Trump, 100 dias depois

Trump assinou um recorde de 26 ações executivas no primeiro dia de seu segundo mandato, em 20 jan. 2025 (Crédito: X/Casa Branca)
Por Lucas Leite, para a newsletter Lucas Leite – Política Internacional* [Republicação] [100 dias] [Trump 2.0] [Seleção OPEU]
Se o primeiro mandato de Donald Trump já havia nos apresentado a uma nova forma de governar baseada no caos, seus primeiros 100 dias de volta à Casa Branca parecem uma masterclass sobre como desestabilizar instituições, mercados e alianças internacionais em tempo recorde. Enquanto se prepara para celebrar este marco com um comício em Michigan — estado que simboliza sua reconquista do chamado “muro azul” democrata —, Trump pode se orgulhar de ter cumprido ao menos uma promessa: ninguém está entediado.
O manual do autoritário perfeito
Logo em seu primeiro dia, como quem segue um manual do perfeito autoritário, Trump assinou um recorde de 26 ordens executivas, dando o tom do que viria pela frente. Entre suas primeiras medidas, estavam a saída dos Estados Unidos da Organização Mundial da Saúde e o perdão aos agitadores que invadiram o Capitólio quatro anos antes. Não poderia haver sinalização mais clara: as instituições multilaterais e o estado de direito seriam os primeiros a sofrer.
O estrategista Steve Bannon havia antecipado essa tática anos atrás, quando recomendou que Trump inundasse a área com múltiplas ações polêmicas simultaneamente: “A mídia só pode se concentrar em uma coisa de cada vez… Todos os dias, nós os atingimos com três coisas. Eles vão pegar uma, e nós faremos todas as nossas coisas, bang, bang, bang”. A técnica, apelidada de “choque e pavor”, tem funcionado – ao menos para manter adversários, mídia e cidadãos comuns em permanente estado de exaustão.
O DOGE e o desmantelamento do Estado
Uma das primeiras e mais controversas criações de Trump foi o Departamento de Eficiência Governamental (DOGE), liderado pelo bilionário Elon Musk. Quase 100 dias após sua criação, a Reuters encontrou 20 casos em que os cortes de pessoal e de financiamento levaram a gargalos de compras e aumento de custos; paralisia na tomada de decisões; tempos de espera públicos mais longos; funcionários públicos com salários mais altos ocupando empregos braçais e uma fuga de cérebros de talentos científicos e tecnológicos.
O caos na Previdência Social ilustra perfeitamente o problema: profissionais altamente qualificados como advogados e estatísticos, que normalmente trabalham em funções estratégicas na sede em Baltimore, estão sendo realocados para escritórios regionais. Lá, são forçados a assumir tarefas operacionais básicas, para as quais não têm treinamento nem experiência, substituindo funcionários de atendimento experientes que foram simplesmente demitidos. O resultado? Pessoas idosas e com deficiência, esperando semanas a mais por benefícios essenciais, enquanto profissionais qualificados desperdiçam suas especialidades em funções que não sabem desempenhar adequadamente.
O ex-presidente Biden, em sua primeira declaração pública desde que deixou o cargo, não poupou críticas: “Em 100 dias, a nova administração causou tantos danos e tantas destruições. É de tirar o fôlego que algo assim possa ter acontecido tão rápido”. Referindo-se especificamente à Previdência Social, Biden apontou que “eles atacaram a administração da Previdência Social, ao mandar embora 7 mil funcionários”.
Enquanto isso, Musk e Trump afirmam ter economizado US$ 160 bilhões, embora Jessica Riedl, pesquisadora do Manhattan Institute, um instituto fiscalmente conservador, estime que o DOGE tenha economizado apenas US$5 bilhões até o momento e acredite que acabará custando mais do que economizando. A ironia não poderia ser maior: um departamento criado para gerar eficiência que, na prática, está produzindo exatamente o oposto.
