Entre a cruz e a fronteira: a tensão simbólica entre papa Francisco e Donald Trump

(Arquivo) Papa Francisco acompanhado do então presidente dos EUA, Donald Trump, em audiência privada no Vaticano, em 24 de maio de 2017 (Fonte: National Catholic Reporter. Crédito: Catholic News Service, CNS/Paul Haring)
Por Andy Mickelly Canovas Lima* [Informe OPEU] [Trump 2.0]
A morte do papa Francisco, ocorrida em 21 de abril de 2025, encerra um pontificado marcado por fortes posicionamentos sociais, defesa dos marginalizados e um apelo constante à construção de pontes entre povos e culturas. Sua trajetória também se cruzou com figuras políticas de projeção mundial — entre elas, a de Donald Trump, presidente dos Estados Unidos, com quem manteve uma relação notoriamente tensa. As divergências entre ambos extrapolaram o campo diplomático e se tornaram símbolos de um embate mais amplo entre duas visões de mundo: uma, baseada no diálogo e na solidariedade global; outra, centrada no nacionalismo e na retórica da exclusão. Revisitar essa relação após a morte do papa permite compreender não apenas os choques entre religião e política, mas também o impacto simbólico que lideranças carismáticas podem exercer no cenário internacional.
Muros que separam, pontes que conectam
Em 2016, durante uma visita ao México, o papa Francisco manifestou, publicamente, sua insatisfação com a proposta de Donald Trump de construir um muro na fronteira entre os Estados Unidos e o México — um dos pilares retóricos de sua campanha presidencial. Em resposta a uma pergunta sobre o tema, o pontífice afirmou que “uma pessoa que pensa apenas em construir muros, e não em construir pontes, não é cristã”. A declaração teve grande repercussão internacional e foi interpretada como uma crítica direta ao discurso adotado por Trump. O então pré-candidato republicano reagiu de forma enérgica, classificando como “vergonhoso” o fato de um líder religioso questionar a fé de outra pessoa. Esse embate evidenciou o contraste entre o nacionalismo de Trump e a mensagem humanitária do papa, além de marcar um raro momento em que a liderança da Igreja Católica confrontou diretamente um candidato à Presidência dos EUA.
Em maio de 2017, já como presidente dos Estados Unidos, Donald Trump foi recebido pelo sumo pontífice no Vaticano, em um encontro marcado por simbolismos e divergências ideológicas. Durante a reunião, Francisco presenteou Trump com uma cópia de sua encíclica Laudato si’, publicada em 2015, na qual defende a urgência do combate às mudanças climáticas por meio de uma “ecologia integral” que una justiça ambiental e social. O gesto foi interpretado como um apelo diplomático, mas também moral, diante da conhecida postura cética de Trump em relação ao aquecimento global. Essa diferença de visões se acentuou semanas depois, quando, em junho de 2017, Trump anunciou a retirada dos Estados Unidos do Acordo de Paris — marco multilateral na luta contra as mudanças climáticas, assinado no mesmo ano da publicação da Laudato si’. A decisão do republicano representou um afastamento da cooperação internacional em questões ambientais e foi amplamente criticada pela comunidade global, incluindo o Vaticano.
Fonte: National Catholica Report. Crédito: Flickr/Província Britânica de Carmelitas/Johan Bergström-Allen
Clima em disputa
Para o papa Francisco, a crise climática não é apenas uma questão científica ou técnica, mas um desafio ético e espiritual, ligado à dignidade humana e à proteção dos mais vulneráveis. O contraste entre a postura negacionista de Trump e a defesa enfática do papa por uma conversão ecológica reflete o embate entre uma visão nacionalista e utilitarista da política ambiental e uma abordagem universalista baseada na solidariedade e no cuidado com a criação.
