Trump 2.0 e a república do medo

Estátua da Liberdade, Nova York (Crédito: Matthew Johnston/Flickr)
Dossiê “100 Dias de Trump 2.0”
Por Dinha* [Informe OPEU] [100 dias] [Trump 2.0] [Crônica] [Depoimento]
“Senhora, não preciso de todos esses documentos, já tenho o necessário para emitir a sua identidade”, disse a funcionária do DMV de Nova York (o equivalente ao DETRAN nos EUA), ao ver a pilha de documentos à sua frente que eu, feliz por finalmente ter acesso a tudo aquilo de novo, empurrava para que ela conferisse.
Por muito tempo não consegui renovar a minha identidade de Nova York, porque eu estava no “limbo”. Era assim que descrevia minha situação aos meus amigos. Sem os tão sonhados “documentos”, eu não podia sair do país, renovar a identidade, votar. Mesmo nessa situação, nunca me senti amedrontada. Nunca. Tive a oportunidade de viajar várias vezes dentro dos EUA, usando o meu passaporte brasileiro como identificação, e conheci inúmeras cidades e estados estadunidenses.
Sem medo.
Infelizmente, tanto as pessoas que hoje estão na situação em que eu me encontrei há muitos anos, quantos aquelas com sua devida documentação, não podem dizer o mesmo.
Palpatine Tangerina
A comparação com o imperador da saga de Guerra na Estrelas foi uma sacada genial que alguém postou e passei a usar. Afinal, o imperador Palpatine é conhecido como um subversor da democracia. Desde a posse do presidente Donald Trump, em janeiro de 2025, tudo que mais temíamos se tornou realidade em uma escala exponencial. Seu governo tem criminalizado todos os imigrantes – e não somente quem tem ficha criminal –, deportado até residentes legais e pessoas com vistos válidos, apenas por se pronunciarem contra o seu governo ou suas políticas. Essas não são características de um governo democrático, e sim de um autocrático, beirando uma ditadura. Tecnicamente, não é o caso, já que ele foi eleito por vias democráticas (ou nem tanto, a se considerar a persistência do Colégio Eleitoral), e as instituições, demais Poderes e imprensa seguem de pé (a duras penas, muitos irão observar).
Imperador Palpatine (Fonte: revista Rolling Stone Brasil. Crédito: LucasFilm)
Pouco tem-se falado aqui, sobretudo nos jornais, da carga emocional que as medidas ilegais do governo Trump impõem à comunidade imigrante. Hoje, sou cidadã americana, mas, pela primeira vez, passei a andar com o meu passport card (um tipo de passaporte que serve apenas para entrar e sair do país por terra e mar) na carteira, por medo de ser parada em algum lugar e ter que provar que sou cidadã americana. Isso porque moro em Nova York. E meu medo não é infundado.
Durante o primeiro governo Trump, uma colega tradutora e intérprete estava uma biblioteca pública no conservador estado do Missouri, na região Centro-Oeste do país, falando ao telefone, quando um policial se aproximou e pediu para ver seus documentos. Uma mulher na biblioteca havia chamado a polícia, porque “tinha uma mulher lá falando árabe”. Minha colega não estava com o seu green card na bolsa, e o policial foi com ela até a sua casa para conferir o documento. Atualmente, não acredito que esse policial seria tão benevolente.
As comunidades imigrantes estão com medo. Medo de ir aos seus restaurantes, salões de beleza, de fazer festas. Em Astoria, um bairro do condado de Queens muito popular com a comunidade brasileira, um restaurante brasileiro que vivia cheio agora está às moscas. O mesmo tem acontecido com um salão de beleza. Passei lá, recentemente, e uma funcionária me informou que as clientes brasileiras sumiram, porque estão com medo de serem vistas “em lugar de imigrante”.
O pânico é geral. Mesmo quando não comparecer a um compromisso pode ser prejudicial.
Sou tradutora e intérprete e também trabalho nos tribunais estaduais de Nova York. Tenho observado que muitas pessoas não têm comparecido às audiências. Isso não ocorria até o ano passado, e parece-me uma consequência do novo governo.
Hoje, por exemplo, eu ia trabalhar em um depoimento remoto, mas este foi cancelado de última hora. É o que mais tem acontecido na minha área de atuação desde o começo de 2025, e nunca havia se passado isso antes, com tamanha frequência.
Logo após a primeira batida da polícia de imigração (ICE) na cidade de Newark, em Nova Jersey, reduto de uma grande comunidade lusófona e de muitos trabalhadores da indústria da construção civil, percebi que vários trabalhos foram cancelados. Há um número significativo de processos contra empreiteiras aqui por acidentes de trabalho, e os trabalhadores sempre precisam de intérpretes. Ao conversar com vários colegas, obtive a mesma constatação: uma redução nos trabalhos e o aumento de cancelamentos de audiências. Espero que seja “apenas” por estas pessoas estarem com medo, e não porque foram presas.
O medo e a incerteza também atingem as crianças, nascidas aqui ou não. Como se não bastasse a ansiedade constante que muitas sentem, é difícil imaginar viver com medo de o governo prender (e deportar) seus pais. Muitos pais e mães imigrantes que não falam inglês não recebem mais a ajuda de intérpretes, devido aos cortes de gastos governamentais, o que resulta em isolamento e impotência na educação dos filhos. Mas isso é quando eles vão às reuniões escolares, o que muitos estão evitando por medo da imigração.
Direito à vida, liberdade e felicidade
A Constituição estadunidense declara que todos têm direito à “vida, liberdade e felicidade” e que o governo não pode privá-los destes direitos. Embora uns sempre tenham mais direitos que outros, infelizmente.
Há um grande alarme, ligado a histórias de pessoas que tiveram seus dispositivos eletrônicos revistados ao passarem na imigração aqui, mesmo aquelas que já são residentes legais. O que poucos sabem é que até os portadores de green card podem passar por revistas e terem seu ingresso no país negado. Os únicos que têm a entrada garantida no país são os cidadãos estadunidenses, embora eles não estejam imunes a revistas.
A grande luta agora é para manter os direitos civis que ainda restam.
Vou confessar que minha vontade, na maioria dos dias, sempre que recebo uma notificação de algo mais que esse governo fez, é me deitar e esperar até o fim desse mandato.
Mas não posso me dar a esse luxo. Se me rendo, eles ganham esse jogo de goleada. E a partida só termina quando o juiz apita.
* Dinha é tradutora e intérprete. Brasileira, vive há 27 anos nos EUA. A pedido da autora, foi usado um pseudônimo.
** Revisão e edição: Tatiana Teixeira. Recebido em 22 abr. 2025. Este conteúdo não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
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