A guerra comercial e o tarifaço
Se há uma área em que Trump tem seguido fielmente sua cartilha do primeiro mandato é na política comercial. Em 2 de abril, Trump anunciou uma nova onda de tarifas contra dezenas de países, aliados e rivais, acusando-os de tirar vantagem dos Estados Unidos, levando muitos afetados a adotarem aumentos de taxas retaliatórios. Em 9 de abril, dia em que o “tarifaço” deveria entrar em vigor, Trump anunciou uma pausa de 90 dias para todas as tarifas, exceto as dirigidas à China, que ele eleva para 145% – que podem chegar a 245% para alguns produtos, incluindo carros elétricos. A crise sacudiu os mercados globais, fez o preço do ouro disparar e afetou o valor do dólar.
A abordagem econômica que fundamenta essas medidas segue uma combinação peculiar das visões de dois assessores-chave: Peter Navarro e Stephen Miran. Navarro, conhecido por suas posições frontalmente anti-China, elaborou um ensaio sobre “comércio justo” no Projeto 2025, o controverso manual de políticas que orienta o atual governo. Nele, sugere que os objetivos da política dos EUA poderiam se estender à reforma ou mesmo à abolição dos princípios que sustentam o sistema de comércio global.
Sem qualquer base em modelos econômicos sólidos ou análises de impacto detalhadas, Navarro simplesmente instou Trump a mirar “aqueles países que têm déficits comerciais relativamente grandes com os EUA e aplicam tarifas relativamente altas”, listando China, Índia, União Europeia, Vietnã, Tailândia, Taiwan, Japão e Malásia como alvos prioritários. Sua crítica à Organização Mundial do Comércio é particularmente contundente: “os EUA são explorados diariamente no mercado global, tanto por uma China comunista predatória quanto por uma OMC institucionalmente injusta e não recíproca”.
Complementando essa visão beligerante, Stephen Miran, agora presidente do Conselho de Assessores Econômicos da Casa Branca, desenvolveu uma teoria econômica heterodoxa que, segundo economistas renomados, está “cheia de furos”. Seu argumento central é que o status de moeda de reserva do dólar, embora confira poder geopolítico aos EUA, na verdade prejudica a economia doméstica de três formas cruciais: mantém o dólar artificialmente supervalorizado (tornando exportações americanas menos competitivas), acelera o declínio da indústria nacional e agrava o déficit comercial.
A solução proposta por Miran, agora implementada por Trump, é surpreendentemente radical e potencialmente desestabilizadora: usar tarifas não apenas como ferramentas de geração de receita, mas como armas de negociação para forçar outros países a desvalorizarem o dólar em relação às suas moedas. Ele chamou esta estratégia de “Acordos de Mar-a-Lago” — uma referência clara aos Acordos do Plaza de 1985, quando Ronald Reagan conseguiu que outros países do G7 concordassem em valorizar suas moedas frente ao dólar.
O problema é que, como apontam diversos economistas, incluindo a ex-economista-chefe do Departamento de Relações Exteriores e Comércio Jenny Gordon, esta lógica é falha por várias razões: primeiramente, os EUA precisariam tomar dinheiro emprestado para reinvestir em seu setor manufatureiro, o que aumentaria o valor do dólar — exatamente o oposto do efeito desejado. Além disso, a mudança nos padrões de consumo, a automação industrial e o envelhecimento da população contribuíram tanto, se não mais, do que o comércio global para a perda de empregos industriais nos EUA.
O impacto nos mercados foi imediato e severo, forçando um recuo temporário. Como revelou o presidente do Federal Reserve, Jerome Powell, as tarifas de Trump ocasionarão inflação mais alta e crescimento mais lento. Não satisfeito com a crítica, Trump respondeu e atacou o próprio Powell, publicando que “a demissão de Powell tem de ser para ontem!” — ignorou, assim, que a legislação federal impede o presidente de demitir o presidente do Fed.
O economista Michel Hudson vai além na crítica, afirmando que, “em vez de apoiar o crescimento da indústria americana, o efeito das tarifas e de outras políticas fiscais de Trump será proteger e subsidiar a obsolescência e a desindustrialização financeirizada”. Para ele, sem lidar com os problemas estruturais que causaram a desindustrialização — como a falta de investimento em infraestrutura pública e regulamentação inteligente —, as tarifas serão ineficazes e potencialmente prejudiciais.
