Economia e Finanças

Lobbies e o USMCA: regras de investimento e a influência dos grupos de interesse nos EUA

(Arquivo) Os presidentes do México (Peña Nieto) e dos EUA (Trump) e o primeiro-ministro canadense (Trudeau) assinam a versão final do USCMA em reunião à margem do G20 em Buenos Aires, em 30 nov. 2018. Ao fundo, o secretário da Economia mexicano (Ildefonso Guajardo), o representante de comércio dos EUA (Robert Lighthizer) e a ministra canadense dos Negócios Estrangeiros (Chrystia Freeland) (Crédito: Shealah Craighead/ White House)

Por Lucas Amorim* [Informe OPEU] [USMCA] [Política comercial]

Há cerca de 30 anos, entrava em vigor o Acordo de Livre-Comércio da América do Norte, o NAFTA. O acordo revolucionou as relações comerciais entre Canadá, Estados Unidos e México, reduzindo drasticamente as barreiras comerciais entre os países-membros e permitindo a integração econômica entre suas economias. Nem em retrospecto há consenso sobre os resultados alcançados pelo acordo. Defensores do livre-comércio destacam seu papel na promoção de crescimento econômico e no aumento dos fluxos de comércio e investimento entre os três países. Enquanto isso, opositores destacam a perda de empregos e a desindustrialização da economia americana e o fato de a liberalização comercial não ter permitido ao México trilhar um caminho de desenvolvimento industrial autônomo.

Ao tomar posse pela primeira vez, em janeiro de 2017, Donald Trump já se encontrava fortemente no segundo grupo. Entendia o NAFTA como um dos responsáveis pela “ruína” econômica de seu país, especialmente tendo em vista os déficits na casa das dezenas de bilhões de dólares com seus parceiros comerciais. Durante a campanha presidencial, o então candidato prometia forçar uma renegociação. Caso a empreitada de renegociar o NAFTA não surtisse o efeito desejado, Trump não via problema. Era melhor nenhum acordo do que um acordo ruim. A posição do republicano revelava, além de uma visão bastante transacional das relações econômicas e diplomáticas com os vizinhos, uma tentativa de cooptar eleitores do Cinturão da Ferrugem, uma região estratégica para as eleições presidenciais que antes contava com indústria pujante, mas que hoje sofre com o desemprego e o declínio econômico.

O declínio industrial e urbano no Cinturão da Ferrugem é perceptível nos prédios desocupados na região central de Chester, Pensilvânia (Crédito: Smallbones/ Wikimedia Foundation)

O todo-poderoso encarregado da negociação foi o advogado Robert Lighthizer, que foi nomeado representante de comércio dos Estados Unidos (cargo conhecido pela sigla em inglês USTR). Para além de tarifas, medidas fitossanitárias e outras barreiras comerciais, Lighthizer se opunha com ânimo a uma provisão específica do acordo encontrada em seu capítulo de investimento: a arbitragem investidor-Estado.

Conhecida pela sigla ISDS (de Investor-State Dispute Settlement), o mecanismo foi engendrado no pós-Guerra para proteger investidores estrangeiros operando fora de seu país e, consequentemente, estimular fluxos de investimento para o desenvolvimento econômico e, do ponto de vista dos Estados Unidos, promover o papel do dólar como moeda global. Basicamente, ao assinar um acordo de investimento, os países se comprometem a não expropriar ou tratar de forma discriminatória os investimentos estrangeiros em seu território. Caso investidores se sentissem alvo de alguma dessas medidas, teriam acesso a um tribunal internacional privado que poderia impor ao Estado anfitrião a obrigação de ressarci-los e indenizá-los.

O mecanismo recebe diversas críticas. Desde que alveja desproporcionalmente países em desenvolvimento, de que inibe a capacidade dos Estados de promoverem regulações que beneficiem suas populações em temas sensíveis, como saúde, meio ambiente e mudança climática, e até mesmo que seja um mecanismo de transferência de renda dos países mais pobres para grandes conglomerados transnacionais, que são aqueles capacitados a ingressar com as ações arbitrais complexas e que demandam a contratação de advogados e escritórios especializados. Talvez de forma mais relevante, não há evidência definitiva de que o ISDS promova fluxos de investimento para os países mais pobres, um dos principais argumentos para sua adoção.

Lighthizer não mobilizava nenhuma dessas críticas para se opor ao mecanismo. No cenário atual, onde o dólar já é a moeda dominante, o representante de comércio enxergava o ISDS não como um mecanismo jurídico que avançava os interesses dos Estados Unidos, mas sim como “açúcar”, que atraia investidores americanos para outros países em detrimento da economia doméstica. Segundo ele, a provisão jurídica anulava uma das principais vantagens de se investir nos EUA: a percebida solidez e confiabilidade de seu sistema jurídico. A arbitragem de investimento seria, portanto, uma espécie de “seguro-investimento” para investir no México e no Canadá bancado pelo próprio Estado americano. Livrar-se dessa provisão virou uma das metas da administração para o processo de renegociação do NAFTA.

Após mais de um ano de discussões, o NAFTA foi suplantado por um novo acordo que recebeu diversos nomes, conforme a jurisdição: USMCA, nos Estados Unidos; TMEC, no México; e CUSMA (inglês) ou ACEUM (francês), no Canadá. Esse fato curioso decorre da insistência do governo estadunidense em fazer o nome do seu país aparecer primeiro na sigla, o que foi inaceitável para os outros sócios. 

