por uma análise multifatorial. O recrudescimento do alcance e da influência dos Estados Unidos no cenário internacional não é resultado apenas da ascensão de atores desafiantes à hegemonia estadunidense. Diferentemente de outros momentos vistos desde o estabelecimento da Ordem Internacional Liberal (OIL) após 1945, não seriam apenas as capacidades de outros Estados que levariam a um senso de ameaça ao domínio de Washington nos diferentes âmbitos da política internacional. Nota-se o movimento endógeno do próprio governo estadunidense de se retirar do seu papel histórico de árbitro moral e político no ordenamento do Sistema Internacional.
A partir da Guerra Fria, a manutenção da estrutura hegemônica dos EUA se deu em duas frentes: tanto a partir de uma liderança quantitativa, em suas capacidades materiais, como qualitativa, em seus valores e regramento, como explicitado por Giovanni Arrighi (1998 e 2007). Por sua vez, os pilares fundamentais da política externa estadunidense que sustentavam a ordem internacional eram a desregulamentação e a integração comercial; as garantias de proteção militar aos aliados, a partir do multilateralismo; e a promoção da democracia liberal internacionalmente. É possível observar, no entanto, uma renúncia por parte do governo Trump 2.0 a essa agenda estrutural já em seus primeiros 100 dias de mandato.
Ruptura com o papel histórico da política externa estadunidense
Com a brevidade que nos permite este espaço de análise sobre os primeiros momentos da segunda gestão de Donald Trump, observamos que os Estados Unidos passam a perseguir uma liderança meramente material da ordem internacional, bem como sua incidência sobre os financiamentos de instituições internacionais. Assim, protagonizam uma exaustão no pagamento pelo funcionamento das instituições globais que se estabeleceram durante os séculos XX e XXI. Após esses 100 primeiros dias, podemos observar, com um pouco mais de substância, como algumas ferramentas instrumentalizadas pelos EUA até então poderão orientar os próximos anos de sua gestão. Dá-se destaque para o anúncio das tarifas “recíprocas” comerciais para a negociação com os Estados Unidos.
A partir das fortes declarações e medidas que parecem trazer à tona uma política mais isolacionista, é possível vislumbrar uma agenda de política externa incompatível com aquela praticada por Washington desde 1945, conforme avaliado por Mearsheimer (2001). Legitimada pela busca da liderança material dos EUA, o governo endurece o discurso iliberal. Faz isso, primeiramente, em relação à integração aos mercados globais, aplicando altas tarifas não apenas a rivais estratégicos, como a China, mas também a aliados tradicionais, como as potências europeias, bem como a parceiros históricos, como Canadá e México.
Igualmente, Trump se posiciona de maneira dura sobre a continuidade do investimento dos Estados Unidos em suas estruturas dedicadas a influenciar agendas políticas em outros países. Um exemplo dessa reorientação foi o ato institucional que visava a cortar o financiamento da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID, na sigla em inglês). Ressalta-se que estas medidas são inversas às políticas de fornecimento de bens coletivos internacionais, por meio de instituições multilaterais, as quais, historicamente, foram vistas como meios eficientes de estabilização e de controle da ordem internacional, conforme os interesses estadunidenses.
Convém lembrar que as críticas direcionadas às organizações internacionais, como as ameaças de retirada desses fóruns, não são algo específico desse início de mandato. Durante seu governo anterior, os EUA se retiraram de diversos órgãos internacionais, como o Acordo de Associação Transpacífico (TPP) (2008-2017); o Acordo Climático de Paris, em 2017; assim como da Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2020. Da mesma forma, além da revisão do Acordo de Livre-Comércio da América do Norte (NAFTA), transformado no Tratado de Livre-Comércio entre Estados Unidos, Canadá e México (USMCA) em 2018, o governo Trump acusou outras instâncias de serem exploratórias à economia nacional, como o atual sistema de solução de controvérsias da Organização Mundial do Comércio (OMC).
Percebe-se, em Trump 2.0, uma escalada nas medidas isolacionistas que ferem os principais pilares que moldaram a OIL. Um dos episódios que evidenciam essa nova dinâmica foi o tratamento dado pelo presidente dos Estados Unidos ao chefe de governo de um Estado aliado, cuja possibilidade de adesão à Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) foi ativamente promovida pelos EUA em anos anteriores. Na ocasião, em fevereiro desse ano, o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, recusou-se a aceitar as propostas de Trump para um acordo de paz com a Rússia que favorecia consideravelmente, por sua vez, a posição de um rival geopolítico dos EUA. Em frente às câmeras, Zelensky foi pressionado de forma hostil a fazer diversas concessões a Moscou, entre elas: aceitar a anexação da Crimeia por parte da Rússia (contrária às próprias posições dos EUA desde a ocupação em 2014); conceder autonomia política às regiões controladas pela Rússia no leste da Ucrânia, como Donetsk e Luhansk; e renunciar ao ingresso na OTAN.