Esse contraste entre a retórica populista e a realidade econômica ilustra perfeitamente a abordagem de Trump: proclamar soluções simples para problemas complexos, sem considerar as consequências de longo prazo ou os danos colaterais. Como resumiu um analista, “Trump está promovendo uma narrativa simplista e descaradamente falsa sobre o que tornou a política de industrialização americana do século XIX tão bem-sucedida”. Para ele, o grandioso não é o desenvolvimento industrial, mas sim a oportunidade de demonstrar poder e buscar vingança contra supostos inimigos comerciais.
Política externa: aliados humilhados, autocratas exaltados
No campo da política externa, Trump parece determinado a inverter completamente as alianças tradicionais americanas. Em 12 de fevereiro, Trump acabou com anos de isolamento diplomático de Vladimir Putin com uma conversa por telefone de 1h30 com o presidente russo. Um segundo telefonema se seguiu em 28 de fevereiro, assim como algumas reuniões EUA-Rússia, das quais outras potências foram excluídas. Até agora, a reaproximação resultou apenas em duas trocas de prisioneiros entre os dois países.
Em contraste, durante um encontro tenso na Casa Branca, o presidente ucraniano, Volodimir Zelensky, foi submetido, diante das câmeras, a um ataque verbal de Trump e J.D. Vance, que o criticou por sua falta de gratidão pelo apoio americano na guerra que a Ucrânia trava com a Rússia. “Trump e Vance estão fazendo o trabalho sujo de Putin”, publicou nas redes sociais o líder da minoria democrata no Senado, Chuck Schumer.
A humilhação de aliados se estendeu à Europa, quando durante a Conferência de Segurança de Munique, o vice-presidente J.D. Vance chocou os líderes europeus, os quais repreendeu por restringirem a liberdade de expressão, dizendo-lhes para “aumentarem” os investimentos em defesa e criticando-os sobre a imigração. Suas declarações duras, assim como outras que se seguiram da administração Trump, sinalizam um fim das antigas certezas transatlânticas a respeito do apoio americano à Europa.
Talvez em nenhuma outra área a abordagem errática de Trump seja tão evidente quanto na política externa. Suas declarações sobre anexações territoriais e redesenho de fronteiras internacionais têm causado calafrios em chancelarias ao redor do mundo. Em 26 de março, Trump reforçou comentários feitos em dezembro sobre a Groenlândia, afirmando categoricamente: “Nós precisamos da Groenlândia para a segurança internacional… Temos que tê-la”. Quando questionado se descartava o uso da força para tomar o território autônomo dinamarquês, Trump se recusou a responder diretamente, deixando no ar a ameaça de uma anexação forçada.
A reação dinamarquesa foi imediata e contundente. Dois dias depois, quando o vice-presidente J.D. Vance visitou a ilha com sua esposa, a viagem foi drasticamente alterada: Vance acabou não se reunindo com membros da sociedade groenlandesa, restringindo sua visita à base militar americana instalada lá. O episódio é reminiscente do primeiro mandato de Trump, quando ele sugeriu “comprar” a Groenlândia, ideia que a então primeira-ministra da Dinamarca, Mette Frederiksen, chamou de “absurda”, levando Trump a cancelar uma visita oficial ao país nórdico.
Igualmente surpreendente foi sua proposta para resolver o conflito em Gaza. Durante uma reunião com o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, no início de fevereiro, Trump surpreendeu observadores ao sugerir que a Faixa de Gaza, devastada por meses de bombardeios e onde mais de 30.000 palestinos foram mortos, poderia se transformar na “Riviera do Oriente Médio“. Aparentemente insensível à catástrofe humanitária em curso, Trump elaborou três semanas depois, publicando um vídeo criado com Inteligência Artificial que mostrava uma Gaza imaginária transformada em um balneário de luxo em sua homenagem – sem mencionar o destino dos mais de dois milhões de palestinos que chamam Gaza de lar.