Em 2018, o papa Francisco condenou veementemente a política de “tolerância zero” adotada pelo governo Trump, que resultava na separação de famílias migrantes na fronteira entre os Estados Unidos e o México. A medida, implementada pelo Departamento de Justiça, previa a detenção de todos os adultos que cruzassem a fronteira de forma irregular, o que automaticamente levava à separação de crianças de seus pais, uma vez que menores de idade não podiam ser mantidos em centros de detenção federais para adultos. A prática gerou forte comoção pública e intensa crítica internacional, sendo denunciada por organizações de direitos humanos como uma violação dos direitos das crianças e da dignidade humana. Ao comentar o caso em uma entrevista, o papa Francisco classificou a política como “a maior forma de crueldade”, reforçando a posição da Igreja Católica em defesa dos migrantes e do direito à unidade familiar. Sua declaração se somou a uma onda de repúdio que ultrapassou o campo religioso, posicionando o Vaticano como uma voz ativa na defesa da justiça social e no enfrentamento de políticas migratórias consideradas desumanas. O episódio evidenciou, mais uma vez, o antagonismo entre a exclusão promovida por Trump e a mensagem de acolhimento e compaixão defendida pelo pontífice, fortalecendo o papel do papa como ator de soft power na arena internacional.
Em 2020, durante a pandemia da covid-19, as diferenças entre o papa Francisco e o então presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, tornaram-se ainda mais evidentes, sobretudo, em relação às medidas sanitárias e ao discurso público diante da crise global. O papa adotou uma postura fortemente solidária e ética, enfatizando a necessidade de acesso equitativo às vacinas, em especial para os mais pobres e vulneráveis. Em várias ocasiões, Francisco classificou a vacinação como um “ato de amor”, ressaltando que a proteção coletiva contra o vírus deveria ser guiada por princípios de justiça social, responsabilidade comunitária e compaixão. Sua mensagem ecoava os fundamentos da doutrina social da Igreja, que prioriza o bem comum e a dignidade humana. Em contraste, Donald Trump minimizou, repetidamente a gravidade da pandemia, desacreditando medidas recomendadas por especialistas — como o uso de máscaras. Além disso, sua gestão enfrentou críticas por atrasos na resposta federal à crise e pela politização da vacinação, o que contribuiu para a hesitação vacinal em parte do eleitorado conservador. Nesse cenário, as mensagens de ambos os líderes evidenciaram não apenas um contraste de prioridades, mas também a diferença na forma como cada um buscava influenciar e mobilizar suas audiências.
A mais recente visita internacional recebida pelo pontífice foi a do atual vice-presidente dos Estados Unidos, J.D. Vance, recém-convertido ao catolicismo. No domingo de Páscoa (20), Vance teve um breve encontro com o papa, durante o qual foi presenteado com uma gravata do Vaticano, um terço e ovos de Páscoa para cada um de seus filhos. Segundo nota divulgada pela Santa Sé, “durante a cordial conversa, foi expressa a satisfação pelas boas relações bilaterais entre a Santa Sé e os Estados Unidos da América, e foi renovado o compromisso comum de proteger o direito à liberdade religiosa”. Posteriormente, o Vaticano divulgou um vídeo em que o vice-presidente manifestou satisfação ao ver o papa com melhor saúde.
Vice-presidente dos EUA, J.D. Vance, cumprimenta o papa Francisco na Cidade do Vaticano, em 20 abr. 2025 (Crédito: Mídia do Vaticano via Vatican Pool/Getty)
E, na manhã seguinte, em 21 de abril de 2025, o papa Francisco faleceu, aos 88 anos, após complicações de saúde decorrentes de um AVC e de insuficiência cardíaca, encerrando um pontificado de mais de uma década marcado pela defesa dos pobres, do meio ambiente e dos migrantes. Sua morte gerou comoção internacional, e seu funeral, marcado para 26 de abril, na Praça de São Pedro, deve reunir líderes globais de diferentes espectros políticos e religiosos. Entre eles, está o Donald Trump, que prestou condolências por meio de sua rede Truth Social, escrevendo: “Repouse em paz, papa Francisco! Que Deus o abençoe e abençoe a todos que o amavam”. A presença de Trump no funeral é significativa, considerando-se o histórico de tensões entre os dois líderes, mas, ainda assim, sua participação no funeral reforça o reconhecimento da relevância internacional de Francisco, cuja liderança espiritual transcendeu divisões políticas e reafirmou o papel do papado como voz moral em temas de alcance global.
* Andy Mickelly Canovas Lima é graduanda do sétimo semestre do curso de Relações Internacionais da Universidade Anhembi Morumbi e aluna participante do projeto de extensão da referida instituição em parceria com o OPEU. Contato: andy.mickelly@gmail.com.
** Revisão e edição: Tatiana Teixeira. Recebido em 25 abr. 2025. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
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