Apesar da promessa de Lighthizer de extirpar as provisões de investimento no novo tratado, as provisões substantivas – isso é, aquelas que criam direitos e obrigações entre as partes – se encontram presentes no capítulo 14 do USMCA, ainda que modernizadas em linha com o estado da arte da ciência jurídica. A principal mudança foi no escopo em que a arbitragem de investimento seria aplicável no novo acordo. A arbitragem de investimento deixou de ser uma possibilidade entre Canadá e Estados Unidos, após um período de transição. Enquanto isso, o acesso ao ISDS foi fortemente restrito entre México e Estados Unidos. Apenas alguns setores, como petróleo e gás, infraestrutura e energia, encontram proteção similar àquela encontrada no NAFTA. Já as relações de investimento entre México e Canadá são abarcadas por outro acordo, o Acordo Abrangente e Progressivo para a Parceria Transpacífica (CPTPP).

Para mais detalhes, confira o artigo “Lobbies and the USMCA: the role of interest groups in the negotiation of the New NAFTA’s investment rules” na íntegra.

Para entender como o acordo adquiriu uma formatação tão complexa, iniciei minha pesquisa buscando compreender como atuaram os grupos de interesse organizados, mais conhecidos como lobbies, na tentativa de influenciar a posição do governo dos Estados Unidos nas negociações sobre investimento. Os setores econômicos e sociais participam de um processo de consulta formal estabelecido por lei durante negociações comerciais. No caso da (re)negociação do NAFTA/USMCA, o processo de consulta envolveu comitês consultivos de comércio ligados ao USTR que emitiram seus pareceres de 27 de setembro a 25 de outubro de 2018. Essa série de relatórios foi analisada em busca do posicionamento dos diversos setores (agrícolas, industriais, técnicos).

Foi possível identificar setores que, por motivos diversos, alinharam-se ao discurso de enfrentamento às regras de investimento (organizações ambientais, sindicais e de governos subnacionais); outros, indiferentes à presença de regras de investimento no acordo (em geral setores econômicos mais simples que não demandam cadeias de suprimento complexas); e setores que lutaram pela manutenção ou recrudescimento das regras de investimento (destacam-se setor automotivo, bens de consumo, economia digital e petroquímicos).

Essa separação em grupos revela um claro tensionamento na coalizão plutocrática-populista, que levou Trump ao poder em 2017. Como é esperado, os setores que representam os empregadores, que compõem maioria dos comitês consultivos, apoiaram as medidas que, segundo o governo, permitiam a terceirização e o envio de investimentos e de vagas de emprego para outras economias, em contraste com a representação dos trabalhadores, apoiados por ambientalistas e associações de governos estaduais e locais.

Uma importante hipótese avaliada foi levantada por Sacerdoti. Segundo ele, apesar do discurso duro contra os grupos de interesse organizados, o governo Trump havia sucumbido, como todos os governos anteriores, a apenas atender aos interesses de lobbies mais bem conectados. Ofereço no artigo uma explicação alternativa. Apesar da influência dos lobbies – que não é de se estranhar, já que a própria lei americana oferece um espaço para que eles expressem suas posições sobre a negociação –, o interesse que predominou no desenho final do acordo em relação a investimento foi o do governo Trump, no sentido de desestimular a tendência de terceirização e buscar “redomesticar” empregos industriais.

Para tal, o governo não hesitou em aproveitar propostas como aquela da National Association of Manufacturers (Associação Nacional dos Fabricantes, sigla NAM), que representa o setor industrial, que propunha segregar setores prioritários para manter o nível de proteção equivalente ao encontrado no NAFTA, mas subvertendo o objetivo inicial de incluir o setor manufatureiro no regime privilegiado. Os setores protegidos – no jargão do tratado “contratos governamentais cobertos” – mantiveram nível de proteção similar ao anterior, uma vez que abarcavam investimento que não eram passíveis de repatriamento, como extração de óleo e gás, obras de infraestrutura e geração de energia elétrica. Desestimular o investimento no México nesses setores apenas levaria à redução das margens de lucros de empresas dos Estados Unidos, sem expectativa de novas vagas na economia doméstica.

Também foi possível afastar outra hipótese, levantada por Cabrera e Orlando, de que o governo tinha se movido por motivos similares àqueles encontrados em países em desenvolvimento, isto é, com o objetivo de reduzir sua própria exposição a processos arbitrais. Os autores argumentavam que os setores que foram relegados ao regime geral de arbitragem, com menor proteção, haviam sido selecionados por representarem uma maioria dos processos arbitrais iniciados. Essa não parece ter sido uma motivação clara na estratégia do governo. Por mais que a iniciativa de renegociação do NAFTA tenha gerado oposição de setores de ambos os lados do espectro político, enxerga-se nas provisões de investimento do acordo uma iniciativa com o objetivo de interromper o declínio industrial do país, ainda que desafie o paradigma econômico neoliberal.

 

Lucas Silva Amorim é pesquisador colaborador do INCT-INEU/OPEU, doutorando pelo Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI-USP) em período sanduíche (2024-2025) na Georgetown University financiado pela Fulbright Brasil. Contato: amorimlucas@usp.br.

** Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 28 mar. 2025. Este Informe OPEU não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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