Estas não são declarações isoladas. O comentário casual de Trump de que “o Canadá deveria se tornar nosso 51º estado” provocou alarme em Ottawa, com a secretária de imprensa da Casa Branca acrescentando combustível ao fogo, ao afirmar que o Canadá “se beneficiaria muito em se tornar o 51º estado”. Em outras ocasiões, Trump chegou a sugerir que os EUA deveriam “retomar” o Canal do Panamá, cedido ao Panamá em 1999 após tratados assinados pelo presidente Jimmy Carter.
Esta abordagem de política externa parece menos fundamentada em realidades geopolíticas e mais nas fantasias de um magnata imobiliário e apresentador de reality show: países inteiros são vistos como propriedades a serem adquiridas, territórios disputados são imaginados como futuros resorts de luxo, e alianças históricas são tratadas como contratos renegociáveis a qualquer momento. É como se a diplomacia americana, tradicionalmente baseada em instituições multilaterais e alianças duradouras, tenha sido substituída por um episódio estendido de “O Aprendiz” geopolítico, onde países aliados podem ser “demitidos” com um tuíte e adversários tradicionais são cortejados com telefonemas calorosos.
Enquanto isso, aliados tradicionais dos EUA enfrentam um dilema: como navegar em um mundo onde a maior potência militar e econômica global parece cada vez mais desconectada das regras e normas que ela própria ajudou a estabelecer no pós-Segunda Guerra Mundial. O resultado é uma crescente instabilidade global, com implicações potencialmente desastrosas para a segurança internacional nas próximas décadas.
A perseguição aos “inimigos”
Um dos aspectos mais preocupantes destes primeiros 100 dias tem sido a utilização do aparato estatal para perseguição de opositores. Horas após jurar defender a Constituição dos Estados Unidos em 20 de janeiro, o presidente Donald Trump assinou um decreto ordenando que a procuradora-geral vasculhasse o Departamento de Justiça e outras agências em busca de evidências de “armas” políticas.
As ações de Trump rapidamente escalaram para incluir ex-oficiais de Inteligência que investigaram supostos laços russos com sua campanha eleitoral de 2016 e importantes escritórios de advocacia, bem como ex-membros do governo Biden e promotores que trabalharam em processos criminais contra ele enquanto esteve fora do poder.
A perseguição atingiu até mesmo a imprensa. Desde 20 de janeiro, a Casa Branca restringiu o acesso à Associated Press, a agência de notícias americana respeitada por suas cartas editoriais e que alimenta com informação a imprensa nacional e internacional. Mas a AP não cedeu e segue usando o termo Golfo do México em vez de “Golfo da América”, como exige o vocabulário de Trump.
Trump lançou ataques legais contra a emissora de TV privada CBS e o jornal The Des Moines Register e obrigou a ABC (grupo Disney) a pagar 15 milhões de dólares (aproximadamente R$ 88 milhões na cotação atual) sob a ameaça de um processo por difamação. Além disso, “As medidas adotadas pela Casa Branca para limitar a capacidade dos jornalistas de fazer o seu trabalho e documentar o que está acontecendo não têm precedentes”, diz Katherine Jacobsen, encarregada nos Estados Unidos do Comitê para a Proteção dos Jornalistas (CPJ).
Ataques às universidades
Outra frente de batalha escolhida por Trump foram as universidades. O governo Trump acusa várias universidades de serem tolerantes com o antissemitismo durante as manifestações nos campi, denunciando a guerra de Israel em Gaza. Ele cortou US$ 400 milhões (R$ 2,3 bilhões) em subvenções federais da Universidade de Columbia, alegando que a instituição deu apoio ao “assédio persistente de estudantes judeus” após os protestos anti-israelenses. Mais recentemente, ele congelou US$ 2,2 bilhões (cerca de R$ 13 bilhões) em fundos federais para a Universidade de Harvard, ameaçando retirar seu status de isenção de impostos como instituição sem fins lucrativos, depois que o centro de ensino se opôs a se submeter à vigilância governamental.
