Internacional

O alvorecer do segundo governo Trump e as organizações internacionais 

(Arquivo) O então presidente Donald Trump discursa na 73ª Sessão da Assembleia Geral da ONU, em Nova York, em 25 set. 2018 (Crédito: Joyce N. Boghosian/Casa Branca/Flickr)

Dossiê “100 Dias de Trump 2.0”

Por Rúbia Marcussi Pontes* [Informe OPEU] [100 dias] [Trump 2.0] [Organizações Internacionais]

Em 20 de janeiro de 2025, Donald Trump tomou posse como 47º presidente dos Estados Unidos, retornando, após quatro anos da Presidência de Joe Biden, para seu segundo mandato. Os 100 primeiros dias de trabalho indicaram o tom que este novo governo terá: errático e incerto, mas com reflexos profundos na governança global e na ordem internacional moldadas, há décadas, pelos próprios EUA.  

A ordem econômica e política de Bretton Woods 

A ordem econômica e política internacional emergente do pós-Segunda Guerra Mundial foi caracterizada por um liberalismo distinto do liberalismo laissez-faire do século XIX, baseado no livre-comércio e no informal padrão-ouro. Essa nova etapa, chamada de liberalismo inserido (embedded liberalism), foi marcada por uma ordem internacional multilateral, com foco na estabilidade do sistema monetário e financeiro internacional, na reconstrução dos países afetados pela guerra e na garantia de investimentos que sustentassem o crescimento econômico. 

A Conferência Monetária e Financeira das Nações Unidas em Bretton Woods, realizada em julho de 1944 nos EUA, marcou a criação das bases do regime monetário e financeiro do Pós-Guerra, ao criar três instituições: o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial (BM) e Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT, na sigla em inglês). O FMI tinha como objetivo assegurar a estabilidade monetária e financeira, principalmente em contextos de crise, enquanto o BM (e, mais especificamente, o Banco Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento, BIRD), tinha como objetivo garantir os investimentos que sustentassem o crescimento econômico e diminuíssem a pobreza. Já o GATT, capítulo da Carta de Havana que deveria fundar a Organização Internacional do Comércio (OIC), foi resgatado e assinado por 23 países, incluindo os EUA, com foco em rodadas de negociação sobre tarifas e regras comerciais. 

A Organização das Nações Unidas (ONU), cuja carta constitutiva foi assinada por representantes de 50 países reunidos na Conferência das Nações Unidas sobre Organização Internacional, em junho de 1945, foi criada como o espaço em que os Estados-membros promoveriam a paz e a segurança internacionais, os direitos humanos e a assistência humanitária, assim como o desenvolvimento socioeconômico. 

Os EUA desempenharam papel central na forma e no conteúdo da emergente ordem econômica e política internacional descrita. Tais organizações internacionais (OIs) contribuíram para a governança global e conferiram legitimidade à hegemonia dos EUA, inclusive no pós-Guerra Fria. Evidentemente, a presença e o comprometimento dos EUA para com essas e outras OIs não foi historicamente homogênea, mas o país se manteve, até agora, como defensor de uma ordem internacional aberta e regida por regras (rules-based order), promovidas, principalmente, via direito internacional e em instituições intergovernamentais. 

Como entender, então, a retirada imediata dos EUA de diversas instâncias desse sistema multilateral, cultivado pelos próprios EUA, no início do segundo governo Trump? 

O fim de um sistema como o conhecemos 

No mesmo dia de sua posse, Trump retirou os EUA da Organização Mundial da Saúde (OMS), agência especializada da ONU, alegando má gestão, por parte da organização, da pandemia da covid-19, e por continuar a exigir “pagamentos injustamente onerosos dos EUA, muito desproporcionais aos pagamentos cobrados de outros países”, com destaque nominal para a China. Tal medida afetou imediatamente diversos programas. Também no mesmo dia, outra ordem executiva foi assinada, retirando os EUA do Acordo de Paris e encerrando o Plano Internacional de Financiamento Climático dos EUA, bem como todos os compromissos financeiros do país via Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Clima.  

Em 3 de fevereiro, Trump assinou uma ordem executiva com o objetivo de revisar, em até 180 dias, todas as OIs e tratados, dos quais os EUA fazem parte e contribuem financeiramente, para que decisões sobre permanência ou retirada sejam tomadas, com base no alinhamento dessas esferas vis-à-vis os renovados interesses estadunidenses. 