Entre a ambição e o desgaste: os 100 primeiros dias de Trump 2.0 sobre a Guerra na Ucrânia
Saiba mais sobre o assunto neste Informe OPEU de Fernanda Magnotta e João Pedro Gonçalves
Apontando uma ruptura com posicionamentos históricos, após o confronto, os EUA suspenderam temporariamente a assistência securitária e o compartilhamento de Inteligência. A reação do governo estadunidense chocou aliados europeus, colocando em xeque o comprometimento irrestrito de Washington com a defesa do bloco ocidental.
Na tentativa de forçar uma rápida resolução da guerra que já dura quase três anos, as pressões do governo estadunidense continuam. O pacote orçamentário de US$ 1,25 bilhão em auxílio militar, aprovado no final de dezembro de 2024, durante os últimos dias do governo Joe Biden, acabou agora no final de abril, e o Congresso estadunidense não aprovou um novo plano nos mesmo termos. No lugar, um novo acordo, assinado em 30 de abril, estabeleceu que qualquer futura assistência militar à Ucrânia será considerada como um investimento dos EUA em um fundo de reconstrução gerido em conjunto entre Washington e Kiev.
Assim, em vez de uma assistência militar isolada, o custo financeiro será contabilizado como um investimento estratégico, financiando novos projetos de mineração, petróleo e gás na Ucrânia, dando aos EUA acesso preferencial aos depósitos minerais essenciais da Ucrânia. Tais posicionamentos pelo governo revelam fragmentos da exaustão imperial tanto nas negociações do seu apoio e ajuda militar à Ucrânia quanto no investimento que os Estados fazem na própria OTAN ou diretamente para a estrutura de defesa da Europa. A busca por contrapartidas ou pela diminuição do investimento estadunidense no conflito mostra que há uma preocupação direta no retorno financeiro, e não apenas no âmbito político.
Atravessando outro pilar fundamental da legitimidade internacional dos Estados Unidos como promotor dos valores democráticos, destaca-se, no plano doméstico, uma ofensiva da gestão contra universidades consideradas ideologicamente avessas à agenda do governo. Sofrendo ameaças de cortes orçamentários e no financiamento a pesquisas sobre mudança climática, vacinas e questões de minorias e gênero, há uma pressão por parte do governo federal de maior fiscalização interna nos campi sobre as atividades estudantis; bem como perseguição a estudantes migrantes críticos à agenda trumpista e engajados em protestos em pautas de direitos civis e apoio à Palestina.
As medidas de controle da produção científica, como as implementadas no caso da Universidade de Columbia, configuram uma ruptura com o discurso liberal de liberdade intelectual e independência institucional, minando ainda mais a credibilidade dos Estados Unidos como líder de uma ordem internacional liberal. A estratégia de intimidação sobre o espaço acadêmico atinge não só a autopercepção doméstica dos EUA como um país liberal, como enfraquece a posição internacional do país como referência normativa dos valores liberais da ordem internacional.
O futuro do ordenamento internacional em Trump 2.0
A maneira como os EUA vão navegar nesse período ainda é uma incógnita. Em sua observação teórica, Graham Allison (2017) argumenta que a ascensão de uma nova potência com possibilidades de competir pela hegemonia global, como ocorre hoje com a China, levará a um conflito inevitável entre as duas potências. Por mais que ainda não se desenvolva com muita clareza a possibilidade de um conflito no cenário internacional, há de se esperar que as medidas implementadas pelo atual governo dos EUA tragam ainda mais fissuras a uma ordem internacional já desestabilizada.
A agenda perseguida por Washington até o momento pode vir a minar, em vez de sustentar, a hegemonia estadunidense estabelecida por meio da combinação de políticas multilaterais com medidas unilaterais e coercitivas. Ela é, sem dúvida, uma demonstração dos desafios que os Estados Unidos enfrentam, sinalizando a condição estrutural do país em meio aos desafios impostos pela ascensão da China, pela radicalização interna do conservadorismo e pelo avanço das políticas iliberais no país.
Cabe ao governo Trump navegar por um cenário desafiador a partir de uma agenda que parece não ter interesse em obedecer às regras acordadas pela política externa estadunidense da Guerra Fria. O questionamento estrutural dos campos teóricos explorados é se há, em algum momento, a possibilidade de que a transição hegemônica se converta em uma situação de conflito, o que ainda é incerto no horizonte observado. Em termos técnicos e discursivos, é notório que a China se estabelece, já há pelo menos duas décadas, como o país que pode desafiar a liderança quantitativa e qualitativa dos Estados Unidos. Cabe-nos analisar como isso irá afetar a ordem global e as instituições. Diante de um cenário de redução da interdependência, é possível que uma postura mais dura dos Estados Unidos — marcada pelo isolacionismo e pela renúncia às políticas liberais, tanto domésticas quanto externas — acelere uma complexa transição estrutural.
* Ena Jordana Gazzoni Degrazia Howes é mestre em Política Internacional pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGEEI-UFRGS). Contato: jordana@howes.com.br.
João Guilherme Benetti Ramos é doutorando em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI-USP) e mestre em História, Política e Bens Culturais pelo Centro de Pesquisa e Documentação da História do Brasil da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC-FGV). Contato: joaobr@usp.br.
** Primeira revisão: Fábia Muneron Busatto. Revisão e edição finais: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 25 abr. 2025. Este Informe OPEU não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
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