A Universidade Harvard afirmou que não se renderá às exigências do governo Trump de abrir mão de sua liberdade acadêmica, afirmando que as demandas “excedem a autoridade legal deste ou de qualquer outro governo”. Em resposta à resistência de Harvard, detalhada em uma carta escrita por dois advogados conservadores, o governo congelou US$ 2,2 bilhões em financiamentos e contratos para a instituição — forçando a universidade a interromper pesquisas para o combate à doença de Lou Gehrig, aos efeitos da radiação e à tuberculose.
A política migratória e o uso de leis de guerra
A promessa de deportação em massa de imigrantes tem sido um pilar central de seu governo, transformando-se rapidamente de retórica de campanha em uma realidade brutal, implementada por meio de métodos legais questionáveis e cooperação internacional com regimes autoritários. Em um dos casos mais emblemáticos, o governo Trump recorreu à Lei de Inimigos Estrangeiros (Alien Enemies Act) de 1798, uma legislação obscura de tempos de guerra que permite a expulsão de estrangeiros sem devido processo quando os Estados Unidos estão em guerra.
Para justificar o uso desta lei, a administração Trump argumentou que as operações da facção venezuelana Tren de Aragua nos Estados Unidos representam uma “invasão” de uma nação estrangeira. Este arcaico instrumento legal só havia sido utilizado em três ocasiões anteriores na história americana: durante a Guerra de 1812 contra a Grã-Bretanha, na Primeira Guerra Mundial e na Segunda Guerra Mundial, quando foi usada para autorizar a internação de 120 mil nipo-americanos em campos de concentração.
Em março, mais de 200 supostos membros de gangues foram deportados sem audiência e enviados para a notória prisão de segurança máxima de El Salvador, governada pelo autoproclamado “ditador mais legal do mundo”, Nayib Bukele. Quando o caso chegou à Suprema Corte dos EUA, a juíza Patricia Millett fez uma observação devastadora sobre o procedimento: “Os nazistas receberam melhor tratamento sob a Lei de Inimigos Estrangeiros do que aconteceu aqui”.
Investigações da CBS News e do New York Times constataram que, contrariando as alegações do governo, a grande maioria dos imigrantes deportados não tinha antecedentes criminais. Agora, esses indivíduos estão presos em condições desumanas, sem terem passado pelo devido processo legal garantido pela Constituição americana. Trump intensificou ainda mais a controvérsia ao sugerir, durante encontro com Bukele, que o próximo passo seria enviar cidadãos americanos para a notória prisão salvadorenha: “Os nativos serão os próximos”, disse ele. “É preciso construir mais cinco lugares” para prendê-los.
Quando um juiz federal emitiu uma ordem para suspender as deportações, o governo Trump simplesmente a ignorou, levando o juiz-chefe distrital dos EUA, James Boasberg, a abrir um processo por desacato, afirmando haver “causa provável” de desacato judicial. A resposta de Trump veio na forma de um ataque pessoal ao juiz via Truth Social, solicitando um processo de destituição contra Boasberg – comentário que lhe rendeu uma rara reprimenda pública do presidente da Suprema Corte, John Roberts.
A política migratória se estende também ao mundo acadêmico. Em outro caso, uma estudante da Universidade Tufts foi detida por agentes federais mascarados e encaminhada para deportação. O repórter John Hudson, do Washington Post, revelou que o próprio Departamento de Estado determinou que não havia provas sobre ela ter se envolvido em atividades antissemitas, nem de que teria apoiado uma organização terrorista, como alegou o governo.
Esta campanha de deportações reflete a visão de mundo articulada no controverso Projeto 2025, o manual de políticas que orienta o atual governo. O documento, produzido pela Heritage Foundation, lista como primeira prioridade “a proteção da fronteira, término da construção do muro com o México e a deportação de estrangeiros em situação ilegal”. O que impressiona não é apenas a brutalidade da implementação, mas a forma como ela está sendo executada deliberadamente à margem do sistema judicial americano – uma tentativa clara de estabelecer um precedente onde o Poder Executivo pode operar sem freios ou contrapesos constitucionais.