Também nesse dia, outra ordem executiva colocou em xeque a participação dos EUA em três instâncias do sistema ONU – o Conselho de Direitos Humanos (CDH), a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO, na sigla em inglês) e a Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Próximo Oriente (UNRWA, na sigla em inglês) –, afirmando que “o CDH protegeu violadores de direitos humanos, permitindo que eles usassem a organização para se protegerem do escrutínio, enquanto a UNESCO demonstrou falha em se reformar, demonstrou continuamente tendência anti-Israel na última década e falhou em abordar preocupações com o aumento dos atrasos [de contribuições]”. Ainda segundo ele, a “UNRWA teria sido infiltrada por membros de grupos há muito designados pelo secretário de Estado [dos EUA] como organizações terroristas estrangeiras, e funcionários da UNRWA estiveram envolvidos no ataque do Hamas a Israel em 7 de outubro de 2023”. 

UNRWA | UN Relief and Works Agency for Palestine Refugees in… | FlickrUNRWA foi uma das agências internacionais abandonadas pelos EUA de Trump (Crédito: David Scaduto/Flickr)

Com isso, os EUA deixaram o CDH e suspenderam suas contribuições para a UNRWA, o que foi seguido por declarações de Trump de que a única alternativa dos palestinos que vivem na Faixa de Gaza era deixar o território, que seria transformado em um “empreendimento imobiliário” voltado para o turismo.   

Em março, diversas agências federais passaram a banir o uso de determinadas palavras em seus sites, relatórios e documentos. A lista é extensa, mas se destacam termos como “diversidade”, “inclusão”, “discriminatório”, “gênero”, “ativismo” e “racismo”. Essa tendência foi transposta para a diplomacia dos EUA em OIs, em especial, a ONU. A Comissão sobre a Situação da Mulher (CSW, na sigla em inglês) adotou uma Declaração Política que reforça o compromisso global para acelerar a busca pela igualdade de gênero. Os EUA, contudo, dissociaram-se da Declaração, observando que diversos aspectos do texto impossibilitaram seu apoio: “entre eles, destacam-se, entre outros, falhas no uso de linguagem clara e precisa que reconheça que as mulheres são biologicamente femininas e os homens, biologicamente masculinos”. Afirmaram, também, que não podem “… aceitar referências na Declaração Política a um suposto ‘direito ao desenvolvimento’, pois o termo não tem um significado acordado internacionalmente”. 

Nesse sentido, os EUA se destacaram como o único país a votar contra a resolução 79/276 da Assembleia Geral da ONU, que, com 158 votos a favor e nenhuma abstenção, estendeu a Década de Ação das Nações Unidas para a Nutrição, originalmente de 2016 a 2025, até 2030. A Casa Branca de Trump ressaltou que o voto contrário do país está alinhado às novas prioridades, entre as quais não se encontra a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável – um dos pilares de trabalho da ONU atualmente. 

Nesse contexto, os EUA poderiam deixar a ONU e outras OIs? 

“Um mau negócio” 

Depois de anunciar abertamente que “tomaria o Canal do Panamá de volta”, os EUA de Trump conseguiram renegociar seu uso no início de abril e, em breve, navios estadunidenses terão prioridade e gratuidade na passagem. Esse não é o único “mau negócio” que Trump quer anular em favor dos EUA. Já se aventa a possibilidade de renegociação do Acordo de Sede das Nações Unidas de 1947, que garantiu que a sede da ONU fosse isenta de impostos em uma das regiões com o metro quadrado mais caro do mundo, além de ser um território inviolável, segundo o artigo 23 do Acordo, “sob o controle e a autoridade” apenas da ONU. 

Em seus primeiros meses de governo, Trump já deixou claro seu objetivo de rever e, possivelmente, suspender a participação dos EUA em mais instâncias do sistema ONU. Mas Richard Gowan, diretor das Nações Unidas do International Crisis Group, dá indícios de que os EUA não deixarão a organização, pois continuam a vê-la como um espaço para “firmar acordos entre grandes potências e marginalizar Estados menores”. E, vale lembrar, isso não impede que o país deixe de cumprir seus compromissos financeiros e barre importantes pautas, programas e resoluções, com graves consequências humanitárias. 