A crueldade, longe de ser um efeito colateral, parece ser um elemento central da estratégia – um sinal para a base política de Trump de que suas promessas mais extremas estão sendo cumpridas, independentemente de quaisquer limitações legais ou humanas. Como resumiu o professor de assuntos públicos na Universidade da Virgínia Barbara Perry, os primeiros 100 dias deste segundo mandato de Trump “não têm precedentes” na história americana.
A avaliação do público e o balanço final
Todas essas medidas têm gerado um impacto considerável na aprovação do presidente. Duas pesquisas recentes sobre o início de mandato do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, indicam uma queda constante em seu índice de aprovação motivada por um pessimismo com a economia. O republicano caminha para ter a pior avaliação de um presidente em início de mandato desde 1953, quando levantamentos do tipo começaram, no governo de Dwight Eisenhower.
De um lado, o agregador de pesquisas do New York Times, atualizado nesta quinta-feira, 24, indica que o índice de aprovação de Trump caiu de 52% uma semana após sua posse para cerca de 45%, a uma semana de ele completar 100 dias no cargo. Mais da metade dos americanos (52%) desaprova seu trabalho. Outro levantamento, feito pelo Pew Research Center e publicado na quarta-feira, 23, coloca Trump como bem avaliado apenas por 40% dos eleitores, e reprovado por 59%.
Curiosamente, enquanto ele perde apoio do eleitorado geral, por um lado, os republicanos, por outro, ainda o apoiam firmemente, enquanto os democratas o desprezam.
Mesmo com tantos sinais preocupantes, Trump vê seu segundo mandato como um sucesso retumbante. Ele se vangloriou de uma queda significativa nas travessias ilegais da fronteira, de bilhões de dólares em novos investimentos baseados nos EUA, da libertação de americanos presos no exterior e do enraizamento de iniciativas de diversidade nos setores público e privado. Trump também prometeu que novos acordos comerciais, inclusive com a China, estão no horizonte. “Vamos ganhar dinheiro com todo mundo, e todos ficarão felizes”, disse ele aos repórteres do lado de fora da Casa Branca na quarta-feira.
Os próximos 1.360 dias
Se estes primeiros 100 dias podem ser vistos como um prelúdio, o roteiro para os próximos quatro anos promete ser ainda mais turbulento. Os Estados Unidos e o mundo enfrentam agora uma nova realida,de em que as instituições democráticas, o sistema legal, a política externa e a economia americana estão todos simultaneamente sob ataque coordenado.
O mais preocupante, porém, é que as primeiras rachaduras já começam a aparecer no monolítico apoio republicano ao presidente. Figuras tradicionalmente leais ao partido, como o senador Chuck Grassley de Iowa, o veterano de guerra e deputado Brian Mast da Flórida e até mesmo a ardente trumpista Marjorie Taylor Greene da Geórgia, enfrentaram recentemente multidões de eleitores furiosos em reuniões públicas em seus distritos. Estas manifestações de insatisfação, mesmo em regiões profundamente republicanas, sugerem que a estratégia de “choque e pavor” está começando a produzir um efeito colateral inesperado: a mobilização de uma resistência multipartidária.
Uma coisa é certa: o projeto de Trump para os Estados Unidos não é apenas governar, mas transformar radicalmente o país e sua relação com o mundo. Trump se comporta como se não tivesse poder para alcançar seus objetivos por meios legítimos, então tenta realizá-los ilegalmente. A questão que permanece é se as instituições americanas, forjadas ao longo de mais de dois séculos, terão a solidez necessária para resistir a este teste sem precedentes.
Cem dias se passaram. Restam 1.360. E isto não é o fim. Não é nem mesmo o começo do fim. Mas é, talvez, o fim do começo.
* Lucas Leite é professor adjunto de Relações Internacionais da FAAP, com pós-doutorado pela UFU e doutorado pelo Programa San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP), com estágio na Georgetown University. Coordena programas de pós-graduação e pesquisa na FAAP e integra grupos de pesquisa como INCT-INEU, NUGRAD/UFU e GEDES/UNESP. Contato: LinkedIn.
* Publicado originalmente na newsletter Lucas Leite – Política Internacional, em 24 abr. 2025. Republicado no OPEU com a autorização do autor. Este conteúdo não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
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