As organizações tradicionais de Bretton Woods também não escaparão do escrutínio dos EUA, por mais que o país ocupe nelas, historicamente, privilegiada posição de poder. O Projeto 2025, “manual de políticas” desenvolvido pela conservadora Heritage Foundation para o segundo mandato de Trump, defende que os EUA deixem o FMI e o BM, pois essas são “intermediações caras”. Ou seja, dificilmente correspondem aos interesses securitários e econômicos do país, o qual deveria fornecer assistência econômica e humanitária apenas de forma unilateral. 

O FMI, em especial, é apontado como uma organização que interveio nos debates sobre políticas domésticas dos EUA, além de ter programas de assistência ao desenvolvimento e empréstimos para o Terceiro Mundo [sic] que “… muitas vezes retardaram o crescimento, em vez de promovê-lo”. Mas Ngaire Woods, professora da Universidade de Oxford, avalia que a retirada dos EUA do FMI – e do BM – seria um grave erro, “privando os EUA da capacidade de moldar as regras da ordem monetária internacional e perseguir seus interesses estratégicos”, como fez por tanto tempo. 

undefinedSaída dos EUA do FMI e do Banco Mundial seria ‘grave erro’, diz profª Ngaire Woods. Na foto, ela participa de mesa na Reunião Anual do Fórum Econômico Mundial, em Davos, Suíça, em 30 jan. 2011 (Crédito: Fórum Econômico Mundial swiss-image.ch/Foto de Sebastian Derungs)

O Projeto 2025 também é crítico da Organização Mundial do Comércio (OMC), ao dizer que as regras comerciais acordadas nesse âmbito, com destaque para o princípio da nação mais favorecida, ferem diretamente os interesses de agricultores, fabricantes e trabalhadores estadunidenses. Não é de hoje que a OMC enfrenta uma grave crise institucional, com múltiplos fatores agravantes, e que os EUA alegam que a organização promove um comércio internacional injusto, favorável apenas aos países em desenvolvimento. O “tarifaço” de abril de Donald Trump escancarou, ainda mais, a fragilidade da OMC e de seu Mecanismo de Solução de Controvérsias, cujo Órgão de Apelação está paralisado há anos por conta dos próprios EUA. 

A Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) também é alvo de críticas de Trump. Na ONU, o país mostrou um realinhamento, em diversas oportunidades, com a Rússia, especialmente na questão da Ucrânia. Esse é um reflexo de sua política para a OTAN e para a Europa, de forma geral: Trump quer distanciar o país da organização, já que o custo-benefício é baixo. Para ele, a OTAN é desproporcionalmente onerosa para o país, e não para a Europa, e “se os EUA estivessem em apuros, e nós [EUA] ligássemos e disséssemos: ‘Temos um problema, França’. Você acha que eles virão nos proteger? Hum. Eles deveriam. Mas eu não tenho tanta certeza”. Essa fala de Trump demonstra desconhecimento sobre o Artigo 5 do Tratado do Atlântico Norte, invocado apenas uma vez na história da organização, justamente após o 11 de setembro de 2001.  

Um novo mundo? 

A nós, resta aguardar o resultado da extensiva revisão em curso sobre a continuidade ou a retirada dos EUA de OIs e tratados internacionais. De qualquer modo, as instituições de Bretton Woods, a ONU e a OTAN, para nos atermos apenas a algumas, terão de enfrentar velhos e novos desafios, e as temáticas de reforma, financiamento e formas de participação não poderão mais ser postergadas. Outros arranjos internacionais, como o BRICS, podem ganhar fôlego. O momento também pode ser único para que coalizões regionais e políticas renegociem, em seus próprios termos, os fundamentos da ordem econômica e política internacional ainda em vigor.

 

* Rúbia Marcussi Pontes é doutoranda e mestra em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), professora associada de Relações Internacionais do Centro Universitário FACAMP e pesquisadora do INCT-INEU. Contato: rubiamarcussi@gmail.com. 

** Primeira revisão: Simone Gondim. Contato: simone.gondim.jornalista@gmail.com. Revisão e edição finais: Tatiana Teixeira. Recebido em 15 abr. 2025. Este conteúdo não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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